Um conto de fadas às avessas (Cruella, de Craig Gillespie, fala do que precisamos nos tornar e das ferramentas que utilizaremos para conseguir encontrar um caminho em nossas vidas. E esse, definitivamente, não é um terreno fácil de ser desbravado)
Embora eu não seja um fã apaixonado pelos contos de fadas (pelo contrário!), é de notório conhecimento que o gênero é um grande agregador de admiradores os mais diversos ao redor do mundo. E uma grande responsável por toda essa paixão se concretizar são os estúdios Disney. Mesmo em tempos de Pixar, 3D e outras tecnologias, os mais velhos não se esquecem da época em que fábulas como Branca de neve e os sete anões e Bambi faziam lágrimas saírem dos olhos deles quando eram crianças.
São muitos os autores que tornaram o gênero popular nos quatro cantos do planeta terra. Os irmãos Grimm, Charles Perrault, Hans Christian Andersen e Esopo certamente fazem parte da alta cúpula deste segmento. Contudo, precisamos admitir também que os contos de fadas precisaram se diversificar e abrir sua mente para novas ideias, abordagens e conceitos. Quem não se lembra do polêmico livro Contos de fadas politicamente corretos, de James Finn Garner, que tanta dor de cabeça trouxe aos mais moralistas quando foi lançado por aqui?
Imagine então pegar uma personagem que originalmente foi vendida desde o início como uma vilã e transformá-la, a partir de um remake, numa quase anti-heroína... Pois bem: foi exatamente essa a sensação que eu tive ao final da sessão de Cruella, novo filme do diretor Craig Gillespie (responsável pelo também ótimo Eu, Tonya).
Cruella nos traz a história de origem da clássica "vilã" Cruella de Ville. Acompanhamos a ainda criança Estella (vivida pela atriz-mirim Tipper Seifert-Cleveland e por Emma Stone - por sinal, radiante do início ao fim - na fase adulta) pela infância difícil, o bullying na escola, o grande fantasma da diferença que pairava sobre ela já naquele tempo. Quando a mulher que a criou morre numa tragédia envolvendo dálmatas, o mundo daquela pobre menina rui. E não fossem os dois garotos e, posteriormente amigos inseparáveis, que conheceu naquele tempo, Jasper (Joel Fry) e Horace (Paul Walter Hauser), ela certamente não teria chegado à adolescência.
Pois ela chega e com ela o desejo de Estella se tornar estilista. Seu maior sonho: trabalhar para a Baronesa (Emma Thompson, espetacular!). Entretanto, uma reviravolta nos fatos a fará descobrir sua história verdadeira e com isso ela precisa tirar a patroa, rainha da moda em seu país, da jogada. Mais do que isso: ela quer ser a nova sensação do mundo fashion. E, com certeza, possui o talento e a vontade necessárias para isso.
Destaque imprescindível: adorei o trabalho que o diretor realizou em cima da indústria da moda e dos desfiles psicodélicos e exagerados. De vez em quando eu fuço nos sites de vídeos e me deparo com desfiles criados por grandes estilistas do momento e fico impressionado, em certas ocasiões, com o nível de paranoia e surrealismo que envolve esse setor. Há, inclusive, desfiles que quase beiram o irreal. Acreditem: para aqueles espectadores que tenham a intenção de chamar esse aspecto do longa de "isso é história de filme; na vida real não é bem assim", refaçam seus julgamentos. Há muita loucura e exagero nesse mercado, sim!
Entre o duelo de forças entre Estella (agora, Cruella) e Baronesa, acredito mesmo que o maior legado do filme foi ter criado meio que um conto de fadas às avessas. Digo isso porque sabemos de antemão - e quem não sabe, veja 101 dálmatas o quanto antes - o que Cruella se tornará com o passar dos anos. E ela não se encaixa na figura de princesa que a Disney sempre gostou de vender. Você pode até considerá-la um gênio incompreendido; já uma mocinha frágil, desprotegida, que espera ansiosamente o beijo do príncipe, jamais.
E não fiquem putos, ó amantes do maniqueísmo! Isso é justamente o que o longa de Gillespie tem de mais interessante a nos entregar.
Termino de ver a película e me deparo com vários canais sobre cinema na internet chamando essa versão de Cruella de "o melhor live action da Disney dos últimos anos". Quer saber? Eles (ou elas) não estão muito errados, não! Depois de me decepcionar com Alladin sem a eterna voz do Robin Williams, Dumbo e o mais recente Mulan, foi extremamente gratificante me deparar com uma produção tão bem cuidada e estilosa. Ficam, aliás, aqui meus mais entusiasmados cumprimentos a dupla Jenny Beavan e Tom Davies - que fez os figurinos maravilhosos -, à Fiona Crombie, responsável pelo design de produção bem como a toda a equipe que criou a direção de arte esplendorosa.
Cruella não é um estudo de caso sobre a origem da maldade de um ser humano, mas realiza uma interessante reflexão sobre mudança de paradigmas e nos mostra que mesmo as pessoas geniais que tanto idolatramos tem uma história de vida a qual não necessariamente nós, seus fãs mais ardorosos, iremos nos orgulhar. E isso também precisa ser mostrado de vez em quando, e não somente heróis e vilões trocando socos e pontapés.
P.S: eu confesso que tinha bronca da atriz Emma Stone. Acreditava que ela seria apenas mais uma invenção de hollywood. Mas aqui, para minha total surpresa e júbilo, ela queimou a minha língua. Mesmo.
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O arqueólogo mais famoso do cinema (Os 40 anos da franquia Indiana Jones.)
"O cinema precisa de heróis. Sem eles, a sétima arte não teria a menor graça". A frase é do meu pai que já se encontra no andar de cima e me ensinou a admirar os clássicos e também o bom cinema. E ele estava coberto de razão. Por mais que, em alguns momentos, Hollywood tenha se perdido com a cultura excessiva dos super-heróis e a eterna batalha contra a destruição do mundo, ela também nos ensinou a acompanhar a jornada de grandes homens e mulheres imbuídos do desejo de fazer a coisa certa. E, como sempre, fazer a coisa certa nunca é uma tarefa fácil. Que o diga o arqueólogo mais famoso da história do cinema, Indiana Jones.
Quando o diretor Steven Spielberg trouxe às telas o hoje cult professor de arqueologia que, nas horas vagas, entre uma aula e outra, enveredava por missões quase impossíveis, ele já era um cineasta renomado. Fosse pelo arrasa-quarteirão Tubarão ou pelo exuberante Contatos imediatos do terceiro grau, meu filme favorito dele. Contudo, ele ainda não havia trabalhado com o ator Harrison Ford, que chegou a ser rotulado pela indústria por um bom tempo como o "astro do século" e homem por trás de personagens célebres da história do cinema americano, como Han Solo e Deckard do também cult Blade Runner - o caçador de androides. A parceria tinha tudo para dar certo, tanto que deu e os fãs agradecem por isso até hoje. E seu pontapé inicial, Indiana Jones e os caçadores da arca perdida, está completando quatro décadas em 2021.
Na produção, o arqueólogo e desbravador procura pela arca da aliança, que contém as pedras com os dez mandamentos. E foi, com certeza, uma saga hercúlea encontrar o tão cobiçado objeto, alvo do interesse também de nazistas que fizeram de tudo para atrapalhar Indy e sua sócia, Marion (Karen Allen). Como eu era bem pequeno nessa época, tinha menos de cinco anos, não tive a honra de assistí-lo numa sala de cinema. E confesso aqui: me ressinto disso até hoje. Se o hoje clássico já é notável nos formatos DVD e Blu-Ray, imagina então na tela grande.
Três anos se passam e por conta do sucesso de bilheteria do longa original Spielberg e Ford retomam o projeto em 1984 com Indiana Jones e o templo da perdição, até hoje meu favorito de toda a franquia. Nele, Jones precisa encontrar as três pedras sagradas de uma tribo na Índia que foram roubadas por um inescrupuloso feiticeiro, também responsável pelo sequestro das crianças da mesma tribo e também por uma série de cultos malignos que envolvem sacrifício humano. Houve um período em que eu era tão fanático pelo filme, que era reexibido exaustivas vezes na Sessão da tarde, que cheguei a vê-lo mais de 20 vezes sem enjoar um segundo sequer!
Resultado: mais um sucesso de público e após mais um hiato, desta vez de cinco anos, Spielberg e Ford realizam em 1989 - no que se esperava, um encerramento de uma trilogia - Indiana Jones e a última cruzada. Aqui, Jones acompanhado de seu pai (vivido pelo eterno James Bond, Sean Connery), procuram pelo lendário Santo Graal enquanto tentam escapar, mais uma vez, de nazistas também loucos para pôr a mão na relíquia. Esse foi o primeiro filme da franquia a que eu assisti, pois na época acabara de completar 13 anos e fui correndo ao cinema para conferir. Obs: havia uma fila gigantesca na entrada da sala de projeção, fãs notórios e eternos da franquia.
E parecia que o legado proposto pela dupla havia chegado ao seu término. Pois é,.. Era realmente o que parecia. Mas não. Quase 20 anos depois eles reúnem, cabelos grisalhos, para realizar em 2008 o longa mais fraco da parceria, Indiana Jones e o reino da caveira de cristal, com direito a presença de um filho para Indiana Jones (interpretado pelo ator Shia Labeouf), fruto de seu relacionamento com a antiga sócia e amada Marion. Eles procuram pela estatueta que dá nome ao longa, enquanto cruzam de tempos em tempos com a maléfica Irina Spalko (Cate Blanchett) e seus lacaios soviéticos, sempre aptos a matar o professor e sua prole.
E para os que acham que acabou... Nada disso, meus caros leitores! Vem aí um quinto longa para o herói, mas dessa vez sem Spielberg na cadeira de diretor, que cede o lugar para o também interessante James Mangold, responsável por filmes como Logan, Copland e Ford vs. Ferrari. Mas não se preocupem, pois o herói original repetirá seu personagem, para júbilo dos fãs.
Ah! Acabei de me lembrar. E para que não me acusem de esquecimento, a franquia ainda teve entre os anos de 1992 e 1993 uma série televisiva derivada que durou duas temporadas e 28 episódios com o ator Sean Patrick Flanery na pele do arqueólogo e professor. Foi exibida aqui no país pela Rede Globo.
O melhor legado que consigo extrair de Indiana Jones foi o fato dele ter transformado minha adolescência num lugar muito mais divertido. Indy caçou tesouros ao redor do mundo, fugiu de tiros, encarou duelos (alguns de forma um tanto inusitada), pilotou aviões, saiu na porrada meio que de 15 em 15 minutos, brigou com o pai, foi traído por mulheres que amou, correu, se arrastou, sujou as mãos, cruzou com Hitler, esmurrou alemães e russos por onde passou, ufa!, acho que é mais fácil dizer o que o herói não fez. Ou AINDA não fez. Porque pelo andar da carruagem ele ainda tem muito o que aprontar e como bem disse um artigo que eu li sobre a chegada do quinto filme da franquia: "os heróis não envelhecem".
Quanto a vocês, jovens cinéfilos, que não pertencem à geração que acompanhou as aventuras e desventuras de Jones na devida época e acham que heróis mesmo quem produz com exclusividade é a Marvel e a DC, fica aqui o meu convite: procurem. Tenho certeza que se derem uma chance ao velho professor (e ele não parece demonstrar o menor interesse pela aposentadoria) não irão se decepcionar.
Agora é com vocês!
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Um fruto incomum (Estados Unidos vs. Billie Holiday, de Lee Daniels, é a história norte-americana se recontando de forma ácida, sem o brilho das eternas hipocrisias que a terra do Tio Sam tanto gosta de vender de tempos em tempos)
Adoro história e tenho uma relação um tanto quanto sarcástica com ela. Embora saiba que, muitas vezes, alguns historiadores não consigam fugir da ideia de que ela seja uma grande fabulação e, portanto, está sujeita as mais diversas, subjetivas e por vezes calhordas interpretações, ainda assim sempre que posso estou debruçado em algum livro sobre o tema. E desde já adianto: gosto dos mais diferentes assuntos. Guerra do Vietnã, Capitanias hereditárias, Inconfidência mineira, Feudalismo, etc etc etc. O céu é o limite quando estou dentro desse universo.
Contudo, é preciso dizer aqui que a história, a maneira como ela é contada muitas vezes, me faz pensar que ela (e nesse caso, leia-se: o sistema, as autoridades, etc) gosta de perseguir àqueles que não se adequam ao padrão imposto por um regime determinado. Todos aqueles que não obedeceram as regras do jogo, que não abaixaram a cabeça para os "donos do poder", de alguma forma pagaram um preço alto por isso. Veja o caso, por exemplo, da cantora Billie Holiday.
Em 1937 uma lei que revogava o linchamento que era imposto à comunidade negra norte-americana não passou no Senado e a cantora decidiu fazer de uma canção, "Strange fruit", um manifesto contra a injusta decisão. Os críticos musicais da época rotularam a canção dela de "uma interpretação lírica sobre a violência que era cometida contra o povo negro". Resultado: o governo federal se incomodou. Mais do que isso: era preciso tirar aquela mulher de circulação o quanto antes.
E para isso, o FBI, na figura do diretor Harry Anslinger, decidiu perseguir a artista por conta de seu vício de longa data em heroína. Pior: escondeu essa perseguição sob a falsa alcunha de que se tratava do combate às drogas e ao narcotráfico que assolava o país. Entretanto, muitas pessoas brancas também viciadas não sofreram a mesma compulsiva investigação. Teria, então, não passado tudo isso de racismo disfarçado?
Para esmiuçar questões como essa e tantas outras, mais de sete décadas depois o diretor Lee Daniels - do extraordinário Preciosa - realiza o excelente Estados Unidos vs. Billie Holiday e se debruça sobre um país que em nada difere do atual Estados Unidos da América da era Trump. Na verdade, ele só era naquele período mais cínico.
Billie Holiday (interpretada pela cantora Andra Day), à parte o fato de ter sido uma das maiores cantoras da história dos EUA, comeu o pão que o diabo amassou desde a infância e sabe como poucas o real significado da palavra sofrimento. E não bastasse isso viu sua vida ser devassada e rotulada nos mais perversos níveis por ditos "homens da lei" que não passam de figuras preconceituosas ao extremo. Anslinger (vivido por Garrett Hedlund), que no fim da vida chegou a ser homenageado pelo presidente Kennedy por "bons serviços prestados ao país", de tão covarde se presta a ter um bode expiatório na figura de um agente negro em ascensão, o jovem Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes). Tudo para que, no futuro, não seja lembrado como racista e que digam que ele também deu oportunidades de crescimento à pessoas da etnia.
Parece cruel e é. Billie é presa, sofre maus tratos, tiram-lhe sua licença para trabalhar, é obrigada a se apresentar ilegalmente e se não fosse suficiente o inferno astral pelo qual passou, ainda por cima fez escolhas de vida terríveis, como o péssimo gosto que sempre teve para homens violentos e que só fizeram lhe explorar. Sim, ela muitas vezes foi a própria responsável pela tragédia pessoal que viveu.
Como pano de fundo para realçar a história de provações e injúrias cometidas uma direção de arte impecável, a trilha sonora espetacular (cabe aqui um aparte: embora Andra Day seja uma cantora interessantíssima, aqui ela é dublada por Billie e achei a escolha do diretor acertadíssima, pois a musa do jazz é realmente insuperável) e um clima de nostalgia que sempre me aprisiona de cara. Como disse no parágrafo de abertura: adoro história e o passado sempre mexe comigo de alguma forma.
Assim como sua canção polêmica, motivo de todo o revés que sofreu, Billie também era um fruto estranho, incomum, pois não se submetia aos ditames do que a América considera correto, polido, de bom tom. Durante uma entrevista que ela concede o jornalista lhe pergunta: "por que você simplesmente não acata as decisões do governo? Até quando vai aturar todo esse sofrimento?". Porém, trata-se de um homem branco. E isso diz muito sobre o país no qual ela vive. Pessoas como ela não podem ter opiniões ou fazer escolhas próprias. Precisam, isso sim, ser marionetes de uma estrutura tendenciosa, fabricada para colocar toda uma classe no seu devido lugar.
Ao final da projeção fico me perguntando o que faltou para Estados Unidos vs. Billie Holiday entrar na lista de indicados ao Oscar desse ano. Era, pelo menos para mim, evidente ser uma produção bem melhor do que ao menos dois dos oito indicados. Deve ter faltado lobby para tanto. Mas enfim... Quem perdeu com isso foi a própria Academia de artes e ciências cinematográficas que realiza o evento.
E quem como eu é fascinado pela história, pelo ontem e pelas eternas distorções que o mundo promove de tempos em tempos, tem aqui um prato cheio para refletir nessa época de tanta alienação e falta de caráter.
P.S (eu quase deixei de fora, mas minha língua coçou): se puderem, conheçam toda a cinematografia do diretor Lee Daniels. É das melhores coisas que apareceram em hollywood nos últimos anos.
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Parece que vou a um lugar muito escuro (Saint Maud, de Rose Glass, é a subversão à lógica dos filmes de possessão e também um estudo de caso sobre a intolerância da fé.)
Definitivamente a fé, para a sociedade contemporânea, virou uma reles moeda de troca em meio a uma humanidade perversa e cínica que adora se esconder atrás de estereótipos religiosos para justificar suas intenções malignas. E não é preciso irmos longe para percebermos toda essa distorção comportamental. Ela está por aí, a olhos nus, fazendo das suas em tempo integral. E pior: com um sorriso de deboche nos lábios.
Um colega meu das antigas, também cinéfilo apaixonado como eu, aparece aqui em casa com uma cópia do filme Saint Maud, da diretora Rose Glass, que venho correndo atrás já há algum tempo. Ele me diz que vou adorá-lo justamente porque traz em suas entrelinhas uma reflexão sobre esse aspecto mórbido da sociedade. E não está enganado. Pelo contrário. Me deparo - isso sim - com um longa de uma ferocidade assustadora e brutal desde o primeiro fotograma. Daquelas histórias que você precisa assistir não importa o quanto ela o incomode. E tudo isso porque está refletindo um traço visceral desse ser humano dos chamados "novos tempos".
Maud (Morfydd Clark, absolutamente imprevisível) é uma jovem cuidadora que passou por um revés recente num hospital onde trabalhava e foi desligada da função. É contratada para tomar conta de uma ex-coreógrafa, Amanda Kohl (Jennifer Ehle), que encontra-se impossibilitada de andar por causa de um dano na coluna cervical. Conhece a rotina da casa, bem como os costumes de sua cliente. E embora ela pareça um tanto ousada em seus costumes para o seu gosto, tudo leva a crer que ambas se darão bem.
O problema: Maud vê na coreógrafa e, principalmente, em suas escolhas de carreira, uma vida suja, polêmica, voltada para o mal. Quando se depara com uma matéria na internet acerca de um espetáculo do qual a artista participou em que ela se refere a sua relação com a arte como "às vezes parece que vou a um lugar muito escuro", ela fica horrorizada e, mais do que isso, acredita que Amanda está sob o efeito de uma espécie de possessão. Em outras palavras: para Maud, é o demônio que rege a vida de sua cliente. E ela, por sua vez, se vê na condição de uma emissária de Deus e, por isso, tem a obrigação de curá-la desse mal, afastando-a de qualquer tentação.
Nesse momento aviso aos leitores da crítica e possíveis espectadores do longa, que fiquem de olhos abertos para importantes entrelinhas que surgirão ao longo da narrativa. Não ponham a mão no fogo totalmente por Maud. Há, ao contrário, muito sobre o que duvidar no que diz respeito ao caráter da jovem cuidadora. E foi nesse exato momento que eu entendi porque o meu colega das antigas (lembra dele?) me emprestou esse filme.
É possível fazer uma correlação evidente entre Maud e muitos membros de certos segmentos religiosos do nosso país e também do mundo. E me refiro à eterna mania que certos religiosos têm de ver o mal, o pecado, o errado, apenas nos outros, se escondendo atrás de uma falsa aura de pureza. Não somente isso: nunca presenciamos de forma tão forte um desserviço tão grande à chamada liberdade religiosa. Qualquer mentalidade ou raciocínio que fuja da cartilha desses segmentos extremistas é visto como "antiético", "anticristão", "contra a moral e os bons costumes" ou atenta "contra a moral divina", como se somente eles forem os verdadeiros detentores da palavra de Deus.
Ou como bem diria o saudoso Renato Russo em sua canção Faroeste caboclo: uma mentalidade confusa, na linha "Se dizia que era crente, mas não sabia rezar".
Detalhe: poderia até dizer com folga que Maud, como personagem, é praticamente uma figura metonímica (ou seja: representa a parte pelo todo de um sistema desigual, cafajeste e que prima por conduzir a vida alheia - no caso, a daqueles que não se submeteram à vontade desta estrutura contraditória - segundo um modelo repressivo, pautando ideias, amizades, lugares, onde devemos ir, o que pensar, o que falar, etc), parcela de um projeto que visa à exclusão de qualquer possibilidade de diferença.
Contudo, é preciso aquietar àqueles que possam estar temerosos com o fato de que este seja um filme gospel (e, portanto, tedioso). Nada disso! Saint Maud é terror dos bons, assustador em suas intenções e sabe deixar o jump scare e a cereja do bolo para o final.
Vejo no longa de Rose Glass uma desconstrução (quase uma subversão) dos chamados filmes de exorcismo e a luta entre o bem e o mal. Aqueles espectadores que continuam idolatrando O exorcista, de William Friedkin, como o grande clássico do gênero, certamente verão aqui um interessante - e remodelado - exemplar. Entretanto, não esperem pelo modelo clássico. O terror, a meu ver, sempre foi mais do que apenas sustos, padres portando bíblias e água benta e adolescentes endemoninhadas.
Agora é com vocês. Mais do que isso e eu entrego todo o élan do filme (e isso não se faz!).
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Os novos peregrinos (Nomadland, de Chloé Zhao, é seco, amargo, quase devastador. E ainda assim um painel dos Estados Unidos da América que você não pode deixar de conhecer. De jeito nenhum.)
Eu tinha por volta dos meus 20 anos de idade quando procurei numa biblioteca de bairro informações a respeito do regime de hipotecas que rege o mercado imobiliário norte-americano. Eu queria entender o que um cidadão da terra do Tio Sam precisava fazer para ser dono de sua própria residência. E a resposta que chegou até mim foi: fiquei extremamente horrorizado. A sensação que me povoou durante os meses seguintes foi a de que estava diante de uma sociedade manipulada, que gosta de ser feita de escrava.
E como bom cinéfilo que sou, durante anos pensei: "Hollywood jamais exporá esta triste realidade num longa-metragem. É barra pesada demais e pior do que isso: eles não gostam de mostrar suas derrotas e distorções com muita facilidade".
Mas não é que uma cineasta chinesa decidiu falar do legado produzido por essa cultura sórdida e além disso se tornou favorita ao prêmio de melhor direção no Oscar desse ano? Sim, podem acreditar. A polêmica temática sobre moradia nos EUA chegou às telas do cinema feita de forma seca, crua, mas não menos visceral. E em tempos de crise financeira global e "a maior nação do mundo" mostrando que, na verdade, nunca foi tudo isso que vendeu para o resto do planeta, vale a pena dar uma fuçada nesse lamaçal.
Refiro-me à Nomadland, filme da diretora Chloé Zhao, e a verdade sobre "A América será grande novamente", promovida pelo governo antecessor.
Acompanhamos a saga de Fern (Frances McDormand), uma mulher que simplesmente cansou da ideia de passar a vida inteira trabalhando por uma casa que no final das contas nunca será dela, pois a hipoteca foi criada com a clara intenção de mantê-la trabalhando até morrer, sob a desculpa de que no final ela realizaria o sonho da casa própria. Pura ilusão! E ela então decide morar em seu trailer, viajando de cidade em cidade em busca de pequenos trabalhos temporários e bicos.
Sua melhor fonte de renda é um trabalho na Amazon que não dura o ano inteiro e por isso ela precisa preencher a lacuna com outros serviços. Do contrário, não conseguirá manter suas despesas pagas. E são muitas. Qualquer defeito no veículo, doença por menor que seja ou deslize ocorrido acarretará num ônus e isso pode afetar sua renda básica. Logo, ela vive uma vida cigana, sempre na berlinda.
E durante sua travessia conhece muitos como ela, divide suas experiências e lamentações. Eles são os novos peregrinos dessa nação que, outrora, teve que viajar muito, bater muita perna, antes de fincar território num lugar que pudesse chamar de seu. E essa é exatamente a melhor história do filme. É quando conhecemos os Estados Unidos da América que os tabloides, a Casa Branca e a indústria cultural não querem que você, espectador, conheça. Já que esse país não venderia ao restante do mundo a pecha de grandioso, de maior potência mundial, que eles volta e meia apregoam em seus discursos e eventos majestosos.
Houve um momento da película em que me peguei relacionando Fern e todas aquelas pessoas que vivem na estrada com o jovem Chris McCandless, personagem de Emile Hirsch no filme Na natureza selvagem, de Sean Penn. A única diferença é que Chris decidiu abandonar sua casa e família porque não conseguia viver sob a ótica do sistema (ou seja: entendia sua vida dentro de uma ótica marginal). Já Fern desistiu do sistema por considerá-lo falho e injusto.
E ela vê no discurso daqueles que não aceitam seu estilo de vida ou tentam vender para a sociedade a ideia de que o país fez a melhor escolha para todos uma espécie de manipulação muito bem construída pelos governantes. Tive, inclusive, a impressão numa determinada cena de que ela olhava para seu interlocutor como se ele fosse um indivíduo que acabasse de passar por uma lobotomia, tamanha a disparidade entre suas opiniões.
Ao final da projeção o que fica de mais evidente é a sensação de niilismo e cansaço daqueles que lutam contra a maré para sobreviver um dia de cada vez, pois foi apenas isto que lhes sobrou do chamado sonho americano há tantas décadas acalentado.
Nomadland pode até não ganhar o Oscar de melhor filme e ser vencido, como tantos outros no passado, pelo eterno moralismo da academia. Filmes corajosos como O segredo de Brokeback Mountain e O resgate do soldado Ryan já viveram essa sina, perdendo para longas de gosto discutível e que perderam relevância meses depois da premiação. Contudo, dentre todos os candidatos desse ano e por tudo o que vem acontecendo no país nos últimos quatro anos, seria o postulante ideal ao prêmio. E alguns talvez me perguntem nesse momento o porquê.
Respondo: porque às vezes, por mais dura que seja a verdade, e por mais que não queiramos enxergá-la, seja por vergonha ou covardia, ela precisa ser mostrada e reconhecida. E isso é mais justo do que vivermos eternamente na mentira.
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Reloading... (Matriz ao vivo na Bahia, da cantora Pitty, é muito mais do que apenas música, do que show, do que celebração. É uma grande provocação artística e também um sentimento vivo de recarregar as baterias antes de seguir em frente)
Música é uma coisa louca, não é mesmo? Quando menos se espera ela subverte completamente a lógica e explode qualquer resquício de convicção que nós tínhamos até então.
E o mercado fonográfico está certo em dizer que há artistas e artistas. E cabe a nós, ouvintes, decidirmos o que realmente nos interessa musicalmente ou não e também entender quando o artista entra naquele momento da carreira que antecede uma virada.
A cantora Pitty, por exemplo, me interessou desde que a ouvi pela primeira vez na rádio (digo, na época em que eu ainda ouvia rádios comerciais, antes da popularização do you tube e do Spotify). Artista baiana que preferiu a fúria do rock ao axé e ao trio elétrico que Dodô e Osmar eternizaram. E desde o primeiro momento eu percebi nela um percentual de revolta bastante controlado, não evidente, que fazia com que o seu charme (e, lógico, sua voz) aflorassem.
O tempo passou, a cantora gravou os encantadores Admirável chip novo (2003), Anacrônico (2005), Chiaroscuro (2009) e Setevidas (2014), bem como seus álbuns ao vivo, de turnê, e o projeto paralelo Agridoce. E eis que chega a hora de desbravar um novo caminho.
O nome dele: Matriz, gravado no ano passado. E eu percebo uma pegada diferente. Daquelas que me fazem pensar na hora: "eu preciso ver a versão show disso, ouvir a moça cantar diante do seu público e só então tirar ou confirmar minhas próprias conclusões". Mais: eu consigo ouvir uma cantora modificada, remodelada.
E eu estava certo.
Matriz ao vivo na Bahia, realizado um ano após a versão de estúdio, é o momento reload de Pitty. De recarregar as baterias, fazer as pazes com o passado glorioso, entender tudo o que funcionou até agora, antes de seguir em frente rumo a um novo horizonte. E ela se sai extremamente bem nessa função, sem deixar de lado sua postura de protesto e as letras ácidas.
Para os fãs do óbvio, do comercial, aqueles que querem a confirmação de suas expectativas, há muito do que se orgulhar aqui. Seus maiores sucessos - "Memórias", "Na sua estante", "Teto de vidro", "Dançando", "Equalize", "Me adora", "Máscara", entre outros - estão presentes em apresentações arrepiantes. E o público canta junto o tempo todo.
Já para quem busca novidades e desvios de rota há também um momento desabafo total (quem ouvir o disco vai saber do que eu estou falando na hora!) pelo caminho equivocado que o país vem tomando nos últimos anos. A própria cantora diz antes de tocar a música que "não imaginava que fosse precisar cantá-la de novo, que preferia deixar o passado no lugar dele", mas às vezes o que a vida nos propõe é não abandonar a batalha. E com isso ela transforma a canção num manifesto estiloso, que arrebata aplausos de seus fãs.
No final das contas e, ao fim de mais de uma hora e quarenta de puro rock e adrenalina, nos deleitamos com o que a MPB - quando quer - pode oferecer de melhor. Sim, eu falei MPB. Rock nacional também merece essa classificação, embora muitos fanáticos do gênero não gostem de ouvir essa correlação (e isso é problema exclusivo deles!).
Matriz ao vivo na Bahia é intenso, é melódico, é ternura, é música da mais alta qualidade, mas principalmente, é aquele mergulho que precisamos dar antes de tomar a decisão de mudar todo o trajeto e pegar um novo caminho. E Pitty está pronta para essa nova travessia, pois pesquisou, se atualizou, buscou novos ritmos e parceiros. Como disse no título deste artigo: fez um interessante reloading.
Qual será o próximo capítulo desta história? Esta é melhor parte: o tempo dirá. E ela, com certeza, não tem a menor pressa de vê-lo chegar.
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É o que acontece quando passamos do limite (Seria simples resumir Bela vingança, de Emerald Fennell, como um filme revanchista ou um libelo do empoderamento feminino, mas ele não é isso. Na verdade, ele se debruça sobre a eterna mania que a humanidade tem de fazer dos seus semelhantes cobaias ou seres inferiores)
Definitivamente a humanidade é um estudo de caso sórdido. Por mais que eu reflita sobre ela, chego à conclusão de que não passamos de um grupo gigantesco de pessoas voltados à um moral fetichista, impregnada de vaidade excessiva e que só pensa em usar o próximo a seu bel prazer (e que se danem as consequências disso!).
Olhemos ao redor por um mero instante e certamente nos depararemos com versões as mais diversas desse terrível animal que é o ser humano. Lógico que não são todos, mas também não são poucos. E nos últimos anos a demanda por este tipo de criatura contraditória e vil cresceu e muito e a mentalidade política e social é bastante responsável por isso. Não sei bem onde iremos parar nos próximos anos, mas certamente o cenário que vem se construindo não é nada bonito.
E assim como existem aqueles que "deixam pra lá", que "não tem nada a ver com isso", que "só se importam com suas próprias vidas", há também um outro tipo mais ácido: aquele que decide revidar, que não vai deixar barato ou morrer no esquecimento. E Cassandra (Carrey Mulligan), protagonista de Bela vingança, longa de estreia da diretora Emerald Fennell, é dessas.
Ficou marcada de forma perturbadora por uma tragédia ocorrida com uma amiga quando cursava Medicina na faculdade e não viu os algozes desse crime serem punidos. Na verdade, os viu prosperar, obterem sucesso, construírem família, tudo com o consentimento da leniência que é dada ao universo masculino toda vez que comete erros por um cultura eminentemente misógina. E ela percebe então que se não tomar uma atitude ela própria nada mudará. Nunca. E com isso trama sua vingança com requintes de sordidez proporcional à que sofreu.
Há um aspecto na vida de Cassandra que me fez lembrar do conflito existencial que era a vida de Brandon, o viciado em sexo vivido por Michael Fassbender em Shame, de Steve McQueen. Enquanto ele não consegue se libertar de sua vida lasciva, mesmo quando encontra uma mulher disposta a dividir sua vida com ele, Cassandra simplesmente não consegue abandonar a ideia de vingança e seguir em frente com sua existência. Seus pais percebem isso, a mãe de sua amiga percebe isso, mas ela simplesmente não consegue desviar da rota que planejou.
E isso sempre - ou quase sempre - costuma cobrar um preço amargo no final.
Entretanto, ela também possui mais motivos para desconfiar da aproximação dos demais (principalmente de um antigo colega daquela época). Afinal de contas, quando estudante, testemunhou de perto a covardia que era dirigida às mulheres, que ainda por cima muitas vezes, tiveram que dissimular ou desconversar sobre o assunto, caso contrário teriam suas carreiras ou vidas destruídas. E isso, evidentemente, é um tapa na cara de quem não pode ser diferente da maioria que faz e acontece com a aprovação de um sistema corrupto e hipócrita.
Gosto particularmente da trilha sonora do filme, que poderia apelar gratuitamente à Beyoncés e Katy Perrys, mas prefere tomar um outro caminho. Ela meio que me fez pensar não somente na perda da inocência como também numa nova abordagem sobre temáticas como canções de ninar, contos de fadas e todo o universo infantil. (Detalhe: prestem atenção numa versão modernizada de um música de sucesso da cantora Britney Spears. Achei o arranjo não somente interessantíssimo e inovador como ele também antevê todo o macabro desfecho da trama).
Passada tanta dor e tanto desrespeito, o legado que o filme de Emerald me trouxe foi: não caiam na tentação de transformar o longa num libelo a favor do empoderamento feminino. Ele é muito mais do que isso. Bela vingança fala, no final das contas, do que acontece quando nós, seres humanos, passamos do limite e deixamos de respeitar o outro. E quando esses seres humanos pertencem a uma classe privilegiada, então, é um caos generalizado.
Vai ter muito homem conservador ou velha guarda chamando essa produção de revanchista ou "cheia de mágoa" e desde já adianto: eles provavelmente não entenderam nada do que viram e ainda por cima defendem o outro lado, por uma questão de identificação pessoal. Mas isso é problema deles, não do filme, que é direto em suas intenções (às vezes até demais).
P.S (ou um palpite): pelo que eu tenho visto na temporada de prêmios desse ano a atriz Carrey Mulligan é uma forte candidata ao Oscar de melhor atriz. Eu certamente votaria nela se fosse membro da Academia.
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A terra da consequência (Depressão americana e paixão bandida: Dreamland, de Miles Joris-Peyrafitte, pode não ser o novo Bonnie & Clyde, mas é um interessante drama sobre a dificuldade que os americanos têm em lidar com adversidades)
A América (ou simplesmente Estados Unidos), embora se venda para o resto do mundo como "a grande nação", sempre encontra uma maneira de fugir da discussão ou criar um atalho toda vez que sua história sai dos trilhos. Ela simplesmente não gosta de contar para os outros suas histórias tristes, decepções e desvios de percurso. Que o diga o dos tempos que sucedem a queda da Bolsa de Nova York em 1929, popularmente conhecidos como depressão americana!
Contudo, gostem nossos brothers americanos ou não, é preciso que conheçamos também esse outro lado da história do país. Ou seja: faz-se necessário que vislumbremos um versão do Tio Sam que não a de glórias e conquistas extraordinárias. E por incrível que pareça Dreamland, filme do diretor Miles Joris-Peyrafitte, que eu estou querendo assistir já há algum tempo e só agora consegui, me fez pensar exatamente nisso.
Acompanhamos a trajetória de Eugene Evans (Finn Cole), que desde criança é testemunha da dificuldade pela qual seus pais passam para sobreviver no Texas em crise financeira. Aquilo que a natureza, com suas tempestades de deserto, não destruiu os bancos fizeram o favor de tomar. A mera palavra sobrevivência ganha uma nova conotação num lugar como esse, em que simplesmente colocar comida na mesa já é uma enorme façanha. Nem mesmo seu pai biológico aguentou o rojão e preferiu ir embora, deixando a esposa e o filho para trás.
Por isso, qualquer trabalho ou missão que consiga levar o tempo das vacas magras para longe é visto com bons olhos. E nesse exato momento a melhor oportunidade em voga é a recompensa para capturar a ladra de bancos Allison Wells (Margot Robbie), que se encontra foragida. E a princípio é exatamente isso que o garoto faz, acompanhado do amigo, em meio a uma multidão de desesperados como ele. Tudo para salvar a fazenda da família.
Quando descobre que a fugitiva está escondida em seu celeiro ele prefere desacreditar da versão vendida pela polícia e os tabloides sensacionalistas (no caso, a de que ela seja uma assassina fria e calculista, chegando a tirar a vida de uma criança em seu último assalto) e se propõe a ajudá-la a fugir para o México.
Entretanto, ao longo dessa jornada ele entenderá a duras penas que nem toda verdade é fácil de ser dita como se aparenta.
E é nesse momento que uma frase dita a ele por Allison durante uma de suas conversas faz todo o sentido para entender a realidade que os EUA passa naquele período: "Eugene, esta aqui é a terra das consequências". E ela está cobertíssima de razão.
O grande legado proposto pelo longa, que é estiloso e bem produzido, é o fato de percebermos o quanto essa nação que sempre se vendeu como gigantesca e autossuficente para o resto do mundo também, quando precisa, recorre a artimanhas, crimes e a moral dúbia para realizar seus sonhos ou pagar suas dívidas. E nisso ela não difere de nenhum país emergente ou subdesenvolvido. Não mesmo. Ela perpetra atos sórdidos que podem levar a consequências ainda mais terríveis.
Talvez o único revés do filme surja para aqueles que esperam ansisos que Dreamland seja uma espécie de novo Bonnie & Clyde, cheio de tiroteios e perseguições. Diferentemente do longa dirigido por Arthur Penn, com Warren Beatty e Faye Dunaway na pele da dupla de ladrões, esta produção aqui não tem a mesma pretensão ou pegada.
Mas não se entristeçam totalmente. Há um interessante estudo de caso sobre o sofrimento humano presente aqui. Basta que os espectadores vejam a película de mente aberta e entendam que "a terra dos homens livres" - como eles bem cantam no seu hino nacional - também já passou por períodos tenebrosos e nem sempre foi essa potência mundial que vemos alardeada pela grande mídia.
Para completar o pacote da diversão, vale pela beleza apaixonante da Margot Robbie e a interessante reconstrução histórica bem como o design de produção.
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O inimigo do meu inimigo é meu amigo (Os 30 anos de O silêncio dos inocentes, de Jonathan Demme)
O gênero policial mexe comigo. Mesmo. Desde que eu me entendo por cinéfilo reservo uma parte do meu tempo a desfrutar da nobre arte da criminologia e seus personagens sórdidos e maquiavélicos. E quando ainda por cima esse gênero vêm mesclado com o mais puro terror - e não me refiro ao terror como sinônimo de jumpscares ou criaturas sobrenaturais, e sim àquele capaz de nos fazer ficar paralisado, incomodado diante do medo - aí então eu me rendo de vez. E é preciso deixar claro para os leitores desta humilde crítica: poucos até hoje conseguiram me deixar desse jeito, pois é preciso talento (e muito) para tal.
Dito isto, é com enorme prazer que vejo o hoje clássico O silêncio dos inocentes, do diretor Jonathan Demme, chegar a três décadas de existência sem perder o seu glamour e mesmo sua elegância (sim, o longa é de uma elegância assustadora!).
O longa de Demme nos conta a história da jovem agente do FBI, Clarice Starling (Jodie Foster), que investiga o paradeiro do serial Killer Buffalo Bill, responsável pelo assassinato de inúmeras jovens. E para isso ela precisará recorrer à ajuda de um outro serial killer: o ardiloso, mas não menos estiloso, Hannibal Lecter (Anthony Hopkins, naquela que eu considero até hoje a melhor interpretação de um vilão na história de hollywood).
Embora tenham modus operandis completamente distintos - Hannibal é charmoso, meticuloso, aprecia cada momento que tem com suas vítimas, e não se nega a saboreá-las quando precisa (daí o apelido de "canibal"); já Buffalo é mais visceral, animalesco e está realmente interessado é na pele de suas vítimas, com a qual faz roupas um tanto quanto mórbidas - Clarice acredita piamente que somente o Doutor trancafiado na ala de segurança máxima poderá ajudá-la a encontrar o seu assassino. Em outras palavras: ela meio que recorre ao velho ditado "o inimigo do meu inimigo é o meu amigo" para resolver esse mistério.
Uma importante informação cabe aqui para os marinheiros de primeira viagem que nunca viram o filme: não deixem de perceber e levar em consideração a relação tensa entre Hannibal Lecter e o chefe de clarice no FBI, o agente Jack Crawford (Scott Glenn). Trata-se de uma linha tênue importantíssima para nós, espectadores, entendermos o que Lecter fez no passado de tão assustador. Repito: não percam esta entrelinha vital.
Já quando o assunto são os bastidores do filme, isso por si só renderia um longa próprio. Antes de O silêncio dos inocentes, o diretor Michael Mann já havia introduzido o personagem Hannibal Lecter no seu longa de 1986 Caçador de assassinos, que é uma adaptação do romance Dragão Vermelho, livro anterior de Thomas Harris, criador do personagem, e trazia o ator Brian Cox na pele do psicopata. Contudo, o filme foi um fracasso retumbante de bilheteria e os estúdios acreditavam que seria perda de tempo voltar a esse universo.
Entre os atores de peso associados ao projeto, temos o ator Gene Hackman - que chegou a comprar os direitos de adaptação de O silêncio dos inocentes (e houve até a possibilidade de que ele dirigisse o projeto) -; Sean Connery, que recusou interpretar Hannibal e a belíssima Michelle Pfeiffer, que pediu uma cachê muito acima do teto da produção para incorporar Clarice. Entretanto, confesso aqui, acho que a desistência dos dois fez muito bem ao filme. Não acredito que a produção tivesse o mesmo impacto ou repercutido por tantas décadas com a dupla (que chegou a dividir tela em A casa da Rússia). Ambos me parecem, à primeira vista, escolhas melhores para outro tipo de cinema e não uma película criminal cheia de elementos assustadores.
O filme ganhou cinco oscars (filme, diretor, ator, atriz e roteiro adaptado) e juntou-se à Aconteceu naquela noite, de Frank Capra e Um estranho no ninho, de Milos Forman, como os únicos longa-metragens na história da premiação até hoje a faturar as cinco principais estatuetas. E olha que o filme de Demme chegou a ser considerado, à época, um azarão. Tanto que teve seu lançamento adiado para que a Orion Pictures, que produziu o longa, divulgasse seu carro-chefe: o também vencedor do Oscar Dança com Lobos, de Kevin Costner.
O custo de produção ficou abaixo dos 20 milhões de dólares (para uma arrecadação de quase 280 milhões ao redor do mundo). A participação de Hopkins em todo o longa não chega à meros 25 minutos (e, mesmo assim, ele está tão avassalador em sua criação que parece dominar toda a trama, tanto que acabou por definir a imagem moderna do psychokiller como a conhecemos até hoje). E segundo o seu criador, o escritor Thomas Harris, a história era meio que baseada no relacionamento do criminologista Robert Keppel e do serial killer Ted Bundy, que o ajudou na investigação dos crimes do assassino de Green River. Em suma: aquele tipo de projeto que você pensa na hora "tem tudo para dar errado, não importa o quanto eu deseje realizá-lo; ninguém vai querer ver isso. Simplesmente não vende". E então você quebra a cara, pois a sétima arte também é uma caixinha de surpresas.
E ao fim, o que ficou de legado para os fãs mais apaixonados, é: uma obra-prima do cinema criminal (mas que muitos, embora os mais incrédulos teimem em negar, veem como um filme de terror - e há razões para isso!), que entrega uma das interpretações mais extraordinárias da história do cinema (pergunte a qualquer nerd cinemaníaco quais os maiores vilões da história do cinema e a grande maioria dirá: Darth Vader, Hannibal Lecter e mais oito. Podem me cobrar!) numa época em que a década de 80 mal acabara e ainda nos fazia pensar em seus Freddies, Jasons e companhia ltda. Logo, foi uma retomada do próprio cinema americano.
E isso, em se tratando de um indústria como hollywood, nunca será pouca coisa...
P.S: lembro-me até hoje do final do longa quando Hannibal liga para Clarice do orelhão (ela está na cerimonia de formatura) e diz que está indo embora. Podem até me chamar de sádico, mas que eu torci para ele se dar bem no final, ah eu torci!
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Réquiem apaixonado (Babenco - alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou, de Bárbara Paz, é a melhor carta de amor que o cineasta argentino poderia receber em toda a sua vida.)
Como começamos a falar sobre um gênio, alguém que consideramos um gênio desde a primeira vez em que o vemos, acompanhamos tudo o que faz, e ainda assim não percebemos que ele é lembrado como realmente merecia? Resposta (minha e unicamente minha): deixamos sua história de vida registrada de forma a não persistirem dúvidas sobre ela.
E foi exatamente isso que a mulher que o acompanhou até o último dia da sua vida fez.
Em 2015, quando o cineasta argentino Hector Babenco realizou seu último longa, Meu amigo Hindu, inspirado na sua própria experiência de vida e na aproximação da morte (Hector lutava contra um linfoma já há algum tempo), ele colocou no roteiro uma conversa entre ele próprio - interpretado pelo ator Willem Dafoe - e a dita cuja. Mais do que isso: tentava convencê-la a deixá-lo vivo mais um tempo, para que pudesse realizar mais um filme. E em determinado momento a morte lhe perguntava se ele pretendia falar mal dela em seu filme.
No ano seguinte Hector falece, aos 70 anos, e nos deixa um legado único dentro da cinematografia brasileira. Contudo, o mais importante, é que sua última companheira, a atriz Bárbara Paz realizou anos depois um documentário sobre o cineasta, sua vida, sua paixão (no caso, a sétima arte) e, principalmente, transformou justo a morte num personagem humano, singelo, repleto de ternura e extremamente necessário para entendermos este grande homem.
Com Babenco - alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou, a jovem Bárbara - que se mostrou uma grata surpresa, indo de mera participante do antigo programa Casa dos Artistas à interessante realizadora em seu primeiro longa - nos apresenta um réquiem repleto de sentimento e paixão. E antes que me perguntem do que se trata um réquiem, pego de empréstimo algumas definições que vejo na internet, como por exemplo: 1. Prece ou louvor feito pela igreja aos mortos, 2. Composição ou música que tem o texto litúrgico da missa dos mortos como tema.
E é preciso abrir o jogo logo de cara: dizer que Babenco não é co-diretor neste extraordinário documentário é, no mínimo, desonroso com o mestre. Ele está a todo momento guiando essa jovem e promissora cineasta, apontando caminhos, ângulos de câmera, escolhas possíveis de narrativa, fazendo confissões, expondo erros que cometeu no passado por ser muito vaidoso ou intolerante.
Como pano de fundo de luxo seu legado (como comentei acima). Vemos sua filmografia brilhante passar diante de nossos olhos e me encanto de novo por me reencontrar com clássicos como Pixote - a lei do mais fraco, O beijo da mulher aranha, Lúcio Flávio - passageiro da agonia, Ironweed, Carandiru e tantos outros. Sinto vontade de revê-los na mesma hora. Quem sabe o faça nos próximos dias e queira resenhá-los também. Se há um diretor na história do cinema nacional cuja carreira eu não tenha reprimendas é Hector. Coloco-o junto à artistas como Pedro Almodóvar, Werner Herzog, Federico Fellini e Charles Chaplin, formando um grupo de gênios dos quais sempre sou suspeito para falar, pois adoro tudo o que fazem.
Há uma passagem no documentário em que Babenco alega não ter realizado ainda sua grande obra. Cá entre nós... Tenho minhas dúvidas. Um homem que viajou doente para a Amazônia, só para rodar um filme complicadíssimo (e ainda operou entre um estágio e outro da produção); expôs sua própria condição como presidiário e teve a honra de ver Jack Nicholson e Meryl Streep como seu casal de protagonistas e ainda assim não realizou seu apogeu? Duvido! Só pode mesmo ser falsa modéstia.
Entretanto, ele também era um homem ácido, cheio de ironias e questionamentos, que se recusava a morrer antes de deixar claro para o mundo que havia realizado sua missão na terra. Vivia dizendo que quando morresse desejava ir para Hong Kong de alguma forma (fosse como espírito ou num caixão). E definitivamente era um apaixonado pelas mulheres. Que o diga uma das últimas cenas do filme, numa sala repleta de amigos de carreira e da vida!
É dessa mistura de amores e fúria, paixão e deboche, que nos inebriamos com um projeto documental bárbaro e de uma verdade avassaladora do primeiro ao último fotograma. E o mais importante: do jeito exato que o próprio Babenco tanto gostava.
Ao final da sessão - que foi exibida na última semana na programação da Globo News -, enquanto os créditos passam, eu fico sentado no sofá refletindo sobre o que vi. E chego à conclusão de que mais uma vez, como vem acontecendo com muita frequência neste país nos últimos anos, perdemos um grande homem e um fantástico artista. Que pena! O país precisa de mais diretores como Babenco e mais filmes como esse.
P.S: o fato de Babenco - alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou ter vencido o Festival de Veneza como melhor documentário e ter sido o representante brasileiro na disputa do Oscar de melhor filme internacional deste ano é apenas um pequeno detalhe que abrilhanta ainda mais a importância deste grande filme. Não tentem enxergá-lo além disso!
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Cogito ergo sum (O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, completa três décadas de existência sem perder um segundo de seu charme e relevância cultural.).
Quando ainda me perguntam o que eu venho achando do mundo e das pessoas que vivem nele eu quase sempre respondo: "é uma questão de sobrevivência e, enquanto eu estiver lendo e pensando por minha própria cabeça, é uma luta que ainda vale a pena". Ou seja, não consigo me imaginar distante do conhecimento nesse campo de batalha. Não é simplesmente uma escolha ou um hobby, mas uma necessidade biológica, como beber água ou almoçar. Não consigo me ver dentro de uma realidade diferente desta.
Duas semanas atrás eu me deparei com uma matéria na Folha de São Paulo que falava sobre os 30 anos de publicação do romance O mundo de Sofia, do escritor Jostein Gaarder, e eu imediatamente me peguei relembrando de quando o li pela primeira vez e, principalmente, da série de lacunas impressionantes que ele deixou em minha cabeça. Provavelmente não estava, na época, habilitado para entender 10% do conteúdo daquelas páginas. Mais: não tinha ainda a formação desejada para captar sua essência, tendo em vista meus pouco mais de 15 anos. E ainda assim, saí da experiência transformado.
Passadas três décadas tomo a decisão de relê-lo e com que alegria descubro o quanto Gaarder nos entregou uma obra brilhante, sedutora e que não perdeu um segundo sequer de sua relevância cultural. E tudo isso falando de filosofia!
Acompanhamos a saga de Sofia Amundsen, uma garota de apenas 14 anos, que começa a receber em sua caixa de correio uma série de cartas um tanto quanto curiosas, trazendo perguntas sobre o sentido da vida e dela própria existir no mundo. Na primeira perguntam-lhe quem é tu, na segunda de onde vem o mundo e na terceira um convite para acompanhar um curso de filosofia. Detalhe: ela não faz a menor ideia de quem lhe mandou essas correspondências, mas mesmo assim embarca nessa viagem rumo ao conhecimento. E foi, sem sombra de dúvidas, a melhor decisão que ela poderia ter tomado.
Feita e escolha, ela começa a enveredar pelo extraordinário mundo de pensadores que marcaram - e marcam até hoje! - a história da humanidade. Seu professor, Alberto Knox, se apresenta e vai dos mitos ao helenismo nos fazendo devorar cada minuto de Thor, Loki, Odin, Asgard, os vikings, Zeus, Apolo, Hércules, Hera, Homero, os filósofos da natureza, o oráculo de Delfos (com a eterna provocação "conhece-te a ti mesmo!"), Heródoto, Tucídides, Hipócrates e finalmente a trinca grega Sócrates, Platão e Aristóteles. Em suma: um aulão básico de sabedoria.
Mas é claro que para Knox nos apresentar apenas os gregos é insuficiente em suas intenções e por isso ele segue em frente: esmiuça os indo-europeus e os semitas, dá voz à Jesus Cristo e seu apóstolo Paulo, apresenta a Idade Média, contrasta as visões religiosas de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino e passeia pelo Renascimento e o Barroco. Mas isso é apenas preparar o território para a cereja do bolo.
Chega a filosofia moderna e com ela o seu fundador, René Descartes, e o "Discurso do método"; Espinosa correlaciona Deus e a natureza, fazendo uma leitura crítica da Bíblia; Locke funde pensamentos e ideias à sensações; Hume descarta totalmente tudo o que se une à ilusão; Berkeley chama a filosofia e a ciência de inimigas da concepção cristã do mundo; Kant defende sua "Crítica da razão pura"; Hegel chama de espírito do mundo a soma das manifestações humanas; Kierkegaard confronta o romantismo com o individualismo e o sistema com o indivíduo; Marx defende a luta de classes; Darwin chama o ser humano de resultado de uma evolução biológica intensa e Freud reflete sobre o mundo como uma tensão entre homem e o ambiente que o rodeia.
E quando você, leitor, está prestes a dizer "ufa! quanta coisa!" o autor, ainda insistente, tem tempo para se debruçar sobre a contemporaneidade e, junto com ela, Nietzsche, Heidegger, Sartre e Simone de Beauvoir. Sim. Preparem-se, meus caros leitores, pois trata-se de uma leitura que exige fôlego e paciência, já que há muito sobre o que pensar e debater (algo que a nossa sociedade anda precisando - e muito!).
Ao fim da leitura me pego pensando no quanto a obra tem o seu lado cogito ergo sum (ou em bom português: penso, logo existo). É um convite àqueles que desejam urgentemente fugir do mundo contemporâneo caótico e imerso no retrocesso. Há, é claro, um lado mais fofo e comercial da história, no qual Sofia encontra personagens históricos e literários de importância, como Noé, ursinho Pooh, Alice, Tom e Jerry, Uncle Scrooge e tantos outros, mas isso é apenas um mero detalhe best-seller. E me vi refletindo em alguns momentos sobre a possibilidade de estar diante de uma metaficção por ser a própria Sofia uma história dentro de outra história ainda mais complexa. Mas deixo essa discussão para os catedráticos e acadêmicos de plantão.
O que importa mesmo aqui é: fiquei feliz de ler O mundo de Sofia, não somente por estarmos vivendo um tempo de pandemia, mas também porque o mundo anda um tanto habitado por ignorantes contumazes e fabricantes de falsas verdades e ideologias, e é preciso combater essa gente com conhecimento, pois somente ele - a meu ver, pelo menos - é capaz de enfrentar a alienação de frente e com unhas e dentes.
Se você, como eu, também quer enfrentar esse desafio, procure pelo romance de Jostein Gaarder. Não, acreditem! É de fato um romance e não um livro acadêmico. Porém, é também um pouco mais do que isso. E é desse um pouco mais que estamos precisando. O quanto antes.
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Siga a linha e não olhe para trás (Relatos do mundo, de Paul Greengrass, nos traz um ácido drama sobre a humanidade e as escolhas infelizes que não cansamos de fazer. Pena que não conseguimos entender que isso nunca nos fez bem de fato)
Nunca entendi - e, honestamente, morrerei sem entender - o fascínio de parte da humanidade pela guerra. Ela não produz absolutamente nenhum legado útil para a nossa própria subsistência e não bastasse isso ainda por cima se esconde atrás da fachada hipócrita de "única solução viável para resolvermos problemas de difícil solução". Ou seja: não passa de uma demagogia fabricada por setores cínicos de nossa sociedade que se locupletam da miséria alheia enquanto faturam os tubos com a indústria bélica.
E o pior: tem quem admire essa faceta social, bata palmas, exalte a necessidade dela existir simplesmente porque não consegue viver numa pátria onde existam pessoas que pensem diferente do que elas acreditam.
Me peguei pensando nisso enquanto assistia o drama Relatos do mundo, do diretor Paul Greengrass - famoso aqui no Brasil pelos longas que fez da franquia Jason Bourne e o ótimo Voo United 93, que tem como pano de fundo a tragédia do 11 de setembro - e cheguei à conclusão de que a guerra, como a conhecemos, nunca acabará. Ela apenas muda sua abordagem e seus personagens sórdidos.
O filme de Greengrass traz o Capitão da reserva Jefferson Kidd (Tom Hanks, interpretando um personagem o qual jamais imaginei que ele pudesse fazer ao longo da carreira), um homem repleto de cicatrizes, que viveu o pior do conflito bélico de forma brutal e dilacerante. Tipógrafo antes da guerra, ele agora vive viajando de cidade em cidade onde lê para seus habitantes recortes de jornal com notícias sobre há quantas anda o mundo. Em outras palavras: para muitos cidadãos ele é o último resquício de esperança ou o último, digamos, bote salva-vidas em meio a um mundo destroçado por escolhas infelizes.
E aqui cabe uma observação minha: nesse sentido seu personagem me fez lembrar o carteiro vivido por Kevin Costner no filme O mensageiro, de 1997. E a população esperava, tanto as correspondências quanto a chegada do capitão com as histórias que rodeavam o mundo, com gigantesca ansiedade. Tanto que multidões se reuniam para recebê-los.
Entretanto, sua jornada será impactada de forma severa quando seu caminho cruza com o da jovem Johanna (Helena Zengel), uma garota que foi sequestrada por uma tribo indígena e teve toda sua história de vida apagada por quem a sequestrou. Como seus pais biológicos encontram-se mortos, o capitão precisa levá-la à cidade onde moram seus tios. Só que para isso terá que reviver velhos demônios dos tempos de guerra e aprender a se comunicar com a menina, que praticamente se transformou numa selvagem.
Mas é preciso, de minha parte, enaltecer um aspecto que me parece mais interessante do que o próprio roteiro do filme: falo das entrelinhas presentes nas discussões, nos duelos e monólogos presentes na trama. É praticamente uma aula de história não oficial dos EUA (refiro-me àquela parte da história que não iremos encontrar nos livros escolares, não importa o quanto procuremos).
Tudo está presente aqui, se você tiver mente aberta para apreender os sinais: a eterna postura imperialista dos homens brancos, que se acham mais donos de qualquer tipo de direito do que mexicanos, índios e negros; a eterna divergência entre os estados do norte e do sul norte-americano e o legítimo sentimento de que a guerra não passa de um negócio da china para favorecer as velhas elites de sempre e transformar seres humanos em zumbis sociais, que não fazem a menor ideia de como (e por que) devem seguir em frente, quando tudo parece não ter mais o menor sentido.
Ao final da jornada o diretor até encontra um meio termo para agradar aos espectadores que ansiosamente esperam por um final minimamente feliz, mas acreditem: é praticamente impossível acreditar em felicidade num cenário tão desolador e que parece prometer que dias ruins continuarão existindo ainda por um bom tempo.
Talvez minha única ressalva em todo o projeto tenha sido a escolha de Hanks como o protagonista. Confesso que gostaria de ver um ator com mais vocação para interpretar um homem dúbio ou, quem sabe, alguém a um passo de se tornar um mau caráter por ter perdido tudo o que mais amava. Peguei-me pensando o que um artista como Gary Oldman ou John Malkovich teria feito com o mesmo personagem. E, além disso, Tom sempre me vendeu a imagem do bom pai de família. Mas entendo sua presença aqui, pois do contrário a adaptação do livro de Paulette Jiles dificilmente tivesse conseguido financiamento.
Críticas à parte (e são vários os comentários negativos sobre o filme na internet), é preciso paciência para assistir Relatos do mundo. Trata-se de um filme arrastado, no qual o espectador precisa montar um quebra-cabeça complexo sobre a história de um país que não necessariamente é aquilo que vende para o mundo. Em determinado momento o capitão diz para a jovem Johanna: "siga a linha e não olhe para trás". E essa é a melhor reflexão que você pode fazer sobre essa história. É como se ele nos dissesse que, no final das contas, nunca vale a pena viver no passado eternamente.
Porém, difícil mesmo é fazer a própria humanidade entender isso...
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O último ato de amor (O beijo, de Gustav Klimt, recorre à mitologia, ao desespero e a um simples gesto para nos entregar um das maiores obras-primas da história da arte)
Tem quem pense que a arte em geral, e principalmente as artes plásticas em específico, se destine a objetivos ambiciosos ou mesmo que ela precise de grandes motivações para existir. Ledo engano! Às vezes, basta um pequeno gesto ou aproximação para que nós, meros espectadores e amadores no quesito avaliação, nos encantemos e queiramos analisar a obra em questão mais profundamente.
Vejam o caso de O grito, de Edvard Munch, por exemplo. Um mero indivíduo com as mãos segurando o rosto enquanto grita na frente de um mirante e foi suficiente para virar referência na cultura pop. E nem por isso deixou de suscitar debates.
Com O beijo, do pintor Gustav Klimt, óleo sobre tela de 1,80m x 1,80m criado entre 1907 e 1908, acontece praticamente a mesma coisa: de onde vêm tantas opiniões referentes à um simples casal que se ama e, por isso, se beija? Parece tão simples enxergar isso quando vemos a tela, mas na prática são muitas - e distintas - análises.
A principal delas se refere a uma briga entre Apolo (Deus da beleza) e Eros (Deus do amor e do erotismo) que, inconformado, transforma sua amada, Dafne, em madeira. Segundo parte da crítica a tela representaria o último momento em que Apolo beija Dafne em vida. Contudo, nem toda a crítica converge para esta mesma opinião.
Sim, digo isso porque há intelectuais que preferem acreditar que o casal ilustrado na tela seria o próprio Klimt e Emilie Flöge, sua eterna musa e companheira de vida. E há ainda um terceiro grupo que prefere acreditar que a modelo Red Hilda, que posara para Klimt em outros trabalhos, seria a referência para a mulher vista na tela.
De concreto mesmo somente o que vemos na tela: um casal de apaixonados enrolados numa espécie de manta amarelada cheia de enfeites que lembram pedras preciosas, enquanto o homem beija a mulher na face direita. E alguns intelectuais preferem acreditar que o beijo não é recíproco, pois a mulher estaria tentando afastá-lo com as mãos (o que refuta, para alguns estudiosos, a temática da alegoria do amor). Isso sem contar os que defendem a possibilidade de que a mulher esteja morta e sua cabeça, decapitada. Sim, foi isso mesmo que vocês leram!
A pintura, que faz parte do apogeu do período dourado do artista, une pinceladas polidas e verticais com contornos, produzindo uma textura real e ímpar e é visível no trabalho a influência dos mosaicos bizantinos e da gravura japonesa, além da utilização de elementos como lâminas de ouro e estanho (algo que o pintor repetiu em outras obras). O resultado dessa mistura é uma perspectiva cromática.
Tem quem classifique Gustav Klimt como precursor do simbolismo e tem quem o veja como modernista. De preciso mesmo, apenas que fez parte do período secessionista, que contrapôs o realismo, o naturalismo e o positivismo, preferindo ser movido por ideais românticos (e cabe aqui uma dica: procure a obra do pintor e vasculhe a presença do amor em seus trabalhos. Vocês ficarão surpresos!).
O quadro foi comprado pelo Museu Belvedere, em Viena, antes mesmo de ter sido finalizado, por inacreditáveis 25 mil coroas (um recorde para o período). O que mostra o prestígio do autor, que era bastante celebrado naquela época.
No final, em meio a tantas opiniões e controvérsias, o que vemos é uma grande ode à sensualidade e ao erotismo. Ou, para os apaixonados de plantão, um último ato de amor desesperado em meio a um mundo que mais parece uma comédia dos erros distorcida, produto de uma sociedade cheia de ódio e revanchista ao extremo.
Em 2013, o artista Tamman Azzam replicou a obra em uma parede de um edifício bombardeado em Damasco, na Síria, como uma forma de protesto contra a guerra. Isso mostra que mesmo passado mais de um século, a tela continua suscitando debates e reflexões as mais diversas sem não necessariamente ter uma ligação direta com a temática amorosa (o que em nada desmerece o trabalho de Klimt, que viveu uma vida amorosa intensa e cheia de revezes).
E como vocês, leitores, deveriam terminar este humilde artigo que terminou prematuramente de propósito? Vasculhando a vida deste mestre do mosaico. Podem apostar: vocês vão se surpreender. E muito.
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A maldição púrpura (O remake oitentista de A bolha assassina é a justa medida do cinema hollywoodiano que se fazia naquela época: insano, inverossímil e, ainda assim, inesquecível para aquele bando de adolescentes desajustados que se sentavam em frente à tv.).
O cinema de terror sempre esteve povoado de personas insólitas (psicopatas, serial killers, palhaços e bonecos assassinos, etc), pragas científicas, figuras sobrenaturais e outros algozes quiçá ainda mais terríveis e, por que não, inexplicáveis à nossa vã filosofia. Contudo, houve um tipo de diretor muito comum nos anos 80 e 90 que soube se apropriar bem daquilo que o gênero sobrenatural tinha de mais alucinante e completamente fora do que chamamos costumeiramente de realidade.
Tem quem chame essas produções hoje em dia de trash ou filmes B, mas acreditem: elas fizeram um enorme sucesso de público entre os fãs da nobre arte de dar sustos. E às vezes com narrativas que são uma ode ao nonsense.
Esta semana, por exemplo, me deparei no you tube com uma cópia dividida em episódios do filme A bolha assassina, remake de 1988 do diretor Chuck Russell para o clássico cinquentista de ficção científica de Irvin S. Yeaworth Jr, que tinha em seu elenco o astro Steve McQueen. E qual não foi a minha surpresa ao ver, mesmo três décadas depois e hoje vacinado contra todos os delírios e distorções da narrativa, que eu ainda me divirto - e muito - com a película!
A bolha assassina, embora seja um projeto anterior ao sucesso comercial que Russell faria seis anos depois com a comédia O máskara (que eternizaria o humorista Jim Carrey), traz em seu bojo todos os elementos do que aquela geração cinéfila considerava um ótimo entretenimento. Quer ver só?
O longa conta a história de um meteoro que cai numa cidadezinha de interior nos EUA e traz em seu núcleo uma substância gosmenta e púrpura capaz de aumentar de tamanho à medida que se alimenta de seres humanos. Não, é isso mesmo que você leu! Ela chega ao centro da cidade após ficar presa no braço de um morador de rua que é levado, por dois adolescentes, ao hospital mais próximo. A partir daí esperem por muita matança, correria, desespero e, claro, não sejam exigentes com o roteiro.
Há uma subtrama mal explorada - e normalmente, nos filmes de terror desse período, elas sempre existem! - sobre uma equipe de cientistas contratada pelo governo para transformar a tal bolha numa arma de guerra. Aliás, bem a cara da hollywood daquela época. E também há a figura de um padre apocalíptico que vê no nêmesis púrpura o prenúncio do fim dos tempos. Mais do que isso: o diretor chega a preparar o terreno para uma possível continuação (que, claro, nunca existiu).
De concreto mesmo parece que somente os jovens Brian Flagg (Kevin Dillon) e Meg Penny (Shawnee Smith), interessados em destruir de uma vez por todas a malévola criatura. Entretanto, há muito pelo qual se divertir também, vide o inusitado da situação. Que o digam o casal de namorados num encontro romântico no carro e a dupla de garotos dentro do cinema para ver o último lançamento de terror do momento. Mais anos 80 do que isso, impossível!
Mas como eu disse em parágrafo anterior: não sejamos exigentes. E esse era justamente o maior barato para quem assistia cinema naqueles tempos. Pergunte a qualquer um que você conheça que viveu o mesmo período. Eles certamente lhe dirão: "eu daria tudo para viver isso de novo".
A bolha assassina é a cara do terror que se produzia no final dos anos 80 e início dos 90: ilógico, surreal, extraordinário em suas intenções, cheio de clichês os mais inverossímeis possíveis, prometendo relações sexuais que nunca iria entregar (pelo menos, não do jeito que nós realmente queríamos) e com desfechos totalmente loucos, quando não contraditórios. Some tudo isso rapidamente e o que vocês terão é: diversão, diversão e mais diversão. Pronto. Só falta juntar a pipoca e o refrigerante para concluir o programa da noite.
P.S: tenham agora, os distintos leitores deste texto, a dignidade de admitir: quantos de vocês viram essa pequena joia pela primeira vez no antigo Cinema em Casa, do SBT? Ah! Vai ter gente escondendo a idade. Ah se vai!!!
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Recomeçar do zero (O som do silêncio, de Darius Marder, fala do eterno embate daqueles que não conseguem entender que a vida, de tempos em tempos, nos oferece provações e às vezes precisamos refazer a rota de nossas existências.)
Você não faz a menor ideia do que o tempo - ou a vida - é capaz de fazer com os nossos sonhos. Não importa o quanto você tenha a sua vida planejada, o quanto tenha se preparado para realizar aquilo que tanto sonhou, a vida aparece e ela tem seus próprios planos, seu próprio ritmo. Em 1984 Virginie Boutaud, vocalista da banda nacional new wave Metrô, estava certa ao cantar que "no balanço das horas tudo pode mudar". Sim. Nisso ela acertou em cheio. E esse balanço acontece quando você menos espera. Que o diga a vida de Ruben (Riz Ahmed).
Ele é baterista de uma banda que ainda busca a trilha do sucesso e sabe que o trabalho é duro. São horas e horas de dedicação e muito ensaio para subir ao palco e dar o seu melhor. Até que percebe, durante um desses ensaios. que perdeu sua audição completamente. E para ele isso é um baque difícil de engolir. Sua primeira reação ao ocorrido é o óbvio "meu mundo acabou".
A única que o ampara nesse momento é a namorada, Lou (Olivia Cooke), que o leva para conhecer uma instituição de amparo à pessoas surdas. Ruben, reticente à primeira vista, decide aceitar o desafio muito por insistência dela. E a rotina desse novo mundo é para poucos: aprender uma nova língua, aprender a lidar com suas próprias limitações e, enfim, aprender a ouvir de uma outra forma.
O problema: ele acredita que tudo aquilo não passa de uma perda de tempo quando descobre que é possível fazer uma cirurgia que coloque um implante em seu cérebro, trazendo de volta a possibilidade de audição. E é nesse milagre que ele embarca com unhas e dentes, porém esquece que sua relação com o novo mundo que acabou de conhecer sairá estremecida do processo.
O som do silêncio, filme do diretor Darius Marder, é um longa sobre recomeços e o quanto eles podem ser difíceis e dolorosos, ainda mais sabendo que seres humanos são falhos e imediatistas.
Ruben faz parte de uma geração que simplesmente não aguenta a ansiedade oferecida pelo amanhã. Ele almeja a glória e não consegue imaginar a sua vida sem ela. Mais: ele a almeja no menor tempo possível. Entretanto, não consegue entender que nem sempre o tempo do mundo é o nosso tempo, corrido, arbitrário, feito de improviso em alguns momentos. E o choque entre essas duas realidades pode ser extremamente autodestrutivo para pessoas como ele.
A produção da Amazon, que vem chamando a minha atenção nos últimos anos com bons projetos, já me ganhou desde o início da projeção muito por conta disso, dessa batalha que atravessará todo o século XXI - podem ter certeza! - entre os impacientes e o ciclo da vida. Vivemos uma era de transformações constantes, mas não significa que elas ocorrerão na velocidade que queremos ou desejamos. Longe disso!
Fiquei tentando me lembrar de outros filmes com a presença de personagens surdos e me veio à mente logo de cara o extraordinário Filhos do silêncio, de Randa Haines, com William Hurt na pele do professor e Marlee Matlin, vencedora do Oscar de melhor atriz em 1987, como a extraordinária aluna surda. E se no filme de Randa já era difícil para Marlee conviver com a presença do professor, pois ela simplesmente optou por não falar, no caso de Ruben a situação é ainda mais grave por que ele sempre desdenhou desse mundo, por acreditar que se aceitasse aquela realidade se transformaria num covarde. E ele precisa acreditar que será capaz de retomar sua vida, bem como sua carreira.
Alguns críticos de cinema que andei fuçando na internet vêem a possibilidade de Riz beliscar uma vaga entre os indicados ao Oscar desse ano e confesso: seria merecido. O trabalho dele é realmente muito bom e, principalmente, humano. Mas ele, com certeza, terá concorrentes de peso.
E ao final de duas horas de angústia e luta por superação a certeza que fica é a de que recomeçar do zero não é uma batalha simples e corriqueira. Pelo contrário: ela envolve discernimento e força de vontade para entender que as perdas fazem parte da vida. E não é porque as sofremos, de tempos em tempos, que não possamos seguir em frente, tentar de novo, mesmo que o plano original já não nos sirva mais como antes.
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Ainda com cheiro de espírito jovem (Nevermind, do nirvana, completa 30 anos de existência e permanece lúcido ao retratar o esfacelamento do mundo e da sociedade em geral)
O site da revista Rolling Stone traz uma lista interessante de discos que estão completando datas comemorativas nesse ano de 2021 e vejo logo de cara Nevermind, do Nirvana, entre eles. E imediatamente meu cérebro se transporta para o dia em que o ouvi, em formato vinil, pela primeira vez. Foi nonsense, brutal, mas verdadeiro até a última vírgula.
O álbum do nirvana antecipa em três décadas o que o século XXI se tornou de tão assustador e maquiavélico (e muito provavelmente o público para o qual ele foi feito não se deu realmente conta disso!). Nevermind é álbum para se ouvir em altíssimo volume, quase um esporro ou um grunhido, um desabafo sobre uma geração que não aguenta mais a monotonia e a mesmice.
O disco abre com o eterno clássico "Smells like teen spirit" e ainda é fácil entender porque a canção se tornou um hino para aquela geração de desajustados. Dos riffs de guitarra ácidos à frase "eu sou pior no que faço de melhor" ainda ecoam acerca de uma legião de fãs perdida em meio a tantos referenciais e ainda assim sem nenhum objetivo concretizado.
Em "In bloom" Cobain correlaciona os fãs de suas músicas com a sociedade megalomaníaca daqueles anos 90. Uma sociedade que vende crianças por comida. Ele próprio chama a natureza de prostituta, de tanto que ela é usada por nós, seres humanos, de forma indiscriminada.
Com "Come as you are" a banda pede que a sociedade seja ela mesma e não aquilo que o sistema quer que ela seja. "Venha como você é, como você era, mas vá com calma. Não se apresse!". Entretanto, na canção seguinte, "Breed", ela parece retroceder e volta a mostrar um compêndio de jovens confuso, que não sabe o que faz ou o que quer de fato. Perdidos. Só pensando em procriar.
Chega a sensacional "Lithium" e com ela, o desespero, o medo da morte, as amizades frágeis, a certeza de não se encaixar dentro de um padrão de beleza (e para eles, os jovens, isso é tão devastador quanto morrer). E ainda assim ele repete: "eu não vou pirar!". Contudo, parece exatamente o contrário. A seguir o violão magnífico traz "Polly", que pode ser um pássaro ou uma mulher. Quem sabe até ambos, uma forma híbrida. Mas fala também de dependência, de desconforto.
"Só porque você é paranoico /Não significa que eles não estão atrás de você", diz Cobain em "territorial pissings" e isso diz muito sobre a música que mistura a tentativa de unificar a sociedade com um discurso que expõe a incomunicabilidade entre seres humanos. Obs: a guitarra distorcida que abre a música já vale metade do seu tempo ouvindo-a.
Egolatria, pessoas sugando pessoas, inconformismo... Tudo isso acompanha "Drain you", provavelmente a música mais perturbadora do disco. É possível - eu, pelo menos, tive essa sensação - ouvir o sofrimento do vocalista, sua decepção com o futuro que ainda está por vir. E a música seguinte, "Lounge act", acompanha esse mesmo sentimento derrotista.
Quando chega "Stay Away" os moralistas de plantão terão todos os motivos do mundo para odiar a canção. E não é para menos. Uma música que termina ao som de "Deus é gay" tem tudo para irritar os mais conservadores e certinhos. E não somente isso. Cobain agride a moral como nós a conhecemos desde o primeiro verso. "Melhor morto do que legal", "o amor é cego", além de chamar a moda abertamente de merda. É sem dúvida a faixa mais polêmica de todo o disco. Mas quando você pensa que não tem como descer mais fundo no poço, ele acrescenta "On plain" e todos os seus sonhos ficam destruídos de vez.
Então você pensa: o disco acabou, é a última faixa. Não. Você não pode deixar de ouvir "Endless, nameless". É a sentença final dessa grande catarse em forma de álbum musical, uma ode à distorção e ao barulho. Cobain se rende à inevitabilidade da morte e meio que profetiza tudo o que aconteceria com ele posteriormente. É, mais do que um simples desfecho, um momento mediúnico.
Em suma: o que Nevermind tem de assustador, tem também de visionário em suas intenções, digamos, radicais. Ele antecipa muito desse mundo distorcido, repleto de fake news, revisionismo histórico, neoliberalismo fraudulento e outras ideologias que só servem para manobrar o indivíduo, transformando a sociedade num enorme marionete. Não à toa ele morreu da forma como morreu, mas sem se dobrar ao sistema. E esse, com certeza, foi seu maior legado para o mundo do rock n' roll.
Não conhece o disco? Então corra agora ao Spotify, ao Deezer ou a qualquer outra plataforma musical de seu interesse e ouça. E mais do que ouvir a banda, sinta o que ela tem a dizer, sinta o cheiro do espírito jovem. Ele ainda está lá. Acredite: esse álbum ainda é das narrativas mais atuais sobre o mundo contemporâneo e o que fizemos com ele. Mas é para poucos!
Logo, você está por sua conta e risco...
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O terror que foi redescoberto (O enigma de outro mundo, de John Carpenter, é um estudo de caso sobre o isolamento humano e, mais do que isso, uma prova viva de que mesmo filmes incompreendidos conseguem a sua fama, mesmo que tardiamente)
Tem muita gente que não concorda comigo quando eu digo isso, mas vou repetir mais uma vez: nada é mais natural no mundo dos filmes de terror que viram clássicos ou cults do que produções que foram um fracasso retumbante de bilheteria e crítica arrebanharem gerações de fãs alucinados posteriormente. Perguntem a qualquer fã do gênero para vocês verem só! E a lista é imensa. Dentre esses hoje épicos que foram redescobertos com o passar do tempo e, claro, a ajuda do home video e das exibições em tv, O enigma de outro mundo, de John Carpenter, lançado em 1982, é um caso à parte. E ele tinha tudo para ser um fenômeno de bilheteria.
Digo isso porque antes de Carpenter realizar o longa ele se notabilizou por produções independentes que levaram o público ao delírio (falo mais especificamente de Halloween e Fuga de nova york, com Kurt Russell, um clássico eterno dos meus tempos de Sessão das Dez, no SBT). Logo, O enigma de outro mundo foi seu primeiro filme de estúdio. Pensarão então os mais fanáticos: "agora é que ele vai detonar mesmo!". Pois é... Não foi bem isso o que aconteceu.
A trama acontece dentro de uma estação de pesquisa na Antártida cujos cientistas veem a chegada de um cachorro que foge de um helicóptero que está tentando matá-lo. Os integrantes da aeronave não conseguem abater o animal e ele é levado para dentro da instalação. Passados alguns dias começam a acontecer uma série de situações inusitadas e perturbadoras. Motivo: dentro do cão há uma criatura alienígena capaz de copiar as células de qualquer espécie, inclusive seres humanos. E ela, a criatura, começa a eliminar um por um os cientistas e assumir sua forma.
Bizarro, eu sei. Digo mais: para fãs do terror gore ou do giallo italiano a película é um deleite à parte. Cheia de efeitos práticos e um trabalho de maquiagem visto por muitos como visionário até hoje. Então por que tamanho desinteresse pelo filme na época? Primeiramente: a culpa dos distribuidores, que decidiram lançá-lo na mesma época de E.T - o extraterrestre, de Steven Spielberg e Blade Runner - o caçador de androides, de Ridley Scott, no auge de suas nostalgias e exuberâncias tecnológicas. Sim, isso foi definitivamente um tiro no pé.
Contudo, há quem diga na época que o fato do longa trazer como discussão em suas entrelinhas o status quo dos EUA pós-vietnã (uma guerra cujo povo americano nunca aceitou a derrota) contribuiu e muito para o insucesso do projeto. Mais que simplesmente uma história sobre o convívio entre pessoas retidas em isolamento, o filme de Carpenter também fala da incapacidade humana diante de um adversário praticamente imbatível. Assunto ao qual os norte-americanos normalmente preferem evitar, pois gostam de se ver na tela na pele de heróis indestrutíveis.
O diretor não deixou de beber na fonte do clássico O monstro do ártico, dirigido por Howard Hawks em 1951, que adapta o conto original publicado por John W. Campbell Jr. E eu recomendo aqui aos leitores dessa crítica que vejam a versão dos anos 50, pois eu tive a impressão de que me ajudou, em muitos sentidos, a enxergar a trama de forma mais abrangente. Sem contar que é um clássico em preto-e-branco de carteirinha!
O projeto tem, entre seus feitos, a façanha de - acreditem! - dar ao mestre das trilhas sonoras Ennio Morricone uma indicação ao Framboesa de Ouro. Não, meus amigos. É isso mesmo que vocês leram... O gênio por trás da música de Era uma vez no Oeste e A missão foi nomeado à honraria de pior música do cinema por este, hoje, clássico pop. Contudo, eu prefiro acreditar que mesmo essa notícia acabou por contribuir para o charme da produção com o passar das décadas. Tem quem ache isso até estiloso.
E quase me esquecia de mencionar as inúmeras teorias criadas sobre o longa com o passar dos anos (procurem vídeos no you tube sobre o tema) acerca de McCready - personagem de Kurt Russell - ser a criatura no final do filme. Acreditem: dá muito pano pra manga e debate até dizer chega.
Em 2011 o diretor Matthijs van Heijningen Jr realizou a prequel A coisa e trouxe de volta o universo do longa de Carpenter, desta vez narrando os fatos que antecederam o longa de 1982. Contudo, ele não acrescentou em nada ao fenômeno no qual o filme se tornou. Teve até quem achasse a produção desnecessária, chamando-a de "puro caça-níqueis em tempos de falta de criatividade".
De concreto mesmo apenas que O enigma de outro mundo foi de lixo descartável (chegando a receber críticas até difamatórias) à fenômeno pop incontestável. E figura hoje em dia, mais do que nunca, em centenas de listas de "filmes de terror que você não pode deixar de assistir antes de morrer". E isso, você, fã de terror como eu, sabe que não é pouca coisa.
P.S: eu nunca deixei de acreditar que em Alien 3, de David Fincher, a cena em que a criatura alienígena entra pelo corpo do cachorro na colônia penal, é uma homenagem direta ao filme de Carpenter. Que me corrijam aqueles que tiverem uma opinião melhor ou mais lúcida do que a minha!
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O tempo não cura todas as cicatrizes (Pieces of a woman, de Kornél Mundruczó, não é um filme-denúncia - embora em alguns momentos almeje ser - e sim um ensaio sobre a dor e o sofrimento causado pela perda de um ente querido)
Não faço a menor ideia do que significa para um pai ou uma mãe perder um filho. Não mesmo. E é possível que eu nunca venha a entender de fato tal acontecimento, tendo em vista que não sou pai. No máximo, posso imaginar o tamanho dessa dor e mesmo isso é ainda muito pouco em se tratando da palavra compreensão. Logo, um casal como Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf), protagonistas do filme que pretendo resenhar aqui, estão num plano muito mais complexo do que minhas vãs palavras serão capazes de entender.
Em Pieces of a woman, do diretor húngaro Kornél Mundruczó, responsável pelo extraordinário Deus branco, vemos uma casal que fez a escolha de realizar o parto do seu bebê em casa, de forma humanizada, com uma parteira. Porém, ao contrário do que eles imaginavam, o processo termina de forma amarga e a criança morre. E a morte do bebê leva o relacionamento do casal a um outro patamar.
Sean até tenta seguir com sua vida, mas não consegue entender muito menos dialogar mais com sua esposa. Ela simplesmente se fechou em seu próprio mundo e não permite que os familiares façam parte dele. Daí para mentiras e traições é um passo mais do que natural. E do outro lado dessa modorra existencial, encontra-se Elizabeth (Ellen Burstyn), mãe de Martha, a maior interessada num processo criminal contra a parteira, que ela considera a maior culpada de todo esse caos pelo qual a família se encontra nesse momento.
Contudo, é preciso levar em consideração que Elizabeth é uma mulher que acredita unicamente no poder do dinheiro, das aparências, do sistema que sempre facilita tudo para os privilegiados e não consegue lidar com o fato de que, no futuro, seu "círculo de amizades" se lembrará dela como a mãe da mulher que perdeu um filho. Para ela, a tragédia maior é o que os vizinhos e amigos irão pensar dela. Eles, na visão de mundo dela, a verão como uma pessoa menor.
E a consequência mais do que natural desse turbilhão de desespero pelo qual a família passa é a sensação de que, na verdade, nenhum deles se conhecem realmente. Estão tão preocupados com status social ou "o que os outros irão pensar ou dizer quando souberem que..." que acabam por não viverem suas próprias vidas. Em outras palavras: são pessoas sem alma própria.
O trabalho de Vanessa Kirby na cena do parto é interessantíssimo e pode até, quem sabe, aparecer entre as atuações indicadas ao Oscar desse ano. Confesso que fiquei surpreso ao vê-la tão bem. Talvez pelo fato de estar acostumado a assistí-la em filmes blockbusters do gênero ação. Não conhecia essa faceta dramática dela! Já o jovem e sempre rebelde LaBeouf está apenas ok e eu gostaria muito de ver o personagem interpretado por um ator de mais pujança. Talvez sua participação no longa rendesse mais.
Percebi em certo momento uma subtrama brevemente mencionada sobre uma suposta rivalidade entre parteiras e a comunidade médica que, se bem trabalhada, renderia por si própria um grande filme. Uma pena que o diretor decidiu tomar um outro caminho. Aliás, a parte tribunal da história me soou um tanto quanto vazia e desnecessária, talvez pelo fato da direção não estar interessada em realizar um filme-denúncia contra a profissão das parteiras. E olha que eu cheguei a pensar que o longa enveredaria por esse caminho!
Feitas suas escolhas (nem todas elas surtiram o efeito desejado, pelo menos em mim) acabo me deparando ao final com um grande ensaio sobre a dor e o sofrimento por conta da perda de um ente querido. Porém, acredito que eles poderiam - se quisessem - contar sua história num tom menos melodramático. Acabaram por recorrer ao velho artifício de fazer o público ir às lágrimas e terminaram num meio termo incômodo.
De certeza mesmo, enquanto os créditos começam a ser exibidos na tela, somente uma: o tempo, por mais que o deixemos passar, não cura todas as feridas. E, honestamente, cheguei a um ponto da minha vida em que não acredito que ele, o tempo, sirva para isso.
O que precisamos, no final das contas, entender é que a vida nos impõe desafios e nos faz passar por tragédias para que possamos refletir sobre o quanto ela, vida, não passa de um grande "e se". Não controlamos de fato nossos caminhos, embora tentemos recorrentemente. E só nos sobra como legado desses desafios e tragédias levantar a cabeça e recomeçar do zero.
E o resto é apenas algum escritor de auto-ajuda milionário tentando vender fórmulas de sucesso efêmeras e inúteis (pelo menos, na maior parte de nossas vidas).
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Parque de diversões macabro (Pague para entrar, reze para sair, de Tobe Hooper, é tosco em alguns momentos, cheio de clichês que se repetiram à exaustão no gênero terror posteriormente, mas com certeza levou ao deleite milhares de fãs do gênero)
O grande barato dos filmes de terror que marcaram época em minha infância e adolescência é que nunca houve exigência, pelo menos de minha parte, de que eles fossem exemplos de perfeição. Pelo contrário. Muitos fãs dentro das salas de cinema esperavam por defeitos, amadorismos e incorreções. E eles certamente acrescentavam um certo charme ao projeto. Infelizmente, parece que hollywood nos últimos tempos parou de entender isso e sofisticou um gênero que nasceu para ser, muitas vezes, tosco sem nem por isso perder o seu potencial de diversão.
Estava pensando nisso essa última semana quando me deparei na internet com uma matéria sobre o hoje clássico do horror Pague para entrar, reze para sair, do diretor Tobe Hooper (mestre por trás dos eternos clássicos O massacre da serra elétrica e Poltergheist - o fenômeno). E mesmo depois de quatro décadas de existência é impressionante ver o quanto ele ainda é capaz de levar ao deleite gerações de fãs, mesmo com tantas soluções óbvias e improvisadas.
O longa narra a história de dois casais de namorados, Amy (Elizabeth Berridge), Buzz (Cooper Huckabee), Richie (Miles Chapin) e Liz (Largo Woodruff), que decidem ir a um parque de diversões itinerante cujo último dia de apresentação é naquela noite. Os pais de Amy são contra por causa de uma mística envolvendo o lugar: numa outra cidade onde o parque esteve duas jovens foram encontradas mortas. E por isso a jovem precisa inventar uma história de que irá em outro lugar e dormirá na casa de Liz.
O que os dois casais, que pretendiam manter relações sexuais dentro do trem fantasma, não sabiam é que toda a diversão pretendida daria lugar a uma noite de perseguições e assassinatos, com um desfecho para lá de amargo para eles.
É preciso antes de mais nada destacar o caráter casa dos horrores do lugar, que mesclava atrações simples como jogos de azar e shows de mágica com outras um tanto perturbadoras como aberrações genéticas (feto morto, vaca de duas cabeças, etc). Isso sem contar uma falsa vidente que passa a maior parte do tempo alcoolizada. Contudo, devemos levar em consideração que o parque em si é uma desconstrução dos antigos vaudevilles (ou teatro de variedades) que fizeram muito sucesso no século XIX, justamente por trazerem atrações um tanto quanto mórbidas, pois era justamente isso que aguçava a curiosidade dos frequentadores.
Por outro lado, vale também lembrar do lado trash da produção com um adolescente de rosto deformado, que passa a maior parte do tempo usando uma máscara de Frankenstein, bem como o próprio dono do parque, o retrato típico de um sinistro psicopata. Há cenas deploráveis, como a de troca de sexo por dinheiro, e as mortes - se levarmos em consideração como são realizadas hoje em dia, com um extremo nível de sofisticação tecnológica - são primárias no nível do quase amadoresco. Mas como disse em parágrafo anterior: o charme da narrativa está justamente em não procurar perfeição ou levar tudo tão a sério.
Ah! Quase me esqueci de um detalhe: para quem procura referências à outros clássicos do gênero o diretor faz menção aqui à Halloween e Psicose (e de uma maneira bem humorada até). Só faltou um sósia do Hitchcock como apresentador das atrações. Ele bem que poderia ter pensado nisso também...
Pague para entrar, reze para sair, mesmo trazendo Hooper na direção, não foi o sucesso de bilheteria que se apregoava (faturou pouco mais de 8 milhões de dólares). Tem até quem diga que foi um fracasso de público para a época, levando em consideração que 1981, para muitos críticos, foi o grande ano do terror para o cinema americano. Entretanto, ele acabou por se reinventar anos depois como fenômeno cult por conta do home video.
Lembro de quando o assisti pela primeira na tv aberta e da dificuldade que tive para dormir naquela noite. E no dia seguinte minha mãe me dando esporro porque eu não queria acordar para ir à escola: "tá vendo?", ela dizia, "é nisso que dá ficar assistindo essas porcarias até de madrugada. Levanta pra não chegar atrasado, garoto!".
Em 2018 o diretor Gregory Plotkin realizou o filme Parque do inferno que, embora os fãs mais xiitas neguem, tem sim o longa de Hooper como inspiração. Mas é preciso avisar aos desavisados com antecedência: tratam-se de contextos e épocas completamente diferentes. Dito isto, caso queiram procurar o longa, vocês estão por sua conta e risco.
Querem saber mais? (e eu sei que vocês querem): revejam o filme, leiam a respeito do projeto, procurem na internet cinéfilos de carteirinha fanáticos pela produção. Pois Pague para entrar, reze para sair é daquelas experiências que por mais que você ache, em algum momento, tosca ou brega, não sai de moda. Nunca. Pergunta só pra quem viveu os anos 80...
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O dia em que o homem de aço tombou (A HQ A morte do Super-homem foi um dos maiores eventos da história da nona arte que eu tive o prazer de testemunhar)
Enquanto os fãs mais entusiasmados da DC Comics aguardam ansiosos o Snyder Cut do longa da Liga da Justiça, lançado originalmente em 2017, e as mulheres apaixonadas por Henry Cavill, autor que interpreta Superman no filme, babam por seus músculos e beleza, eu me pego viajando no tempo enquanto procuro por um tema para escrever mais um dos meus textos sobre quadrinhos e relembro da façanha que foi chegar por aqui o kit da Editora Abril trazendo a edição de A morte de super-homem, em 1993.
Lembro como se fosse hoje de ir a, pelo menos, umas 15 bancas de jornal (naquela época, diferentemente de hoje, as HQs eram mais facilmente encontradas em bancas e apenas uma ou outra livraria vendia edições especiais ou específicas.) até encontrar o tal kit. Todo mundo foi pego de surpresa ao saber do lançamento do projeto, o que gerou uma imensa curiosidade dos fãs.
A DC, que vinha apanhando miseravelmente da Marvel em termos de vendas naquela época, precisava de um grande evento que a trouxesse de volta para o campo de batalha urgentemente. E eis que a editora Louise Simonson e um grupo de argumentistas e desenhistas talentosíssimos pensaram: por que não uma história sobre a morte do homem de aço? O que, acredito, deve ter gerado no mínimo uma pulga atrás da orelha da editora. Afinal de contas, trata-se de um evento ímpar e revolucionário em todos os sentidos.
Logo, ficava a pergunta sobre quem seria o algoz de um dos heróis mais poderosos da nona arte. Surge então o temível Apocalipse, uma criatura tão poderosa e cruel que foi capaz de dizimar a Liga da Justiça (uma liga completamente diferente da que vemos no longa de 2017) com extrema facilidade, com um braço preso às costas. Super-homem, que concedia uma entrevista naquele momento, fica sabendo da batalha entre o grupo de heróis e a criatura e parte para lá na mesma hora.
E isso, meus caros leitores, é o máximo que você precisa saber sobre a narrativa que não tem nada de complexa. Na verdade, o grande mérito da HQ está justamente nas batalhas memoráveis.
Primeiro destaque disparado: a arte magnífica de Dan Jurgens, seja da paleta de cores ao visual e anatomia dos personagens. Um artista, aliás, que eu li muito nos meus tempos de leitor de gibis de super-heróis (hoje em dia eu ainda leio graphic novels, mas deixei os superpoderosos de lado!). Outro ponto que merece meu elogio: a visceralidade com que o homem de aço sofre e apanha na história é louvável. A princípio pensei que eles fossem aliviar um tanto por se tratar do Superman, mas não... Eu raras vezes vi o herói - e não somente ele, mas todos os que enfrentaram Apocalipse - apanhar tanto numa história.
Lembro que quando cheguei ao capítulo final da história (que é dividida em seis partes), senti um misto de orgulho e tristeza. Orgulho pelo arrojo estético empregado - e na última parte cada página resume a batalha final em cenas épicas, sem divisões em quadrinhos menores - e tristeza por saber que o herói mais poderoso da DC iria sucumbir. Lógico, naquele momento, pois tudo era uma grande jogada de marketing para atrair os leitores que andavam sumidos.
Depois de A morte de Super-homem a DC Comics teve que manter o herói de Krypton afastado de suas páginas por um tempo, mas planejou seu retorno com garbo e lançou tempos depois O retorno de Super-homem (este dividido, na edição nacional, em três volumes), trazendo inclusive personagens como Aço e Superboy, que chegou a ganhar gibi próprio por aqui. E ao fim dessa saga zerou a numeração do gibi oficial do herói em nossas terras, levando o super para outras aventuras insólitas.
Só para não deixar de fora o meu momento memoriográfico o kit vendido nas bancas trazia, além da edição de capa preta com o logotipo do herói sangrando, um pôster caprichado com a cena do funeral do Super e uma versão fac-símile da edição em formato americano com as cenas finais da batalha. E, claro, que relançamentos com o passar dos anos também geraram um burburinho junto ao público, tanto que muitos deles encontram-se esgotados.
Em 2016 o diretor Zack Snyder (de novo ele!) trouxe o personagem Apocalipse para seu longa Batman vs. Superman: a origem da justiça e também matou o homem de aço. Confesso que, na época, eu achei um tanto forçada a escolha, mas o visual da criatura era realmente assustador. Pena que a história não teve o mesmo impacto. E houve também uma versão da história em animação, dirigida pela dupla Jake Castorena e Sam Liu em 2018, mas com liberdades artísticas que diferem do material original.
Como legado para a história da nona arte é preciso dizer que A morte de Super-homem divide opiniões. Tem quem ache uma grande bobagem, um reles caça-níqueis barato, e tem quem a considere uma das melhores sacadas da DC Comics até hoje. Enfim, meus caros leitores, fica a seu critério. Mas que foi um evento que mudou a minha relação com os quadrinhos na época (e eu tinha apenas 16 anos), ah! não há a menor dúvida...
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Nêmesis subterrâneo (Alligator, de Lewis Teague, é um clássico dos filmes B de matança numa época em que hollywood sabia ganhar o seu público com pouco).
O gênero terror no cinema se sofisticou nos últimos anos e, para mim, meio que perdeu o seu encanto, aquilo que fazia dele um diferencial. Por mais que víssemos efeitos de quinta geração e cenas toscas, no fundo era justamente isso que nos agradava. E com a chegada do CGI, do 3D, do 4K ou qualquer outro modelo de sofisticação cinematográfica aquilo que o terror tinha de inovador deu lugar a um exagero no que se refere à perfeccionismo criativo.
Em outras palavras: hoje em dia se exige muito mais da pós-produção e da definição da imagem do que do roteiro (que, muitas vezes, é feito por escritores que não entendem de fato a essência do gênero). Vejam, por exemplo, O lobisomem, com Benicio del Toro. Traz o personagem clássico tratado de forma impecável do ponto de vista visual à serviço de uma história meia-boca e forçada. Logo, torna-se impossível não idolatrar o terror feito no passado.
A quadrilha dos sádicos; Pague para entrar, reze para sair; Evil dead - a morte do demônio; O exorcista; A profecia; O bebê de Rosemary, entre tantos outros exemplares únicos, souberam aliar o trash, o escatológico, soluções baratas, efeitos práticos e o muitas vezes chamado de improviso, a um roteiro que sabia tocar no âmago de seus mais ardorosos fãs. E o resultado dessa equação eram sustos, gritos e muita diversão.
E uma das primeiras lembranças que eu tenho disso em minha cabeça é o clássico Alligator, de Lewis Teague, que os cinéfilos raiz certamente se lembram das inúmeras repetições na programação de filmes do SBT num passado nem tão distante assim.
A jovem Marisa compra um pequeno crocodilo numa dessas exibições públicas em que homens enfrentam feras e o leva para casa. O pai, indignado porque o animal infestou a casa de fezes, o joga na privada, dá descarga e ele vai parar nos esgotos. 12 anos depois, já imenso, torna-se uma fera indestrutível que está tirando as vidas de milhares de pessoas. Mas o que assombra mesmo àqueles que devem investigar o caso é o tamanho da criatura.
O crocodilo sofreu uma variação hormonal porque comia cães mortos que serviam de cobaia para uma instalação suspeita que pretendia criar uma espécie de hormônio sintético revolucionário. Sinistro, eu sei... Mas também bem a cara do cinema daquela época.
Chamado para liderar as investigações, o detetive David Madison (Robert Foster) corre pela cidade atrás do nêmesis subterrâneo que continua aumentando seu número de vítimas. A única capaz de realmente o ajudar é a mesma Marisa (Robin Riker), agora doutora especialista em anfíbios e répteis. Mas acreditem: não será um trabalho nada fácil e nem sempre a polícia o apoiará em suas decisões.
As cenas em que a criatura invade a cidade, destrói o asfalto das ruas, adentra uma festa chique, mata um garoto que é jogado dentro da piscina e estraçalha um caçador contratado pelo prefeito para abatê-lo, já entraram para a história da sétima arte e desse filme B (sim, nunca esse longa se pretendeu algo mais do que isso e é exatamente essa característica um dos maiores charmes da produção até hoje).
Para os fãs da boa e velha matança Alligator é o protagonista ideal e o diretor não faz média ou cria estilo. Ele mostra suas intenções de forma nua e crua. E confesso: em alguns momentos parece até que ele tomou suas decisões criativas mais brilhantes na última hora. E isso é simplesmente sensacional!
Para as novas gerações, acostumadas à Annabelle, Invocação do mal e a série Supernatural (fenômeno televisivo) recomendo que procurem o filme, deem a ele uma chance, mas vejam com olhos sábios, entendendo que se trata de um cinema anterior a tudo o que você conhece sobre cinema, portanto visionário nesse sentido.
11 anos depois do lançamento da versão original o diretor Jon Hess dirigiu Alligator 2: a mutação, que não faz jus ao legado do crocodilo assassino. Ou seja: mais um pisada de bola do mercado hollywoodiano (e olha que eu tenho uma enorme dificuldade de chamar esse longa de uma continuação direta do primeiro!).
Faltou dizer alguma coisa? Sim. Que os produtores de cinema daquele período sabiam ganhar o seu público sem tanto esforço ou tecnologia de ponta. E isso, naquela época, era chamado de talento.
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Memento mori (Soul, de Pete Docter, é um passeio lúdico sobre um tema que apavora a humanidade desde que o mundo é mundo)
Não conheço uma pessoa remotamente sã que seja capaz de explicar o que é a vida. E que bom que assim seja.
A vida é complexa, nos faz sorrir, chorar, sentir dor, nos irritar, pensar em desistir de tudo, em continuar tentando, lutando, sobrevivendo, aguentando até onde dá, só mais um dia, só mais um, e de repente dá tudo errado e você volta e recomeça e faz de novo e não satisfeita ela te desafia de novo, quer te colocar no chão como um pugilista malvado, mas você não deixa e chama ela para um outro round e mais um e mais outro... Ufa! Não é mole, não! A vida não é para principiantes.
E qual não foi a minha surpresa ao ver a Disney Pixar falar sobre a vida (e, é claro, a morte) para um público que a priori sequer começou a entender o que ela é de fato. Mais uma vez a casa do Mickey calou a minha boca, fazendo aquilo que os filmes adultos não têm tido coragem de fazer.
Em Soul, animação dirigida por Pete Docter, acompanhamos a trajetória de Joe, um professor de música num colégio infantil cujo maior sonho é trabalhar como pianista de jazz, algo que ele vem labutando há muitos anos sem sucesso. Quando a oportunidade aparece, podendo acompanhar a lendária Dorothea em seu quarteto, ele morre e se desespera ao conhecer o que chamamos de pós-vida. Tão desesperado que acaba furando a barreira e indo parar no pré-vida, onde crianças estão sendo preparadas para o início de suas existências.
Ele sabe que seu lugar não é ali, mas o considera melhor do que simplesmente morrer e aceita trabalhar como mentor para uma dessas novas jovens almas. O problema: recai sobre ele a difícil missão de ser o mentor de 22, um alma rebelde, extremamente relapsa e que não tem o menor interesse em viver. Mas ele precisa encontrar uma maneira de fazê-la acreditar que a vida vale a pena. Até que um acontecimento inusitado ocorre e todo o seu plano inicial vai pelo ralo.
Antes de qualquer outra coisa que eu diga sobre Soul é imprescindível que eu elogie o conjunto de vozes escolhidas para este projeto. Jamie Fox e Tina Fey - que dão voz, respectivamente, à Joe e 22 -, Alice Braga, Angela Bassett, o apresentador de tv Graham Norton... Eu não costumo recomendar a versão original em inglês para quem não conhece o idioma, mas se tiverem a oportunidade de ver ambas, legendado ou dublado, assistam. O trabalho deles é sensacional. Bem como as escolhas musicais para a trilha sonora.
Dito isto, vamos à minha impressão principal: durante toda a projeção me veio à mente uma expressão latina chamada "memento mori" ou, numa tradução livre, "lembre-se de que é mortal". E esse, para mim, foi justamente o conselho que Joe não ouviu ao longo de toda a sua vida.
Ele passou tanto tempo pensando em realizar o seu maior sonho - o que, de certa forma, era uma maneira de também realizar o sonho do pai, já falecido - que acabou por esquecer de viver. E esse me parece um dilema que acompanha grande parte da humanidade. Projetamos nossas felicidades em realizações extraordinárias, impérios gigantescos, e na maioria das vezes, desaprendemos a entender a necessidade do simples, dos pequenos gestos em nossas vidas.
Colocamos como prioridade uma suposta felicidade que tentamos explicar para os outros e não conseguimos. Corremos atrás de uma riqueza que não levaremos conosco quando não estivermos mais por aqui. E ainda assim, achamos tudo isso, toda essa distorção, extremamente natural.
John Lennon, vocalista dos Beatles, dizia que "a vida é o que acontece enquanto estamos fazendo planos" e estava coberto de razão. Passamos a vida a planejar e esquecemos completamente de vivê-la, de encarar o dia a dia. Preferimos chamá-lo de chato, monótono, de mesmice. E a vida, na maior parte do tempo, é o que você faz dela. Então, meus caros leitores, carpe diem (impossível não lembrar do mestre Robin Williams dizendo isso aos seus alunos em Sociedade dos poetas mortos!).
P.S: o visual estético do longa é de uma exuberância assustadora. É definitivamente um Oscar bait.
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Os restos (A voz suprema do blues, de George C. Wolfe, usa uma simples sessão de gravação como desculpa para esmiuçar a eterna condição do racismo nos EUA.).
Assim como na vida, o mundo do show business é complexo. Quem está de fora muitas vezes vende até a alma por uma remota possibilidade de acesso. E quem se consagrou dentro dele não admite, sob hipótese alguma, que outros venham roubar ou mesmo ofuscar o seu espaço, na maioria das vezes conquistado com muito suor e renúncia. E quando esses dois mundos se chocam, sai de baixo, pois somente os realmente fortes sobreviverão.
Chicago, 1927. Para um homem ou mulher negra como Ma Rainey (Viola Davis) conseguir celebritismo é preciso ter algo de muito bom ou especial para entregar ao público. E acreditem: ela tem e de sobra. Entretanto, ela precisou enfrentar o mundo dos homens brancos e suas eternas injustiças. Por isso, essa mulher forte enfrenta quem quer que seja de frente, sem papas na língua, nem fazendo concessões. Ela sabe que se quiser se manter onde está é preciso encarar o touro pelos chifres diariamente. E o principal: entender que nunca, nunca mesmo, ela terá descanso ou será aceita como uma igual.
Ela vai até um estúdio de gravação para produzir seu mais novo álbum e esperava que não fosse ter grandes problemas. A banda a acompanha faz tempo e sabe o seu lugar dentro do negócio. Contudo, como eu disse antes: o show business é complexo e cheio de novatos tentando chegar à fama. E ela esbarra no jovem - e convencido por natureza - trompetista Levee (Chadwick Boseman, em seu último trabalho nas telas de cinema), que tem como certo o seu sucesso vindouro. Resultado: um duelo de gerações recheado de preconceitos os mais diversos.
A voz suprema do blues, do diretor George C. Wolfe, é o filme que eu estava aguardando com ansiedade para este final do ano. Fala do ontem para as minorias e os massacrados sem se esquecer do que o problema se tornou com o passar das décadas. E expõe a nu toda a dor e ressentimento de um povo (que, cá entre nós, tem todo o direito de ser ressentido do jeito que é, embora a classe privilegiada não tenha a capacidade de entender isso!).
Quando Levee esmiuça seu ponto de vista moderno para os outros músicos da banda, a chamada velha guarda, satisfeita com as míseras conquistas que realizou, começa um grande debate, feroz em suas intenções, sobre demagogia, religião, poder, sucesso e hierarquia. Quem manda e quem obedece, quem tem talento e quem só serve para acompanhar os outros, quem comanda o show e quem deve obedecer, etc etc etc. Há inclusive um monólogo extremamente questionador sobre a fé que vale por, pelo menos, um terço do longa.
A história, que é baseada numa peça teatral de August Wilson, me ganhou logo cara nessa adaptação cinematográfica por sua caracterização irretocável, os figurinos e o clima da época. Para cinéfilos que adoram filmes históricos, verão na película um prato cheio. Porém, trata-se de uma narrativa de embates, logo de interpretações ora fortes ora precisas. E tirando uma participação feminina dispensável, achei o elenco coeso e ciente do que queria desde o primeiro fotograma. Prevejo algumas indicações ao Oscar.
Detalhe que eu quase ia esquecendo: no quesito musical, o filme também não deixa a desejar, embora (eu confesso) quisesse ver um pouco mais. Mas não se trata de um musical estilo Broadway, logo volto à realidade para acompanhar as entrelinhas da história.
E ao passar dos créditos, percebi estar diante de um grande ensaio sobre os restos da sociedade.
Você, neste exato momento, deve estar pensando em casa: "o que ele quis dizer com isso?". A voz suprema do blues se debruça de forma inteligente sobre a vida miserável dos eternos excluídos da maior nação do planeta. Aqueles que só têm utilidade em época de eleição (algo que nós, brasileiros, conhecemos bem) e durante o resto do ano precisam se satisfazer com o que têm. E mesmo quando vencem na vida, por menor que seja, não passam de meros bobos da corte, "aqueles que entretém os verdadeiros seres humanos, os homens de bem".
O longa de Wolfe me fez pensar em muita coisa boa que eu vi nessa linha ao longo da minha vida cinéfila. Falo de Bird, de Clint Eastwood; da minissérie Raízes (de 1977); 12 anos de escravidão, de Steve McQueen e o eterno Malcolm X, de Spike Lee. E isso é realmente muito bom. Por outro lado, também nos mostra o quanto continuamos involuindo como sociedade, principalmente: como raça humana. E isso é realmente muito triste.
E só por essa contradição já vale a pena dar uma fuçada atrás dessa produção da Netflix (É... Outra vez ela!).
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Tem dias em que a tristeza bate fundo porque uma pessoa querida, que fez parte da nossa infância e da nossa formação cultural, vai embora. E parte de maneira dolorida. E você fica em casa pensando: "tanta gente escrota no país e justo ele teve que ir embora!". Pois é... É exatamente assim que eu estou me sentindo nesta quinta-feira ao acordar e ver na tv a notícia de que o cantor e compositor Genival Lacerda faleceu, aos 89 anos, vítima do Coronavírus.
Eu lembro exatamente do dia em que vi Genival na televisão pela primeira vez. Era o Clube do Bolinha, na Rede Bandeirantes, e assistíamos na casa da minha avó. Na verdade, era um acontecimento assistir esses programas de auditório na casa da minha avó. Todos os netos se reuniam em frente a tv e sempre tinha um lanche para acompanhar a farra, que adentrava a tarde.
Genival chegou com seu jeito despojado, seu chapeuzinho, sua camisa florida (gosto que não perdeu com o passar dos anos), mexia com uma bailarina específica que estava sempre irritada, dançando, chamava a galera para cantar junto, dançava com a própria barriga. Era o verdadeiro munganga (expressão referente aos trejeitos, caretas e macaquices que fazia no palco como poucos na MPB).
Na hora pensei comigo mesmo: "está aí um cara que sabe viver a vida!". Passei a acompanhar sua carreira de perto. Quando não estava no Bolinha, dava as caras no Cassino do Chacrinha ou no programa do Raul Gil, sempre com um enorme sucesso.
E desde já proponho um desafio aos leitores deste humilde artigo: quem aqui pode admitir que nunca ouviu suas músicas? Quem se atreveria? Canções como "Severina Xique Xique", "Radinho de pilha", "Mate o véio" e "De quem é esse jegue" certamente fizeram parte do imaginário popular não somente nordestino (Genival é de Campina Grande, na Paraíba) como do Brasil como um todo.
Quando penso num artista popular que agradou a gregos e troianos, foi do Oiapoque ao Chuí, penso imediatamente em Genival Lacerda e suas momices. Ele era a cara do forró, da MPB eclética e bem humorada e de um tempo que, dia a dia, parece ficar cada dia mais distante do país por conta dessa nova mania do povo brasileiro em desmentir ou esconder tudo.
Em 2008 a documentarista Carolina Paiva realizou o longa O rei da munganga (que dá título a este texto) e mostrou de perto a vida íntima, as amizades e a rotina de trabalho de Genival. Lembro de ter assistido o filme na TV Brasil às gargalhadas. Era uma figura ímpar que vai deixar muitas saudades!
Hoje, ao ver amigos do cantor de longa data, como Elba Ramalho, Alceu Valença, Fagner, dentre tantos outros, se despedindo do velho mestre, alguns às lágrimas, confesso que também chorei.
Genival fez parte da minha infância. Com ele, aprendi que não é preciso ser sofisticado, cheio de rapapés acadêmicos, vestindo ternos e gravatas caríssimos, para entender o outro. Ele fez tudo isso com tão pouco e ao mesmo tempo parecia que ele tinha feito tanto. E, honestamente, ele fez sim. Muito. São pessoas como ele que precisam servir de exemplo e legado à esse país estilhaçado no qual estamos vivendo atualmente, que só quer saber de idolatrar as fake news e um passado fictício.
Genival, meu caro, não lhe conheci pessoalmente (e desde já me arrependo disso), mas tenha a certeza de que falarei sobre você e ouvirei suas músicas pelo resto da minha vida. Você era o cara!
Fica com Deus! E todo meu respeito e sentimentos aos seus familiares.
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Cruella
4.0 1,4K Assista AgoraUm conto de fadas às avessas
(Cruella, de Craig Gillespie, fala do que precisamos nos tornar e das ferramentas que utilizaremos para conseguir encontrar um caminho em nossas vidas. E esse, definitivamente, não é um terreno fácil de ser desbravado)
Embora eu não seja um fã apaixonado pelos contos de fadas (pelo contrário!), é de notório conhecimento que o gênero é um grande agregador de admiradores os mais diversos ao redor do mundo. E uma grande responsável por toda essa paixão se concretizar são os estúdios Disney. Mesmo em tempos de Pixar, 3D e outras tecnologias, os mais velhos não se esquecem da época em que fábulas como Branca de neve e os sete anões e Bambi faziam lágrimas saírem dos olhos deles quando eram crianças.
São muitos os autores que tornaram o gênero popular nos quatro cantos do planeta terra. Os irmãos Grimm, Charles Perrault, Hans Christian Andersen e Esopo certamente fazem parte da alta cúpula deste segmento. Contudo, precisamos admitir também que os contos de fadas precisaram se diversificar e abrir sua mente para novas ideias, abordagens e conceitos. Quem não se lembra do polêmico livro Contos de fadas politicamente corretos, de James Finn Garner, que tanta dor de cabeça trouxe aos mais moralistas quando foi lançado por aqui?
Imagine então pegar uma personagem que originalmente foi vendida desde o início como uma vilã e transformá-la, a partir de um remake, numa quase anti-heroína... Pois bem: foi exatamente essa a sensação que eu tive ao final da sessão de Cruella, novo filme do diretor Craig Gillespie (responsável pelo também ótimo Eu, Tonya).
Cruella nos traz a história de origem da clássica "vilã" Cruella de Ville. Acompanhamos a ainda criança Estella (vivida pela atriz-mirim Tipper Seifert-Cleveland e por Emma Stone - por sinal, radiante do início ao fim - na fase adulta) pela infância difícil, o bullying na escola, o grande fantasma da diferença que pairava sobre ela já naquele tempo. Quando a mulher que a criou morre numa tragédia envolvendo dálmatas, o mundo daquela pobre menina rui. E não fossem os dois garotos e, posteriormente amigos inseparáveis, que conheceu naquele tempo, Jasper (Joel Fry) e Horace (Paul Walter Hauser), ela certamente não teria chegado à adolescência.
Pois ela chega e com ela o desejo de Estella se tornar estilista. Seu maior sonho: trabalhar para a Baronesa (Emma Thompson, espetacular!). Entretanto, uma reviravolta nos fatos a fará descobrir sua história verdadeira e com isso ela precisa tirar a patroa, rainha da moda em seu país, da jogada. Mais do que isso: ela quer ser a nova sensação do mundo fashion. E, com certeza, possui o talento e a vontade necessárias para isso.
Destaque imprescindível: adorei o trabalho que o diretor realizou em cima da indústria da moda e dos desfiles psicodélicos e exagerados. De vez em quando eu fuço nos sites de vídeos e me deparo com desfiles criados por grandes estilistas do momento e fico impressionado, em certas ocasiões, com o nível de paranoia e surrealismo que envolve esse setor. Há, inclusive, desfiles que quase beiram o irreal. Acreditem: para aqueles espectadores que tenham a intenção de chamar esse aspecto do longa de "isso é história de filme; na vida real não é bem assim", refaçam seus julgamentos. Há muita loucura e exagero nesse mercado, sim!
Entre o duelo de forças entre Estella (agora, Cruella) e Baronesa, acredito mesmo que o maior legado do filme foi ter criado meio que um conto de fadas às avessas. Digo isso porque sabemos de antemão - e quem não sabe, veja 101 dálmatas o quanto antes - o que Cruella se tornará com o passar dos anos. E ela não se encaixa na figura de princesa que a Disney sempre gostou de vender. Você pode até considerá-la um gênio incompreendido; já uma mocinha frágil, desprotegida, que espera ansiosamente o beijo do príncipe, jamais.
E não fiquem putos, ó amantes do maniqueísmo! Isso é justamente o que o longa de Gillespie tem de mais interessante a nos entregar.
Termino de ver a película e me deparo com vários canais sobre cinema na internet chamando essa versão de Cruella de "o melhor live action da Disney dos últimos anos". Quer saber? Eles (ou elas) não estão muito errados, não! Depois de me decepcionar com Alladin sem a eterna voz do Robin Williams, Dumbo e o mais recente Mulan, foi extremamente gratificante me deparar com uma produção tão bem cuidada e estilosa. Ficam, aliás, aqui meus mais entusiasmados cumprimentos a dupla Jenny Beavan e Tom Davies - que fez os figurinos maravilhosos -, à Fiona Crombie, responsável pelo design de produção bem como a toda a equipe que criou a direção de arte esplendorosa.
Cruella não é um estudo de caso sobre a origem da maldade de um ser humano, mas realiza uma interessante reflexão sobre mudança de paradigmas e nos mostra que mesmo as pessoas geniais que tanto idolatramos tem uma história de vida a qual não necessariamente nós, seus fãs mais ardorosos, iremos nos orgulhar. E isso também precisa ser mostrado de vez em quando, e não somente heróis e vilões trocando socos e pontapés.
P.S: eu confesso que tinha bronca da atriz Emma Stone. Acreditava que ela seria apenas mais uma invenção de hollywood. Mas aqui, para minha total surpresa e júbilo, ela queimou a minha língua. Mesmo.
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Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida
4.0 668 Assista AgoraO arqueólogo mais famoso do cinema
(Os 40 anos da franquia Indiana Jones.)
"O cinema precisa de heróis. Sem eles, a sétima arte não teria a menor graça". A frase é do meu pai que já se encontra no andar de cima e me ensinou a admirar os clássicos e também o bom cinema. E ele estava coberto de razão. Por mais que, em alguns momentos, Hollywood tenha se perdido com a cultura excessiva dos super-heróis e a eterna batalha contra a destruição do mundo, ela também nos ensinou a acompanhar a jornada de grandes homens e mulheres imbuídos do desejo de fazer a coisa certa. E, como sempre, fazer a coisa certa nunca é uma tarefa fácil. Que o diga o arqueólogo mais famoso da história do cinema, Indiana Jones.
Quando o diretor Steven Spielberg trouxe às telas o hoje cult professor de arqueologia que, nas horas vagas, entre uma aula e outra, enveredava por missões quase impossíveis, ele já era um cineasta renomado. Fosse pelo arrasa-quarteirão Tubarão ou pelo exuberante Contatos imediatos do terceiro grau, meu filme favorito dele. Contudo, ele ainda não havia trabalhado com o ator Harrison Ford, que chegou a ser rotulado pela indústria por um bom tempo como o "astro do século" e homem por trás de personagens célebres da história do cinema americano, como Han Solo e Deckard do também cult Blade Runner - o caçador de androides. A parceria tinha tudo para dar certo, tanto que deu e os fãs agradecem por isso até hoje. E seu pontapé inicial, Indiana Jones e os caçadores da arca perdida, está completando quatro décadas em 2021.
Na produção, o arqueólogo e desbravador procura pela arca da aliança, que contém as pedras com os dez mandamentos. E foi, com certeza, uma saga hercúlea encontrar o tão cobiçado objeto, alvo do interesse também de nazistas que fizeram de tudo para atrapalhar Indy e sua sócia, Marion (Karen Allen). Como eu era bem pequeno nessa época, tinha menos de cinco anos, não tive a honra de assistí-lo numa sala de cinema. E confesso aqui: me ressinto disso até hoje. Se o hoje clássico já é notável nos formatos DVD e Blu-Ray, imagina então na tela grande.
Três anos se passam e por conta do sucesso de bilheteria do longa original Spielberg e Ford retomam o projeto em 1984 com Indiana Jones e o templo da perdição, até hoje meu favorito de toda a franquia. Nele, Jones precisa encontrar as três pedras sagradas de uma tribo na Índia que foram roubadas por um inescrupuloso feiticeiro, também responsável pelo sequestro das crianças da mesma tribo e também por uma série de cultos malignos que envolvem sacrifício humano. Houve um período em que eu era tão fanático pelo filme, que era reexibido exaustivas vezes na Sessão da tarde, que cheguei a vê-lo mais de 20 vezes sem enjoar um segundo sequer!
Resultado: mais um sucesso de público e após mais um hiato, desta vez de cinco anos, Spielberg e Ford realizam em 1989 - no que se esperava, um encerramento de uma trilogia - Indiana Jones e a última cruzada. Aqui, Jones acompanhado de seu pai (vivido pelo eterno James Bond, Sean Connery), procuram pelo lendário Santo Graal enquanto tentam escapar, mais uma vez, de nazistas também loucos para pôr a mão na relíquia. Esse foi o primeiro filme da franquia a que eu assisti, pois na época acabara de completar 13 anos e fui correndo ao cinema para conferir. Obs: havia uma fila gigantesca na entrada da sala de projeção, fãs notórios e eternos da franquia.
E parecia que o legado proposto pela dupla havia chegado ao seu término. Pois é,.. Era realmente o que parecia. Mas não. Quase 20 anos depois eles reúnem, cabelos grisalhos, para realizar em 2008 o longa mais fraco da parceria, Indiana Jones e o reino da caveira de cristal, com direito a presença de um filho para Indiana Jones (interpretado pelo ator Shia Labeouf), fruto de seu relacionamento com a antiga sócia e amada Marion. Eles procuram pela estatueta que dá nome ao longa, enquanto cruzam de tempos em tempos com a maléfica Irina Spalko (Cate Blanchett) e seus lacaios soviéticos, sempre aptos a matar o professor e sua prole.
E para os que acham que acabou... Nada disso, meus caros leitores! Vem aí um quinto longa para o herói, mas dessa vez sem Spielberg na cadeira de diretor, que cede o lugar para o também interessante James Mangold, responsável por filmes como Logan, Copland e Ford vs. Ferrari. Mas não se preocupem, pois o herói original repetirá seu personagem, para júbilo dos fãs.
Ah! Acabei de me lembrar. E para que não me acusem de esquecimento, a franquia ainda teve entre os anos de 1992 e 1993 uma série televisiva derivada que durou duas temporadas e 28 episódios com o ator Sean Patrick Flanery na pele do arqueólogo e professor. Foi exibida aqui no país pela Rede Globo.
O melhor legado que consigo extrair de Indiana Jones foi o fato dele ter transformado minha adolescência num lugar muito mais divertido. Indy caçou tesouros ao redor do mundo, fugiu de tiros, encarou duelos (alguns de forma um tanto inusitada), pilotou aviões, saiu na porrada meio que de 15 em 15 minutos, brigou com o pai, foi traído por mulheres que amou, correu, se arrastou, sujou as mãos, cruzou com Hitler, esmurrou alemães e russos por onde passou, ufa!, acho que é mais fácil dizer o que o herói não fez. Ou AINDA não fez. Porque pelo andar da carruagem ele ainda tem muito o que aprontar e como bem disse um artigo que eu li sobre a chegada do quinto filme da franquia: "os heróis não envelhecem".
Quanto a vocês, jovens cinéfilos, que não pertencem à geração que acompanhou as aventuras e desventuras de Jones na devida época e acham que heróis mesmo quem produz com exclusividade é a Marvel e a DC, fica aqui o meu convite: procurem. Tenho certeza que se derem uma chance ao velho professor (e ele não parece demonstrar o menor interesse pela aposentadoria) não irão se decepcionar.
Agora é com vocês!
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Estados Unidos Vs Billie Holiday
3.3 150 Assista AgoraUm fruto incomum
(Estados Unidos vs. Billie Holiday, de Lee Daniels, é a história norte-americana se recontando de forma ácida, sem o brilho das eternas hipocrisias que a terra do Tio Sam tanto gosta de vender de tempos em tempos)
Adoro história e tenho uma relação um tanto quanto sarcástica com ela. Embora saiba que, muitas vezes, alguns historiadores não consigam fugir da ideia de que ela seja uma grande fabulação e, portanto, está sujeita as mais diversas, subjetivas e por vezes calhordas interpretações, ainda assim sempre que posso estou debruçado em algum livro sobre o tema. E desde já adianto: gosto dos mais diferentes assuntos. Guerra do Vietnã, Capitanias hereditárias, Inconfidência mineira, Feudalismo, etc etc etc. O céu é o limite quando estou dentro desse universo.
Contudo, é preciso dizer aqui que a história, a maneira como ela é contada muitas vezes, me faz pensar que ela (e nesse caso, leia-se: o sistema, as autoridades, etc) gosta de perseguir àqueles que não se adequam ao padrão imposto por um regime determinado. Todos aqueles que não obedeceram as regras do jogo, que não abaixaram a cabeça para os "donos do poder", de alguma forma pagaram um preço alto por isso. Veja o caso, por exemplo, da cantora Billie Holiday.
Em 1937 uma lei que revogava o linchamento que era imposto à comunidade negra norte-americana não passou no Senado e a cantora decidiu fazer de uma canção, "Strange fruit", um manifesto contra a injusta decisão. Os críticos musicais da época rotularam a canção dela de "uma interpretação lírica sobre a violência que era cometida contra o povo negro". Resultado: o governo federal se incomodou. Mais do que isso: era preciso tirar aquela mulher de circulação o quanto antes.
E para isso, o FBI, na figura do diretor Harry Anslinger, decidiu perseguir a artista por conta de seu vício de longa data em heroína. Pior: escondeu essa perseguição sob a falsa alcunha de que se tratava do combate às drogas e ao narcotráfico que assolava o país. Entretanto, muitas pessoas brancas também viciadas não sofreram a mesma compulsiva investigação. Teria, então, não passado tudo isso de racismo disfarçado?
Para esmiuçar questões como essa e tantas outras, mais de sete décadas depois o diretor Lee Daniels - do extraordinário Preciosa - realiza o excelente Estados Unidos vs. Billie Holiday e se debruça sobre um país que em nada difere do atual Estados Unidos da América da era Trump. Na verdade, ele só era naquele período mais cínico.
Billie Holiday (interpretada pela cantora Andra Day), à parte o fato de ter sido uma das maiores cantoras da história dos EUA, comeu o pão que o diabo amassou desde a infância e sabe como poucas o real significado da palavra sofrimento. E não bastasse isso viu sua vida ser devassada e rotulada nos mais perversos níveis por ditos "homens da lei" que não passam de figuras preconceituosas ao extremo. Anslinger (vivido por Garrett Hedlund), que no fim da vida chegou a ser homenageado pelo presidente Kennedy por "bons serviços prestados ao país", de tão covarde se presta a ter um bode expiatório na figura de um agente negro em ascensão, o jovem Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes). Tudo para que, no futuro, não seja lembrado como racista e que digam que ele também deu oportunidades de crescimento à pessoas da etnia.
Parece cruel e é. Billie é presa, sofre maus tratos, tiram-lhe sua licença para trabalhar, é obrigada a se apresentar ilegalmente e se não fosse suficiente o inferno astral pelo qual passou, ainda por cima fez escolhas de vida terríveis, como o péssimo gosto que sempre teve para homens violentos e que só fizeram lhe explorar. Sim, ela muitas vezes foi a própria responsável pela tragédia pessoal que viveu.
Como pano de fundo para realçar a história de provações e injúrias cometidas uma direção de arte impecável, a trilha sonora espetacular (cabe aqui um aparte: embora Andra Day seja uma cantora interessantíssima, aqui ela é dublada por Billie e achei a escolha do diretor acertadíssima, pois a musa do jazz é realmente insuperável) e um clima de nostalgia que sempre me aprisiona de cara. Como disse no parágrafo de abertura: adoro história e o passado sempre mexe comigo de alguma forma.
Assim como sua canção polêmica, motivo de todo o revés que sofreu, Billie também era um fruto estranho, incomum, pois não se submetia aos ditames do que a América considera correto, polido, de bom tom. Durante uma entrevista que ela concede o jornalista lhe pergunta: "por que você simplesmente não acata as decisões do governo? Até quando vai aturar todo esse sofrimento?". Porém, trata-se de um homem branco. E isso diz muito sobre o país no qual ela vive. Pessoas como ela não podem ter opiniões ou fazer escolhas próprias. Precisam, isso sim, ser marionetes de uma estrutura tendenciosa, fabricada para colocar toda uma classe no seu devido lugar.
Ao final da projeção fico me perguntando o que faltou para Estados Unidos vs. Billie Holiday entrar na lista de indicados ao Oscar desse ano. Era, pelo menos para mim, evidente ser uma produção bem melhor do que ao menos dois dos oito indicados. Deve ter faltado lobby para tanto. Mas enfim... Quem perdeu com isso foi a própria Academia de artes e ciências cinematográficas que realiza o evento.
E quem como eu é fascinado pela história, pelo ontem e pelas eternas distorções que o mundo promove de tempos em tempos, tem aqui um prato cheio para refletir nessa época de tanta alienação e falta de caráter.
P.S (eu quase deixei de fora, mas minha língua coçou): se puderem, conheçam toda a cinematografia do diretor Lee Daniels. É das melhores coisas que apareceram em hollywood nos últimos anos.
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Saint Maud
3.5 336 Assista AgoraParece que vou a um lugar muito escuro
(Saint Maud, de Rose Glass, é a subversão à lógica dos filmes de possessão e também um estudo de caso sobre a intolerância da fé.)
Definitivamente a fé, para a sociedade contemporânea, virou uma reles moeda de troca em meio a uma humanidade perversa e cínica que adora se esconder atrás de estereótipos religiosos para justificar suas intenções malignas. E não é preciso irmos longe para percebermos toda essa distorção comportamental. Ela está por aí, a olhos nus, fazendo das suas em tempo integral. E pior: com um sorriso de deboche nos lábios.
Um colega meu das antigas, também cinéfilo apaixonado como eu, aparece aqui em casa com uma cópia do filme Saint Maud, da diretora Rose Glass, que venho correndo atrás já há algum tempo. Ele me diz que vou adorá-lo justamente porque traz em suas entrelinhas uma reflexão sobre esse aspecto mórbido da sociedade. E não está enganado. Pelo contrário. Me deparo - isso sim - com um longa de uma ferocidade assustadora e brutal desde o primeiro fotograma. Daquelas histórias que você precisa assistir não importa o quanto ela o incomode. E tudo isso porque está refletindo um traço visceral desse ser humano dos chamados "novos tempos".
Maud (Morfydd Clark, absolutamente imprevisível) é uma jovem cuidadora que passou por um revés recente num hospital onde trabalhava e foi desligada da função. É contratada para tomar conta de uma ex-coreógrafa, Amanda Kohl (Jennifer Ehle), que encontra-se impossibilitada de andar por causa de um dano na coluna cervical. Conhece a rotina da casa, bem como os costumes de sua cliente. E embora ela pareça um tanto ousada em seus costumes para o seu gosto, tudo leva a crer que ambas se darão bem.
O problema: Maud vê na coreógrafa e, principalmente, em suas escolhas de carreira, uma vida suja, polêmica, voltada para o mal. Quando se depara com uma matéria na internet acerca de um espetáculo do qual a artista participou em que ela se refere a sua relação com a arte como "às vezes parece que vou a um lugar muito escuro", ela fica horrorizada e, mais do que isso, acredita que Amanda está sob o efeito de uma espécie de possessão. Em outras palavras: para Maud, é o demônio que rege a vida de sua cliente. E ela, por sua vez, se vê na condição de uma emissária de Deus e, por isso, tem a obrigação de curá-la desse mal, afastando-a de qualquer tentação.
Nesse momento aviso aos leitores da crítica e possíveis espectadores do longa, que fiquem de olhos abertos para importantes entrelinhas que surgirão ao longo da narrativa. Não ponham a mão no fogo totalmente por Maud. Há, ao contrário, muito sobre o que duvidar no que diz respeito ao caráter da jovem cuidadora. E foi nesse exato momento que eu entendi porque o meu colega das antigas (lembra dele?) me emprestou esse filme.
É possível fazer uma correlação evidente entre Maud e muitos membros de certos segmentos religiosos do nosso país e também do mundo. E me refiro à eterna mania que certos religiosos têm de ver o mal, o pecado, o errado, apenas nos outros, se escondendo atrás de uma falsa aura de pureza. Não somente isso: nunca presenciamos de forma tão forte um desserviço tão grande à chamada liberdade religiosa. Qualquer mentalidade ou raciocínio que fuja da cartilha desses segmentos extremistas é visto como "antiético", "anticristão", "contra a moral e os bons costumes" ou atenta "contra a moral divina", como se somente eles forem os verdadeiros detentores da palavra de Deus.
Ou como bem diria o saudoso Renato Russo em sua canção Faroeste caboclo: uma mentalidade confusa, na linha "Se dizia que era crente, mas não sabia rezar".
Detalhe: poderia até dizer com folga que Maud, como personagem, é praticamente uma figura metonímica (ou seja: representa a parte pelo todo de um sistema desigual, cafajeste e que prima por conduzir a vida alheia - no caso, a daqueles que não se submeteram à vontade desta estrutura contraditória - segundo um modelo repressivo, pautando ideias, amizades, lugares, onde devemos ir, o que pensar, o que falar, etc), parcela de um projeto que visa à exclusão de qualquer possibilidade de diferença.
Contudo, é preciso aquietar àqueles que possam estar temerosos com o fato de que este seja um filme gospel (e, portanto, tedioso). Nada disso! Saint Maud é terror dos bons, assustador em suas intenções e sabe deixar o jump scare e a cereja do bolo para o final.
Vejo no longa de Rose Glass uma desconstrução (quase uma subversão) dos chamados filmes de exorcismo e a luta entre o bem e o mal. Aqueles espectadores que continuam idolatrando O exorcista, de William Friedkin, como o grande clássico do gênero, certamente verão aqui um interessante - e remodelado - exemplar. Entretanto, não esperem pelo modelo clássico. O terror, a meu ver, sempre foi mais do que apenas sustos, padres portando bíblias e água benta e adolescentes endemoninhadas.
Agora é com vocês. Mais do que isso e eu entrego todo o élan do filme (e isso não se faz!).
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Nomadland
3.9 896 Assista AgoraOs novos peregrinos
(Nomadland, de Chloé Zhao, é seco, amargo, quase devastador. E ainda assim um painel dos Estados Unidos da América que você não pode deixar de conhecer. De jeito nenhum.)
Eu tinha por volta dos meus 20 anos de idade quando procurei numa biblioteca de bairro informações a respeito do regime de hipotecas que rege o mercado imobiliário norte-americano. Eu queria entender o que um cidadão da terra do Tio Sam precisava fazer para ser dono de sua própria residência. E a resposta que chegou até mim foi: fiquei extremamente horrorizado. A sensação que me povoou durante os meses seguintes foi a de que estava diante de uma sociedade manipulada, que gosta de ser feita de escrava.
E como bom cinéfilo que sou, durante anos pensei: "Hollywood jamais exporá esta triste realidade num longa-metragem. É barra pesada demais e pior do que isso: eles não gostam de mostrar suas derrotas e distorções com muita facilidade".
Mas não é que uma cineasta chinesa decidiu falar do legado produzido por essa cultura sórdida e além disso se tornou favorita ao prêmio de melhor direção no Oscar desse ano? Sim, podem acreditar. A polêmica temática sobre moradia nos EUA chegou às telas do cinema feita de forma seca, crua, mas não menos visceral. E em tempos de crise financeira global e "a maior nação do mundo" mostrando que, na verdade, nunca foi tudo isso que vendeu para o resto do planeta, vale a pena dar uma fuçada nesse lamaçal.
Refiro-me à Nomadland, filme da diretora Chloé Zhao, e a verdade sobre "A América será grande novamente", promovida pelo governo antecessor.
Acompanhamos a saga de Fern (Frances McDormand), uma mulher que simplesmente cansou da ideia de passar a vida inteira trabalhando por uma casa que no final das contas nunca será dela, pois a hipoteca foi criada com a clara intenção de mantê-la trabalhando até morrer, sob a desculpa de que no final ela realizaria o sonho da casa própria. Pura ilusão! E ela então decide morar em seu trailer, viajando de cidade em cidade em busca de pequenos trabalhos temporários e bicos.
Sua melhor fonte de renda é um trabalho na Amazon que não dura o ano inteiro e por isso ela precisa preencher a lacuna com outros serviços. Do contrário, não conseguirá manter suas despesas pagas. E são muitas. Qualquer defeito no veículo, doença por menor que seja ou deslize ocorrido acarretará num ônus e isso pode afetar sua renda básica. Logo, ela vive uma vida cigana, sempre na berlinda.
E durante sua travessia conhece muitos como ela, divide suas experiências e lamentações. Eles são os novos peregrinos dessa nação que, outrora, teve que viajar muito, bater muita perna, antes de fincar território num lugar que pudesse chamar de seu. E essa é exatamente a melhor história do filme. É quando conhecemos os Estados Unidos da América que os tabloides, a Casa Branca e a indústria cultural não querem que você, espectador, conheça. Já que esse país não venderia ao restante do mundo a pecha de grandioso, de maior potência mundial, que eles volta e meia apregoam em seus discursos e eventos majestosos.
Houve um momento da película em que me peguei relacionando Fern e todas aquelas pessoas que vivem na estrada com o jovem Chris McCandless, personagem de Emile Hirsch no filme Na natureza selvagem, de Sean Penn. A única diferença é que Chris decidiu abandonar sua casa e família porque não conseguia viver sob a ótica do sistema (ou seja: entendia sua vida dentro de uma ótica marginal). Já Fern desistiu do sistema por considerá-lo falho e injusto.
E ela vê no discurso daqueles que não aceitam seu estilo de vida ou tentam vender para a sociedade a ideia de que o país fez a melhor escolha para todos uma espécie de manipulação muito bem construída pelos governantes. Tive, inclusive, a impressão numa determinada cena de que ela olhava para seu interlocutor como se ele fosse um indivíduo que acabasse de passar por uma lobotomia, tamanha a disparidade entre suas opiniões.
Ao final da projeção o que fica de mais evidente é a sensação de niilismo e cansaço daqueles que lutam contra a maré para sobreviver um dia de cada vez, pois foi apenas isto que lhes sobrou do chamado sonho americano há tantas décadas acalentado.
Nomadland pode até não ganhar o Oscar de melhor filme e ser vencido, como tantos outros no passado, pelo eterno moralismo da academia. Filmes corajosos como O segredo de Brokeback Mountain e O resgate do soldado Ryan já viveram essa sina, perdendo para longas de gosto discutível e que perderam relevância meses depois da premiação. Contudo, dentre todos os candidatos desse ano e por tudo o que vem acontecendo no país nos últimos quatro anos, seria o postulante ideal ao prêmio. E alguns talvez me perguntem nesse momento o porquê.
Respondo: porque às vezes, por mais dura que seja a verdade, e por mais que não queiramos enxergá-la, seja por vergonha ou covardia, ela precisa ser mostrada e reconhecida. E isso é mais justo do que vivermos eternamente na mentira.
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Matriz. Doc
4.4 3Reloading...
(Matriz ao vivo na Bahia, da cantora Pitty, é muito mais do que apenas música, do que show, do que celebração. É uma grande provocação artística e também um sentimento vivo de recarregar as baterias antes de seguir em frente)
Música é uma coisa louca, não é mesmo? Quando menos se espera ela subverte completamente a lógica e explode qualquer resquício de convicção que nós tínhamos até então.
E o mercado fonográfico está certo em dizer que há artistas e artistas. E cabe a nós, ouvintes, decidirmos o que realmente nos interessa musicalmente ou não e também entender quando o artista entra naquele momento da carreira que antecede uma virada.
A cantora Pitty, por exemplo, me interessou desde que a ouvi pela primeira vez na rádio (digo, na época em que eu ainda ouvia rádios comerciais, antes da popularização do you tube e do Spotify). Artista baiana que preferiu a fúria do rock ao axé e ao trio elétrico que Dodô e Osmar eternizaram. E desde o primeiro momento eu percebi nela um percentual de revolta bastante controlado, não evidente, que fazia com que o seu charme (e, lógico, sua voz) aflorassem.
O tempo passou, a cantora gravou os encantadores Admirável chip novo (2003), Anacrônico (2005), Chiaroscuro (2009) e Setevidas (2014), bem como seus álbuns ao vivo, de turnê, e o projeto paralelo Agridoce. E eis que chega a hora de desbravar um novo caminho.
O nome dele: Matriz, gravado no ano passado. E eu percebo uma pegada diferente. Daquelas que me fazem pensar na hora: "eu preciso ver a versão show disso, ouvir a moça cantar diante do seu público e só então tirar ou confirmar minhas próprias conclusões". Mais: eu consigo ouvir uma cantora modificada, remodelada.
E eu estava certo.
Matriz ao vivo na Bahia, realizado um ano após a versão de estúdio, é o momento reload de Pitty. De recarregar as baterias, fazer as pazes com o passado glorioso, entender tudo o que funcionou até agora, antes de seguir em frente rumo a um novo horizonte. E ela se sai extremamente bem nessa função, sem deixar de lado sua postura de protesto e as letras ácidas.
Para os fãs do óbvio, do comercial, aqueles que querem a confirmação de suas expectativas, há muito do que se orgulhar aqui. Seus maiores sucessos - "Memórias", "Na sua estante", "Teto de vidro", "Dançando", "Equalize", "Me adora", "Máscara", entre outros - estão presentes em apresentações arrepiantes. E o público canta junto o tempo todo.
Já para quem busca novidades e desvios de rota há também um momento desabafo total (quem ouvir o disco vai saber do que eu estou falando na hora!) pelo caminho equivocado que o país vem tomando nos últimos anos. A própria cantora diz antes de tocar a música que "não imaginava que fosse precisar cantá-la de novo, que preferia deixar o passado no lugar dele", mas às vezes o que a vida nos propõe é não abandonar a batalha. E com isso ela transforma a canção num manifesto estiloso, que arrebata aplausos de seus fãs.
No final das contas e, ao fim de mais de uma hora e quarenta de puro rock e adrenalina, nos deleitamos com o que a MPB - quando quer - pode oferecer de melhor. Sim, eu falei MPB. Rock nacional também merece essa classificação, embora muitos fanáticos do gênero não gostem de ouvir essa correlação (e isso é problema exclusivo deles!).
Matriz ao vivo na Bahia é intenso, é melódico, é ternura, é música da mais alta qualidade, mas principalmente, é aquele mergulho que precisamos dar antes de tomar a decisão de mudar todo o trajeto e pegar um novo caminho. E Pitty está pronta para essa nova travessia, pois pesquisou, se atualizou, buscou novos ritmos e parceiros. Como disse no título deste artigo: fez um interessante reloading.
Qual será o próximo capítulo desta história? Esta é melhor parte: o tempo dirá. E ela, com certeza, não tem a menor pressa de vê-lo chegar.
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Bela Vingança
3.8 1,3K Assista AgoraÉ o que acontece quando passamos do limite
(Seria simples resumir Bela vingança, de Emerald Fennell, como um filme revanchista ou um libelo do empoderamento feminino, mas ele não é isso. Na verdade, ele se debruça sobre a eterna mania que a humanidade tem de fazer dos seus semelhantes cobaias ou seres inferiores)
Definitivamente a humanidade é um estudo de caso sórdido. Por mais que eu reflita sobre ela, chego à conclusão de que não passamos de um grupo gigantesco de pessoas voltados à um moral fetichista, impregnada de vaidade excessiva e que só pensa em usar o próximo a seu bel prazer (e que se danem as consequências disso!).
Olhemos ao redor por um mero instante e certamente nos depararemos com versões as mais diversas desse terrível animal que é o ser humano. Lógico que não são todos, mas também não são poucos. E nos últimos anos a demanda por este tipo de criatura contraditória e vil cresceu e muito e a mentalidade política e social é bastante responsável por isso. Não sei bem onde iremos parar nos próximos anos, mas certamente o cenário que vem se construindo não é nada bonito.
E assim como existem aqueles que "deixam pra lá", que "não tem nada a ver com isso", que "só se importam com suas próprias vidas", há também um outro tipo mais ácido: aquele que decide revidar, que não vai deixar barato ou morrer no esquecimento. E Cassandra (Carrey Mulligan), protagonista de Bela vingança, longa de estreia da diretora Emerald Fennell, é dessas.
Ficou marcada de forma perturbadora por uma tragédia ocorrida com uma amiga quando cursava Medicina na faculdade e não viu os algozes desse crime serem punidos. Na verdade, os viu prosperar, obterem sucesso, construírem família, tudo com o consentimento da leniência que é dada ao universo masculino toda vez que comete erros por um cultura eminentemente misógina. E ela percebe então que se não tomar uma atitude ela própria nada mudará. Nunca. E com isso trama sua vingança com requintes de sordidez proporcional à que sofreu.
Há um aspecto na vida de Cassandra que me fez lembrar do conflito existencial que era a vida de Brandon, o viciado em sexo vivido por Michael Fassbender em Shame, de Steve McQueen. Enquanto ele não consegue se libertar de sua vida lasciva, mesmo quando encontra uma mulher disposta a dividir sua vida com ele, Cassandra simplesmente não consegue abandonar a ideia de vingança e seguir em frente com sua existência. Seus pais percebem isso, a mãe de sua amiga percebe isso, mas ela simplesmente não consegue desviar da rota que planejou.
E isso sempre - ou quase sempre - costuma cobrar um preço amargo no final.
Entretanto, ela também possui mais motivos para desconfiar da aproximação dos demais (principalmente de um antigo colega daquela época). Afinal de contas, quando estudante, testemunhou de perto a covardia que era dirigida às mulheres, que ainda por cima muitas vezes, tiveram que dissimular ou desconversar sobre o assunto, caso contrário teriam suas carreiras ou vidas destruídas. E isso, evidentemente, é um tapa na cara de quem não pode ser diferente da maioria que faz e acontece com a aprovação de um sistema corrupto e hipócrita.
Gosto particularmente da trilha sonora do filme, que poderia apelar gratuitamente à Beyoncés e Katy Perrys, mas prefere tomar um outro caminho. Ela meio que me fez pensar não somente na perda da inocência como também numa nova abordagem sobre temáticas como canções de ninar, contos de fadas e todo o universo infantil. (Detalhe: prestem atenção numa versão modernizada de um música de sucesso da cantora Britney Spears. Achei o arranjo não somente interessantíssimo e inovador como ele também antevê todo o macabro desfecho da trama).
Passada tanta dor e tanto desrespeito, o legado que o filme de Emerald me trouxe foi: não caiam na tentação de transformar o longa num libelo a favor do empoderamento feminino. Ele é muito mais do que isso. Bela vingança fala, no final das contas, do que acontece quando nós, seres humanos, passamos do limite e deixamos de respeitar o outro. E quando esses seres humanos pertencem a uma classe privilegiada, então, é um caos generalizado.
Vai ter muito homem conservador ou velha guarda chamando essa produção de revanchista ou "cheia de mágoa" e desde já adianto: eles provavelmente não entenderam nada do que viram e ainda por cima defendem o outro lado, por uma questão de identificação pessoal. Mas isso é problema deles, não do filme, que é direto em suas intenções (às vezes até demais).
P.S (ou um palpite): pelo que eu tenho visto na temporada de prêmios desse ano a atriz Carrey Mulligan é uma forte candidata ao Oscar de melhor atriz. Eu certamente votaria nela se fosse membro da Academia.
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Dreamland: Sonhos e Ilusões
3.0 29 Assista AgoraA terra da consequência
(Depressão americana e paixão bandida: Dreamland, de Miles Joris-Peyrafitte, pode não ser o novo Bonnie & Clyde, mas é um interessante drama sobre a dificuldade que os americanos têm em lidar com adversidades)
A América (ou simplesmente Estados Unidos), embora se venda para o resto do mundo como "a grande nação", sempre encontra uma maneira de fugir da discussão ou criar um atalho toda vez que sua história sai dos trilhos. Ela simplesmente não gosta de contar para os outros suas histórias tristes, decepções e desvios de percurso. Que o diga o dos tempos que sucedem a queda da Bolsa de Nova York em 1929, popularmente conhecidos como depressão americana!
Contudo, gostem nossos brothers americanos ou não, é preciso que conheçamos também esse outro lado da história do país. Ou seja: faz-se necessário que vislumbremos um versão do Tio Sam que não a de glórias e conquistas extraordinárias. E por incrível que pareça Dreamland, filme do diretor Miles Joris-Peyrafitte, que eu estou querendo assistir já há algum tempo e só agora consegui, me fez pensar exatamente nisso.
Acompanhamos a trajetória de Eugene Evans (Finn Cole), que desde criança é testemunha da dificuldade pela qual seus pais passam para sobreviver no Texas em crise financeira. Aquilo que a natureza, com suas tempestades de deserto, não destruiu os bancos fizeram o favor de tomar. A mera palavra sobrevivência ganha uma nova conotação num lugar como esse, em que simplesmente colocar comida na mesa já é uma enorme façanha. Nem mesmo seu pai biológico aguentou o rojão e preferiu ir embora, deixando a esposa e o filho para trás.
Por isso, qualquer trabalho ou missão que consiga levar o tempo das vacas magras para longe é visto com bons olhos. E nesse exato momento a melhor oportunidade em voga é a recompensa para capturar a ladra de bancos Allison Wells (Margot Robbie), que se encontra foragida. E a princípio é exatamente isso que o garoto faz, acompanhado do amigo, em meio a uma multidão de desesperados como ele. Tudo para salvar a fazenda da família.
Quando descobre que a fugitiva está escondida em seu celeiro ele prefere desacreditar da versão vendida pela polícia e os tabloides sensacionalistas (no caso, a de que ela seja uma assassina fria e calculista, chegando a tirar a vida de uma criança em seu último assalto) e se propõe a ajudá-la a fugir para o México.
Entretanto, ao longo dessa jornada ele entenderá a duras penas que nem toda verdade é fácil de ser dita como se aparenta.
E é nesse momento que uma frase dita a ele por Allison durante uma de suas conversas faz todo o sentido para entender a realidade que os EUA passa naquele período: "Eugene, esta aqui é a terra das consequências". E ela está cobertíssima de razão.
O grande legado proposto pelo longa, que é estiloso e bem produzido, é o fato de percebermos o quanto essa nação que sempre se vendeu como gigantesca e autossuficente para o resto do mundo também, quando precisa, recorre a artimanhas, crimes e a moral dúbia para realizar seus sonhos ou pagar suas dívidas. E nisso ela não difere de nenhum país emergente ou subdesenvolvido. Não mesmo. Ela perpetra atos sórdidos que podem levar a consequências ainda mais terríveis.
Talvez o único revés do filme surja para aqueles que esperam ansisos que Dreamland seja uma espécie de novo Bonnie & Clyde, cheio de tiroteios e perseguições. Diferentemente do longa dirigido por Arthur Penn, com Warren Beatty e Faye Dunaway na pele da dupla de ladrões, esta produção aqui não tem a mesma pretensão ou pegada.
Mas não se entristeçam totalmente. Há um interessante estudo de caso sobre o sofrimento humano presente aqui. Basta que os espectadores vejam a película de mente aberta e entendam que "a terra dos homens livres" - como eles bem cantam no seu hino nacional - também já passou por períodos tenebrosos e nem sempre foi essa potência mundial que vemos alardeada pela grande mídia.
Para completar o pacote da diversão, vale pela beleza apaixonante da Margot Robbie e a interessante reconstrução histórica bem como o design de produção.
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O Silêncio dos Inocentes
4.4 2,8K Assista AgoraO inimigo do meu inimigo é meu amigo
(Os 30 anos de O silêncio dos inocentes, de Jonathan Demme)
O gênero policial mexe comigo. Mesmo. Desde que eu me entendo por cinéfilo reservo uma parte do meu tempo a desfrutar da nobre arte da criminologia e seus personagens sórdidos e maquiavélicos. E quando ainda por cima esse gênero vêm mesclado com o mais puro terror - e não me refiro ao terror como sinônimo de jumpscares ou criaturas sobrenaturais, e sim àquele capaz de nos fazer ficar paralisado, incomodado diante do medo - aí então eu me rendo de vez. E é preciso deixar claro para os leitores desta humilde crítica: poucos até hoje conseguiram me deixar desse jeito, pois é preciso talento (e muito) para tal.
Dito isto, é com enorme prazer que vejo o hoje clássico O silêncio dos inocentes, do diretor Jonathan Demme, chegar a três décadas de existência sem perder o seu glamour e mesmo sua elegância (sim, o longa é de uma elegância assustadora!).
O longa de Demme nos conta a história da jovem agente do FBI, Clarice Starling (Jodie Foster), que investiga o paradeiro do serial Killer Buffalo Bill, responsável pelo assassinato de inúmeras jovens. E para isso ela precisará recorrer à ajuda de um outro serial killer: o ardiloso, mas não menos estiloso, Hannibal Lecter (Anthony Hopkins, naquela que eu considero até hoje a melhor interpretação de um vilão na história de hollywood).
Embora tenham modus operandis completamente distintos - Hannibal é charmoso, meticuloso, aprecia cada momento que tem com suas vítimas, e não se nega a saboreá-las quando precisa (daí o apelido de "canibal"); já Buffalo é mais visceral, animalesco e está realmente interessado é na pele de suas vítimas, com a qual faz roupas um tanto quanto mórbidas - Clarice acredita piamente que somente o Doutor trancafiado na ala de segurança máxima poderá ajudá-la a encontrar o seu assassino. Em outras palavras: ela meio que recorre ao velho ditado "o inimigo do meu inimigo é o meu amigo" para resolver esse mistério.
Uma importante informação cabe aqui para os marinheiros de primeira viagem que nunca viram o filme: não deixem de perceber e levar em consideração a relação tensa entre Hannibal Lecter e o chefe de clarice no FBI, o agente Jack Crawford (Scott Glenn). Trata-se de uma linha tênue importantíssima para nós, espectadores, entendermos o que Lecter fez no passado de tão assustador. Repito: não percam esta entrelinha vital.
Já quando o assunto são os bastidores do filme, isso por si só renderia um longa próprio. Antes de O silêncio dos inocentes, o diretor Michael Mann já havia introduzido o personagem Hannibal Lecter no seu longa de 1986 Caçador de assassinos, que é uma adaptação do romance Dragão Vermelho, livro anterior de Thomas Harris, criador do personagem, e trazia o ator Brian Cox na pele do psicopata. Contudo, o filme foi um fracasso retumbante de bilheteria e os estúdios acreditavam que seria perda de tempo voltar a esse universo.
Entre os atores de peso associados ao projeto, temos o ator Gene Hackman - que chegou a comprar os direitos de adaptação de O silêncio dos inocentes (e houve até a possibilidade de que ele dirigisse o projeto) -; Sean Connery, que recusou interpretar Hannibal e a belíssima Michelle Pfeiffer, que pediu uma cachê muito acima do teto da produção para incorporar Clarice. Entretanto, confesso aqui, acho que a desistência dos dois fez muito bem ao filme. Não acredito que a produção tivesse o mesmo impacto ou repercutido por tantas décadas com a dupla (que chegou a dividir tela em A casa da Rússia). Ambos me parecem, à primeira vista, escolhas melhores para outro tipo de cinema e não uma película criminal cheia de elementos assustadores.
O filme ganhou cinco oscars (filme, diretor, ator, atriz e roteiro adaptado) e juntou-se à Aconteceu naquela noite, de Frank Capra e Um estranho no ninho, de Milos Forman, como os únicos longa-metragens na história da premiação até hoje a faturar as cinco principais estatuetas. E olha que o filme de Demme chegou a ser considerado, à época, um azarão. Tanto que teve seu lançamento adiado para que a Orion Pictures, que produziu o longa, divulgasse seu carro-chefe: o também vencedor do Oscar Dança com Lobos, de Kevin Costner.
O custo de produção ficou abaixo dos 20 milhões de dólares (para uma arrecadação de quase 280 milhões ao redor do mundo). A participação de Hopkins em todo o longa não chega à meros 25 minutos (e, mesmo assim, ele está tão avassalador em sua criação que parece dominar toda a trama, tanto que acabou por definir a imagem moderna do psychokiller como a conhecemos até hoje). E segundo o seu criador, o escritor Thomas Harris, a história era meio que baseada no relacionamento do criminologista Robert Keppel e do serial killer Ted Bundy, que o ajudou na investigação dos crimes do assassino de Green River. Em suma: aquele tipo de projeto que você pensa na hora "tem tudo para dar errado, não importa o quanto eu deseje realizá-lo; ninguém vai querer ver isso. Simplesmente não vende". E então você quebra a cara, pois a sétima arte também é uma caixinha de surpresas.
E ao fim, o que ficou de legado para os fãs mais apaixonados, é: uma obra-prima do cinema criminal (mas que muitos, embora os mais incrédulos teimem em negar, veem como um filme de terror - e há razões para isso!), que entrega uma das interpretações mais extraordinárias da história do cinema (pergunte a qualquer nerd cinemaníaco quais os maiores vilões da história do cinema e a grande maioria dirá: Darth Vader, Hannibal Lecter e mais oito. Podem me cobrar!) numa época em que a década de 80 mal acabara e ainda nos fazia pensar em seus Freddies, Jasons e companhia ltda. Logo, foi uma retomada do próprio cinema americano.
E isso, em se tratando de um indústria como hollywood, nunca será pouca coisa...
P.S: lembro-me até hoje do final do longa quando Hannibal liga para Clarice do orelhão (ela está na cerimonia de formatura) e diz que está indo embora. Podem até me chamar de sádico, mas que eu torci para ele se dar bem no final, ah eu torci!
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Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou
4.0 64Réquiem apaixonado
(Babenco - alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou, de Bárbara Paz, é a melhor carta de amor que o cineasta argentino poderia receber em toda a sua vida.)
Como começamos a falar sobre um gênio, alguém que consideramos um gênio desde a primeira vez em que o vemos, acompanhamos tudo o que faz, e ainda assim não percebemos que ele é lembrado como realmente merecia? Resposta (minha e unicamente minha): deixamos sua história de vida registrada de forma a não persistirem dúvidas sobre ela.
E foi exatamente isso que a mulher que o acompanhou até o último dia da sua vida fez.
Em 2015, quando o cineasta argentino Hector Babenco realizou seu último longa, Meu amigo Hindu, inspirado na sua própria experiência de vida e na aproximação da morte (Hector lutava contra um linfoma já há algum tempo), ele colocou no roteiro uma conversa entre ele próprio - interpretado pelo ator Willem Dafoe - e a dita cuja. Mais do que isso: tentava convencê-la a deixá-lo vivo mais um tempo, para que pudesse realizar mais um filme. E em determinado momento a morte lhe perguntava se ele pretendia falar mal dela em seu filme.
No ano seguinte Hector falece, aos 70 anos, e nos deixa um legado único dentro da cinematografia brasileira. Contudo, o mais importante, é que sua última companheira, a atriz Bárbara Paz realizou anos depois um documentário sobre o cineasta, sua vida, sua paixão (no caso, a sétima arte) e, principalmente, transformou justo a morte num personagem humano, singelo, repleto de ternura e extremamente necessário para entendermos este grande homem.
Com Babenco - alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou, a jovem Bárbara - que se mostrou uma grata surpresa, indo de mera participante do antigo programa Casa dos Artistas à interessante realizadora em seu primeiro longa - nos apresenta um réquiem repleto de sentimento e paixão. E antes que me perguntem do que se trata um réquiem, pego de empréstimo algumas definições que vejo na internet, como por exemplo: 1. Prece ou louvor feito pela igreja aos mortos, 2. Composição ou música que tem o texto litúrgico da missa dos mortos como tema.
E é preciso abrir o jogo logo de cara: dizer que Babenco não é co-diretor neste extraordinário documentário é, no mínimo, desonroso com o mestre. Ele está a todo momento guiando essa jovem e promissora cineasta, apontando caminhos, ângulos de câmera, escolhas possíveis de narrativa, fazendo confissões, expondo erros que cometeu no passado por ser muito vaidoso ou intolerante.
Como pano de fundo de luxo seu legado (como comentei acima). Vemos sua filmografia brilhante passar diante de nossos olhos e me encanto de novo por me reencontrar com clássicos como Pixote - a lei do mais fraco, O beijo da mulher aranha, Lúcio Flávio - passageiro da agonia, Ironweed, Carandiru e tantos outros. Sinto vontade de revê-los na mesma hora. Quem sabe o faça nos próximos dias e queira resenhá-los também. Se há um diretor na história do cinema nacional cuja carreira eu não tenha reprimendas é Hector. Coloco-o junto à artistas como Pedro Almodóvar, Werner Herzog, Federico Fellini e Charles Chaplin, formando um grupo de gênios dos quais sempre sou suspeito para falar, pois adoro tudo o que fazem.
Há uma passagem no documentário em que Babenco alega não ter realizado ainda sua grande obra. Cá entre nós... Tenho minhas dúvidas. Um homem que viajou doente para a Amazônia, só para rodar um filme complicadíssimo (e ainda operou entre um estágio e outro da produção); expôs sua própria condição como presidiário e teve a honra de ver Jack Nicholson e Meryl Streep como seu casal de protagonistas e ainda assim não realizou seu apogeu? Duvido! Só pode mesmo ser falsa modéstia.
Entretanto, ele também era um homem ácido, cheio de ironias e questionamentos, que se recusava a morrer antes de deixar claro para o mundo que havia realizado sua missão na terra. Vivia dizendo que quando morresse desejava ir para Hong Kong de alguma forma (fosse como espírito ou num caixão). E definitivamente era um apaixonado pelas mulheres. Que o diga uma das últimas cenas do filme, numa sala repleta de amigos de carreira e da vida!
É dessa mistura de amores e fúria, paixão e deboche, que nos inebriamos com um projeto documental bárbaro e de uma verdade avassaladora do primeiro ao último fotograma. E o mais importante: do jeito exato que o próprio Babenco tanto gostava.
Ao final da sessão - que foi exibida na última semana na programação da Globo News -, enquanto os créditos passam, eu fico sentado no sofá refletindo sobre o que vi. E chego à conclusão de que mais uma vez, como vem acontecendo com muita frequência neste país nos últimos anos, perdemos um grande homem e um fantástico artista. Que pena! O país precisa de mais diretores como Babenco e mais filmes como esse.
P.S: o fato de Babenco - alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou ter vencido o Festival de Veneza como melhor documentário e ter sido o representante brasileiro na disputa do Oscar de melhor filme internacional deste ano é apenas um pequeno detalhe que abrilhanta ainda mais a importância deste grande filme. Não tentem enxergá-lo além disso!
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O Mundo de Sofia
3.5 211Cogito ergo sum
(O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, completa três décadas de existência sem perder um segundo de seu charme e relevância cultural.).
Quando ainda me perguntam o que eu venho achando do mundo e das pessoas que vivem nele eu quase sempre respondo: "é uma questão de sobrevivência e, enquanto eu estiver lendo e pensando por minha própria cabeça, é uma luta que ainda vale a pena". Ou seja, não consigo me imaginar distante do conhecimento nesse campo de batalha. Não é simplesmente uma escolha ou um hobby, mas uma necessidade biológica, como beber água ou almoçar. Não consigo me ver dentro de uma realidade diferente desta.
Duas semanas atrás eu me deparei com uma matéria na Folha de São Paulo que falava sobre os 30 anos de publicação do romance O mundo de Sofia, do escritor Jostein Gaarder, e eu imediatamente me peguei relembrando de quando o li pela primeira vez e, principalmente, da série de lacunas impressionantes que ele deixou em minha cabeça. Provavelmente não estava, na época, habilitado para entender 10% do conteúdo daquelas páginas. Mais: não tinha ainda a formação desejada para captar sua essência, tendo em vista meus pouco mais de 15 anos. E ainda assim, saí da experiência transformado.
Passadas três décadas tomo a decisão de relê-lo e com que alegria descubro o quanto Gaarder nos entregou uma obra brilhante, sedutora e que não perdeu um segundo sequer de sua relevância cultural. E tudo isso falando de filosofia!
Acompanhamos a saga de Sofia Amundsen, uma garota de apenas 14 anos, que começa a receber em sua caixa de correio uma série de cartas um tanto quanto curiosas, trazendo perguntas sobre o sentido da vida e dela própria existir no mundo. Na primeira perguntam-lhe quem é tu, na segunda de onde vem o mundo e na terceira um convite para acompanhar um curso de filosofia. Detalhe: ela não faz a menor ideia de quem lhe mandou essas correspondências, mas mesmo assim embarca nessa viagem rumo ao conhecimento. E foi, sem sombra de dúvidas, a melhor decisão que ela poderia ter tomado.
Feita e escolha, ela começa a enveredar pelo extraordinário mundo de pensadores que marcaram - e marcam até hoje! - a história da humanidade. Seu professor, Alberto Knox, se apresenta e vai dos mitos ao helenismo nos fazendo devorar cada minuto de Thor, Loki, Odin, Asgard, os vikings, Zeus, Apolo, Hércules, Hera, Homero, os filósofos da natureza, o oráculo de Delfos (com a eterna provocação "conhece-te a ti mesmo!"), Heródoto, Tucídides, Hipócrates e finalmente a trinca grega Sócrates, Platão e Aristóteles. Em suma: um aulão básico de sabedoria.
Mas é claro que para Knox nos apresentar apenas os gregos é insuficiente em suas intenções e por isso ele segue em frente: esmiuça os indo-europeus e os semitas, dá voz à Jesus Cristo e seu apóstolo Paulo, apresenta a Idade Média, contrasta as visões religiosas de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino e passeia pelo Renascimento e o Barroco. Mas isso é apenas preparar o território para a cereja do bolo.
Chega a filosofia moderna e com ela o seu fundador, René Descartes, e o "Discurso do método"; Espinosa correlaciona Deus e a natureza, fazendo uma leitura crítica da Bíblia; Locke funde pensamentos e ideias à sensações; Hume descarta totalmente tudo o que se une à ilusão; Berkeley chama a filosofia e a ciência de inimigas da concepção cristã do mundo; Kant defende sua "Crítica da razão pura"; Hegel chama de espírito do mundo a soma das manifestações humanas; Kierkegaard confronta o romantismo com o individualismo e o sistema com o indivíduo; Marx defende a luta de classes; Darwin chama o ser humano de resultado de uma evolução biológica intensa e Freud reflete sobre o mundo como uma tensão entre homem e o ambiente que o rodeia.
E quando você, leitor, está prestes a dizer "ufa! quanta coisa!" o autor, ainda insistente, tem tempo para se debruçar sobre a contemporaneidade e, junto com ela, Nietzsche, Heidegger, Sartre e Simone de Beauvoir. Sim. Preparem-se, meus caros leitores, pois trata-se de uma leitura que exige fôlego e paciência, já que há muito sobre o que pensar e debater (algo que a nossa sociedade anda precisando - e muito!).
Ao fim da leitura me pego pensando no quanto a obra tem o seu lado cogito ergo sum (ou em bom português: penso, logo existo). É um convite àqueles que desejam urgentemente fugir do mundo contemporâneo caótico e imerso no retrocesso. Há, é claro, um lado mais fofo e comercial da história, no qual Sofia encontra personagens históricos e literários de importância, como Noé, ursinho Pooh, Alice, Tom e Jerry, Uncle Scrooge e tantos outros, mas isso é apenas um mero detalhe best-seller. E me vi refletindo em alguns momentos sobre a possibilidade de estar diante de uma metaficção por ser a própria Sofia uma história dentro de outra história ainda mais complexa. Mas deixo essa discussão para os catedráticos e acadêmicos de plantão.
O que importa mesmo aqui é: fiquei feliz de ler O mundo de Sofia, não somente por estarmos vivendo um tempo de pandemia, mas também porque o mundo anda um tanto habitado por ignorantes contumazes e fabricantes de falsas verdades e ideologias, e é preciso combater essa gente com conhecimento, pois somente ele - a meu ver, pelo menos - é capaz de enfrentar a alienação de frente e com unhas e dentes.
Se você, como eu, também quer enfrentar esse desafio, procure pelo romance de Jostein Gaarder. Não, acreditem! É de fato um romance e não um livro acadêmico. Porém, é também um pouco mais do que isso. E é desse um pouco mais que estamos precisando. O quanto antes.
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Relatos do Mundo
3.5 315 Assista AgoraSiga a linha e não olhe para trás
(Relatos do mundo, de Paul Greengrass, nos traz um ácido drama sobre a humanidade e as escolhas infelizes que não cansamos de fazer. Pena que não conseguimos entender que isso nunca nos fez bem de fato)
Nunca entendi - e, honestamente, morrerei sem entender - o fascínio de parte da humanidade pela guerra. Ela não produz absolutamente nenhum legado útil para a nossa própria subsistência e não bastasse isso ainda por cima se esconde atrás da fachada hipócrita de "única solução viável para resolvermos problemas de difícil solução". Ou seja: não passa de uma demagogia fabricada por setores cínicos de nossa sociedade que se locupletam da miséria alheia enquanto faturam os tubos com a indústria bélica.
E o pior: tem quem admire essa faceta social, bata palmas, exalte a necessidade dela existir simplesmente porque não consegue viver numa pátria onde existam pessoas que pensem diferente do que elas acreditam.
Me peguei pensando nisso enquanto assistia o drama Relatos do mundo, do diretor Paul Greengrass - famoso aqui no Brasil pelos longas que fez da franquia Jason Bourne e o ótimo Voo United 93, que tem como pano de fundo a tragédia do 11 de setembro - e cheguei à conclusão de que a guerra, como a conhecemos, nunca acabará. Ela apenas muda sua abordagem e seus personagens sórdidos.
O filme de Greengrass traz o Capitão da reserva Jefferson Kidd (Tom Hanks, interpretando um personagem o qual jamais imaginei que ele pudesse fazer ao longo da carreira), um homem repleto de cicatrizes, que viveu o pior do conflito bélico de forma brutal e dilacerante. Tipógrafo antes da guerra, ele agora vive viajando de cidade em cidade onde lê para seus habitantes recortes de jornal com notícias sobre há quantas anda o mundo. Em outras palavras: para muitos cidadãos ele é o último resquício de esperança ou o último, digamos, bote salva-vidas em meio a um mundo destroçado por escolhas infelizes.
E aqui cabe uma observação minha: nesse sentido seu personagem me fez lembrar o carteiro vivido por Kevin Costner no filme O mensageiro, de 1997. E a população esperava, tanto as correspondências quanto a chegada do capitão com as histórias que rodeavam o mundo, com gigantesca ansiedade. Tanto que multidões se reuniam para recebê-los.
Entretanto, sua jornada será impactada de forma severa quando seu caminho cruza com o da jovem Johanna (Helena Zengel), uma garota que foi sequestrada por uma tribo indígena e teve toda sua história de vida apagada por quem a sequestrou. Como seus pais biológicos encontram-se mortos, o capitão precisa levá-la à cidade onde moram seus tios. Só que para isso terá que reviver velhos demônios dos tempos de guerra e aprender a se comunicar com a menina, que praticamente se transformou numa selvagem.
Mas é preciso, de minha parte, enaltecer um aspecto que me parece mais interessante do que o próprio roteiro do filme: falo das entrelinhas presentes nas discussões, nos duelos e monólogos presentes na trama. É praticamente uma aula de história não oficial dos EUA (refiro-me àquela parte da história que não iremos encontrar nos livros escolares, não importa o quanto procuremos).
Tudo está presente aqui, se você tiver mente aberta para apreender os sinais: a eterna postura imperialista dos homens brancos, que se acham mais donos de qualquer tipo de direito do que mexicanos, índios e negros; a eterna divergência entre os estados do norte e do sul norte-americano e o legítimo sentimento de que a guerra não passa de um negócio da china para favorecer as velhas elites de sempre e transformar seres humanos em zumbis sociais, que não fazem a menor ideia de como (e por que) devem seguir em frente, quando tudo parece não ter mais o menor sentido.
Ao final da jornada o diretor até encontra um meio termo para agradar aos espectadores que ansiosamente esperam por um final minimamente feliz, mas acreditem: é praticamente impossível acreditar em felicidade num cenário tão desolador e que parece prometer que dias ruins continuarão existindo ainda por um bom tempo.
Talvez minha única ressalva em todo o projeto tenha sido a escolha de Hanks como o protagonista. Confesso que gostaria de ver um ator com mais vocação para interpretar um homem dúbio ou, quem sabe, alguém a um passo de se tornar um mau caráter por ter perdido tudo o que mais amava. Peguei-me pensando o que um artista como Gary Oldman ou John Malkovich teria feito com o mesmo personagem. E, além disso, Tom sempre me vendeu a imagem do bom pai de família. Mas entendo sua presença aqui, pois do contrário a adaptação do livro de Paulette Jiles dificilmente tivesse conseguido financiamento.
Críticas à parte (e são vários os comentários negativos sobre o filme na internet), é preciso paciência para assistir Relatos do mundo. Trata-se de um filme arrastado, no qual o espectador precisa montar um quebra-cabeça complexo sobre a história de um país que não necessariamente é aquilo que vende para o mundo. Em determinado momento o capitão diz para a jovem Johanna: "siga a linha e não olhe para trás". E essa é a melhor reflexão que você pode fazer sobre essa história. É como se ele nos dissesse que, no final das contas, nunca vale a pena viver no passado eternamente.
Porém, difícil mesmo é fazer a própria humanidade entender isso...
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Gustav Klimt
4.4 1O último ato de amor
(O beijo, de Gustav Klimt, recorre à mitologia, ao desespero e a um simples gesto para nos entregar um das maiores obras-primas da história da arte)
Tem quem pense que a arte em geral, e principalmente as artes plásticas em específico, se destine a objetivos ambiciosos ou mesmo que ela precise de grandes motivações para existir. Ledo engano! Às vezes, basta um pequeno gesto ou aproximação para que nós, meros espectadores e amadores no quesito avaliação, nos encantemos e queiramos analisar a obra em questão mais profundamente.
Vejam o caso de O grito, de Edvard Munch, por exemplo. Um mero indivíduo com as mãos segurando o rosto enquanto grita na frente de um mirante e foi suficiente para virar referência na cultura pop. E nem por isso deixou de suscitar debates.
Com O beijo, do pintor Gustav Klimt, óleo sobre tela de 1,80m x 1,80m criado entre 1907 e 1908, acontece praticamente a mesma coisa: de onde vêm tantas opiniões referentes à um simples casal que se ama e, por isso, se beija? Parece tão simples enxergar isso quando vemos a tela, mas na prática são muitas - e distintas - análises.
A principal delas se refere a uma briga entre Apolo (Deus da beleza) e Eros (Deus do amor e do erotismo) que, inconformado, transforma sua amada, Dafne, em madeira. Segundo parte da crítica a tela representaria o último momento em que Apolo beija Dafne em vida. Contudo, nem toda a crítica converge para esta mesma opinião.
Sim, digo isso porque há intelectuais que preferem acreditar que o casal ilustrado na tela seria o próprio Klimt e Emilie Flöge, sua eterna musa e companheira de vida. E há ainda um terceiro grupo que prefere acreditar que a modelo Red Hilda, que posara para Klimt em outros trabalhos, seria a referência para a mulher vista na tela.
De concreto mesmo somente o que vemos na tela: um casal de apaixonados enrolados numa espécie de manta amarelada cheia de enfeites que lembram pedras preciosas, enquanto o homem beija a mulher na face direita. E alguns intelectuais preferem acreditar que o beijo não é recíproco, pois a mulher estaria tentando afastá-lo com as mãos (o que refuta, para alguns estudiosos, a temática da alegoria do amor). Isso sem contar os que defendem a possibilidade de que a mulher esteja morta e sua cabeça, decapitada. Sim, foi isso mesmo que vocês leram!
A pintura, que faz parte do apogeu do período dourado do artista, une pinceladas polidas e verticais com contornos, produzindo uma textura real e ímpar e é visível no trabalho a influência dos mosaicos bizantinos e da gravura japonesa, além da utilização de elementos como lâminas de ouro e estanho (algo que o pintor repetiu em outras obras). O resultado dessa mistura é uma perspectiva cromática.
Tem quem classifique Gustav Klimt como precursor do simbolismo e tem quem o veja como modernista. De preciso mesmo, apenas que fez parte do período secessionista, que contrapôs o realismo, o naturalismo e o positivismo, preferindo ser movido por ideais românticos (e cabe aqui uma dica: procure a obra do pintor e vasculhe a presença do amor em seus trabalhos. Vocês ficarão surpresos!).
O quadro foi comprado pelo Museu Belvedere, em Viena, antes mesmo de ter sido finalizado, por inacreditáveis 25 mil coroas (um recorde para o período). O que mostra o prestígio do autor, que era bastante celebrado naquela época.
No final, em meio a tantas opiniões e controvérsias, o que vemos é uma grande ode à sensualidade e ao erotismo. Ou, para os apaixonados de plantão, um último ato de amor desesperado em meio a um mundo que mais parece uma comédia dos erros distorcida, produto de uma sociedade cheia de ódio e revanchista ao extremo.
Em 2013, o artista Tamman Azzam replicou a obra em uma parede de um edifício bombardeado em Damasco, na Síria, como uma forma de protesto contra a guerra. Isso mostra que mesmo passado mais de um século, a tela continua suscitando debates e reflexões as mais diversas sem não necessariamente ter uma ligação direta com a temática amorosa (o que em nada desmerece o trabalho de Klimt, que viveu uma vida amorosa intensa e cheia de revezes).
E como vocês, leitores, deveriam terminar este humilde artigo que terminou prematuramente de propósito? Vasculhando a vida deste mestre do mosaico. Podem apostar: vocês vão se surpreender. E muito.
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A Bolha Assassina
3.1 662 Assista AgoraA maldição púrpura
(O remake oitentista de A bolha assassina é a justa medida do cinema hollywoodiano que se fazia naquela época: insano, inverossímil e, ainda assim, inesquecível para aquele bando de adolescentes desajustados que se sentavam em frente à tv.).
O cinema de terror sempre esteve povoado de personas insólitas (psicopatas, serial killers, palhaços e bonecos assassinos, etc), pragas científicas, figuras sobrenaturais e outros algozes quiçá ainda mais terríveis e, por que não, inexplicáveis à nossa vã filosofia. Contudo, houve um tipo de diretor muito comum nos anos 80 e 90 que soube se apropriar bem daquilo que o gênero sobrenatural tinha de mais alucinante e completamente fora do que chamamos costumeiramente de realidade.
Tem quem chame essas produções hoje em dia de trash ou filmes B, mas acreditem: elas fizeram um enorme sucesso de público entre os fãs da nobre arte de dar sustos. E às vezes com narrativas que são uma ode ao nonsense.
Esta semana, por exemplo, me deparei no you tube com uma cópia dividida em episódios do filme A bolha assassina, remake de 1988 do diretor Chuck Russell para o clássico cinquentista de ficção científica de Irvin S. Yeaworth Jr, que tinha em seu elenco o astro Steve McQueen. E qual não foi a minha surpresa ao ver, mesmo três décadas depois e hoje vacinado contra todos os delírios e distorções da narrativa, que eu ainda me divirto - e muito - com a película!
A bolha assassina, embora seja um projeto anterior ao sucesso comercial que Russell faria seis anos depois com a comédia O máskara (que eternizaria o humorista Jim Carrey), traz em seu bojo todos os elementos do que aquela geração cinéfila considerava um ótimo entretenimento. Quer ver só?
O longa conta a história de um meteoro que cai numa cidadezinha de interior nos EUA e traz em seu núcleo uma substância gosmenta e púrpura capaz de aumentar de tamanho à medida que se alimenta de seres humanos. Não, é isso mesmo que você leu! Ela chega ao centro da cidade após ficar presa no braço de um morador de rua que é levado, por dois adolescentes, ao hospital mais próximo. A partir daí esperem por muita matança, correria, desespero e, claro, não sejam exigentes com o roteiro.
Há uma subtrama mal explorada - e normalmente, nos filmes de terror desse período, elas sempre existem! - sobre uma equipe de cientistas contratada pelo governo para transformar a tal bolha numa arma de guerra. Aliás, bem a cara da hollywood daquela época. E também há a figura de um padre apocalíptico que vê no nêmesis púrpura o prenúncio do fim dos tempos. Mais do que isso: o diretor chega a preparar o terreno para uma possível continuação (que, claro, nunca existiu).
De concreto mesmo parece que somente os jovens Brian Flagg (Kevin Dillon) e Meg Penny (Shawnee Smith), interessados em destruir de uma vez por todas a malévola criatura. Entretanto, há muito pelo qual se divertir também, vide o inusitado da situação. Que o digam o casal de namorados num encontro romântico no carro e a dupla de garotos dentro do cinema para ver o último lançamento de terror do momento. Mais anos 80 do que isso, impossível!
Mas como eu disse em parágrafo anterior: não sejamos exigentes. E esse era justamente o maior barato para quem assistia cinema naqueles tempos. Pergunte a qualquer um que você conheça que viveu o mesmo período. Eles certamente lhe dirão: "eu daria tudo para viver isso de novo".
A bolha assassina é a cara do terror que se produzia no final dos anos 80 e início dos 90: ilógico, surreal, extraordinário em suas intenções, cheio de clichês os mais inverossímeis possíveis, prometendo relações sexuais que nunca iria entregar (pelo menos, não do jeito que nós realmente queríamos) e com desfechos totalmente loucos, quando não contraditórios. Some tudo isso rapidamente e o que vocês terão é: diversão, diversão e mais diversão. Pronto. Só falta juntar a pipoca e o refrigerante para concluir o programa da noite.
P.S: tenham agora, os distintos leitores deste texto, a dignidade de admitir: quantos de vocês viram essa pequena joia pela primeira vez no antigo Cinema em Casa, do SBT? Ah! Vai ter gente escondendo a idade. Ah se vai!!!
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O Som do Silêncio
4.1 986 Assista AgoraRecomeçar do zero
(O som do silêncio, de Darius Marder, fala do eterno embate daqueles que não conseguem entender que a vida, de tempos em tempos, nos oferece provações e às vezes precisamos refazer a rota de nossas existências.)
Você não faz a menor ideia do que o tempo - ou a vida - é capaz de fazer com os nossos sonhos. Não importa o quanto você tenha a sua vida planejada, o quanto tenha se preparado para realizar aquilo que tanto sonhou, a vida aparece e ela tem seus próprios planos, seu próprio ritmo. Em 1984 Virginie Boutaud, vocalista da banda nacional new wave Metrô, estava certa ao cantar que "no balanço das horas tudo pode mudar". Sim. Nisso ela acertou em cheio. E esse balanço acontece quando você menos espera. Que o diga a vida de Ruben (Riz Ahmed).
Ele é baterista de uma banda que ainda busca a trilha do sucesso e sabe que o trabalho é duro. São horas e horas de dedicação e muito ensaio para subir ao palco e dar o seu melhor. Até que percebe, durante um desses ensaios. que perdeu sua audição completamente. E para ele isso é um baque difícil de engolir. Sua primeira reação ao ocorrido é o óbvio "meu mundo acabou".
A única que o ampara nesse momento é a namorada, Lou (Olivia Cooke), que o leva para conhecer uma instituição de amparo à pessoas surdas. Ruben, reticente à primeira vista, decide aceitar o desafio muito por insistência dela. E a rotina desse novo mundo é para poucos: aprender uma nova língua, aprender a lidar com suas próprias limitações e, enfim, aprender a ouvir de uma outra forma.
O problema: ele acredita que tudo aquilo não passa de uma perda de tempo quando descobre que é possível fazer uma cirurgia que coloque um implante em seu cérebro, trazendo de volta a possibilidade de audição. E é nesse milagre que ele embarca com unhas e dentes, porém esquece que sua relação com o novo mundo que acabou de conhecer sairá estremecida do processo.
O som do silêncio, filme do diretor Darius Marder, é um longa sobre recomeços e o quanto eles podem ser difíceis e dolorosos, ainda mais sabendo que seres humanos são falhos e imediatistas.
Ruben faz parte de uma geração que simplesmente não aguenta a ansiedade oferecida pelo amanhã. Ele almeja a glória e não consegue imaginar a sua vida sem ela. Mais: ele a almeja no menor tempo possível. Entretanto, não consegue entender que nem sempre o tempo do mundo é o nosso tempo, corrido, arbitrário, feito de improviso em alguns momentos. E o choque entre essas duas realidades pode ser extremamente autodestrutivo para pessoas como ele.
A produção da Amazon, que vem chamando a minha atenção nos últimos anos com bons projetos, já me ganhou desde o início da projeção muito por conta disso, dessa batalha que atravessará todo o século XXI - podem ter certeza! - entre os impacientes e o ciclo da vida. Vivemos uma era de transformações constantes, mas não significa que elas ocorrerão na velocidade que queremos ou desejamos. Longe disso!
Fiquei tentando me lembrar de outros filmes com a presença de personagens surdos e me veio à mente logo de cara o extraordinário Filhos do silêncio, de Randa Haines, com William Hurt na pele do professor e Marlee Matlin, vencedora do Oscar de melhor atriz em 1987, como a extraordinária aluna surda. E se no filme de Randa já era difícil para Marlee conviver com a presença do professor, pois ela simplesmente optou por não falar, no caso de Ruben a situação é ainda mais grave por que ele sempre desdenhou desse mundo, por acreditar que se aceitasse aquela realidade se transformaria num covarde. E ele precisa acreditar que será capaz de retomar sua vida, bem como sua carreira.
Alguns críticos de cinema que andei fuçando na internet vêem a possibilidade de Riz beliscar uma vaga entre os indicados ao Oscar desse ano e confesso: seria merecido. O trabalho dele é realmente muito bom e, principalmente, humano. Mas ele, com certeza, terá concorrentes de peso.
E ao final de duas horas de angústia e luta por superação a certeza que fica é a de que recomeçar do zero não é uma batalha simples e corriqueira. Pelo contrário: ela envolve discernimento e força de vontade para entender que as perdas fazem parte da vida. E não é porque as sofremos, de tempos em tempos, que não possamos seguir em frente, tentar de novo, mesmo que o plano original já não nos sirva mais como antes.
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Nirvana - Nevermind
4.3 16Ainda com cheiro de espírito jovem
(Nevermind, do nirvana, completa 30 anos de existência e permanece lúcido ao retratar o esfacelamento do mundo e da sociedade em geral)
O site da revista Rolling Stone traz uma lista interessante de discos que estão completando datas comemorativas nesse ano de 2021 e vejo logo de cara Nevermind, do Nirvana, entre eles. E imediatamente meu cérebro se transporta para o dia em que o ouvi, em formato vinil, pela primeira vez. Foi nonsense, brutal, mas verdadeiro até a última vírgula.
O álbum do nirvana antecipa em três décadas o que o século XXI se tornou de tão assustador e maquiavélico (e muito provavelmente o público para o qual ele foi feito não se deu realmente conta disso!). Nevermind é álbum para se ouvir em altíssimo volume, quase um esporro ou um grunhido, um desabafo sobre uma geração que não aguenta mais a monotonia e a mesmice.
O disco abre com o eterno clássico "Smells like teen spirit" e ainda é fácil entender porque a canção se tornou um hino para aquela geração de desajustados. Dos riffs de guitarra ácidos à frase "eu sou pior no que faço de melhor" ainda ecoam acerca de uma legião de fãs perdida em meio a tantos referenciais e ainda assim sem nenhum objetivo concretizado.
Em "In bloom" Cobain correlaciona os fãs de suas músicas com a sociedade megalomaníaca daqueles anos 90. Uma sociedade que vende crianças por comida. Ele próprio chama a natureza de prostituta, de tanto que ela é usada por nós, seres humanos, de forma indiscriminada.
Com "Come as you are" a banda pede que a sociedade seja ela mesma e não aquilo que o sistema quer que ela seja. "Venha como você é, como você era, mas vá com calma. Não se apresse!". Entretanto, na canção seguinte, "Breed", ela parece retroceder e volta a mostrar um compêndio de jovens confuso, que não sabe o que faz ou o que quer de fato. Perdidos. Só pensando em procriar.
Chega a sensacional "Lithium" e com ela, o desespero, o medo da morte, as amizades frágeis, a certeza de não se encaixar dentro de um padrão de beleza (e para eles, os jovens, isso é tão devastador quanto morrer). E ainda assim ele repete: "eu não vou pirar!". Contudo, parece exatamente o contrário. A seguir o violão magnífico traz "Polly", que pode ser um pássaro ou uma mulher. Quem sabe até ambos, uma forma híbrida. Mas fala também de dependência, de desconforto.
"Só porque você é paranoico /Não significa que eles não estão atrás de você", diz Cobain em "territorial pissings" e isso diz muito sobre a música que mistura a tentativa de unificar a sociedade com um discurso que expõe a incomunicabilidade entre seres humanos. Obs: a guitarra distorcida que abre a música já vale metade do seu tempo ouvindo-a.
Egolatria, pessoas sugando pessoas, inconformismo... Tudo isso acompanha "Drain you", provavelmente a música mais perturbadora do disco. É possível - eu, pelo menos, tive essa sensação - ouvir o sofrimento do vocalista, sua decepção com o futuro que ainda está por vir. E a música seguinte, "Lounge act", acompanha esse mesmo sentimento derrotista.
Quando chega "Stay Away" os moralistas de plantão terão todos os motivos do mundo para odiar a canção. E não é para menos. Uma música que termina ao som de "Deus é gay" tem tudo para irritar os mais conservadores e certinhos. E não somente isso. Cobain agride a moral como nós a conhecemos desde o primeiro verso. "Melhor morto do que legal", "o amor é cego", além de chamar a moda abertamente de merda. É sem dúvida a faixa mais polêmica de todo o disco. Mas quando você pensa que não tem como descer mais fundo no poço, ele acrescenta "On plain" e todos os seus sonhos ficam destruídos de vez.
Então você pensa: o disco acabou, é a última faixa. Não. Você não pode deixar de ouvir "Endless, nameless". É a sentença final dessa grande catarse em forma de álbum musical, uma ode à distorção e ao barulho. Cobain se rende à inevitabilidade da morte e meio que profetiza tudo o que aconteceria com ele posteriormente. É, mais do que um simples desfecho, um momento mediúnico.
Em suma: o que Nevermind tem de assustador, tem também de visionário em suas intenções, digamos, radicais. Ele antecipa muito desse mundo distorcido, repleto de fake news, revisionismo histórico, neoliberalismo fraudulento e outras ideologias que só servem para manobrar o indivíduo, transformando a sociedade num enorme marionete. Não à toa ele morreu da forma como morreu, mas sem se dobrar ao sistema. E esse, com certeza, foi seu maior legado para o mundo do rock n' roll.
Não conhece o disco? Então corra agora ao Spotify, ao Deezer ou a qualquer outra plataforma musical de seu interesse e ouça. E mais do que ouvir a banda, sinta o que ela tem a dizer, sinta o cheiro do espírito jovem. Ele ainda está lá. Acredite: esse álbum ainda é das narrativas mais atuais sobre o mundo contemporâneo e o que fizemos com ele. Mas é para poucos!
Logo, você está por sua conta e risco...
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O Enigma de Outro Mundo
4.0 981 Assista AgoraO terror que foi redescoberto
(O enigma de outro mundo, de John Carpenter, é um estudo de caso sobre o isolamento humano e, mais do que isso, uma prova viva de que mesmo filmes incompreendidos conseguem a sua fama, mesmo que tardiamente)
Tem muita gente que não concorda comigo quando eu digo isso, mas vou repetir mais uma vez: nada é mais natural no mundo dos filmes de terror que viram clássicos ou cults do que produções que foram um fracasso retumbante de bilheteria e crítica arrebanharem gerações de fãs alucinados posteriormente. Perguntem a qualquer fã do gênero para vocês verem só! E a lista é imensa. Dentre esses hoje épicos que foram redescobertos com o passar do tempo e, claro, a ajuda do home video e das exibições em tv, O enigma de outro mundo, de John Carpenter, lançado em 1982, é um caso à parte. E ele tinha tudo para ser um fenômeno de bilheteria.
Digo isso porque antes de Carpenter realizar o longa ele se notabilizou por produções independentes que levaram o público ao delírio (falo mais especificamente de Halloween e Fuga de nova york, com Kurt Russell, um clássico eterno dos meus tempos de Sessão das Dez, no SBT). Logo, O enigma de outro mundo foi seu primeiro filme de estúdio. Pensarão então os mais fanáticos: "agora é que ele vai detonar mesmo!". Pois é... Não foi bem isso o que aconteceu.
A trama acontece dentro de uma estação de pesquisa na Antártida cujos cientistas veem a chegada de um cachorro que foge de um helicóptero que está tentando matá-lo. Os integrantes da aeronave não conseguem abater o animal e ele é levado para dentro da instalação. Passados alguns dias começam a acontecer uma série de situações inusitadas e perturbadoras. Motivo: dentro do cão há uma criatura alienígena capaz de copiar as células de qualquer espécie, inclusive seres humanos. E ela, a criatura, começa a eliminar um por um os cientistas e assumir sua forma.
Bizarro, eu sei. Digo mais: para fãs do terror gore ou do giallo italiano a película é um deleite à parte. Cheia de efeitos práticos e um trabalho de maquiagem visto por muitos como visionário até hoje. Então por que tamanho desinteresse pelo filme na época? Primeiramente: a culpa dos distribuidores, que decidiram lançá-lo na mesma época de E.T - o extraterrestre, de Steven Spielberg e Blade Runner - o caçador de androides, de Ridley Scott, no auge de suas nostalgias e exuberâncias tecnológicas. Sim, isso foi definitivamente um tiro no pé.
Contudo, há quem diga na época que o fato do longa trazer como discussão em suas entrelinhas o status quo dos EUA pós-vietnã (uma guerra cujo povo americano nunca aceitou a derrota) contribuiu e muito para o insucesso do projeto. Mais que simplesmente uma história sobre o convívio entre pessoas retidas em isolamento, o filme de Carpenter também fala da incapacidade humana diante de um adversário praticamente imbatível. Assunto ao qual os norte-americanos normalmente preferem evitar, pois gostam de se ver na tela na pele de heróis indestrutíveis.
O diretor não deixou de beber na fonte do clássico O monstro do ártico, dirigido por Howard Hawks em 1951, que adapta o conto original publicado por John W. Campbell Jr. E eu recomendo aqui aos leitores dessa crítica que vejam a versão dos anos 50, pois eu tive a impressão de que me ajudou, em muitos sentidos, a enxergar a trama de forma mais abrangente. Sem contar que é um clássico em preto-e-branco de carteirinha!
O projeto tem, entre seus feitos, a façanha de - acreditem! - dar ao mestre das trilhas sonoras Ennio Morricone uma indicação ao Framboesa de Ouro. Não, meus amigos. É isso mesmo que vocês leram... O gênio por trás da música de Era uma vez no Oeste e A missão foi nomeado à honraria de pior música do cinema por este, hoje, clássico pop. Contudo, eu prefiro acreditar que mesmo essa notícia acabou por contribuir para o charme da produção com o passar das décadas. Tem quem ache isso até estiloso.
E quase me esquecia de mencionar as inúmeras teorias criadas sobre o longa com o passar dos anos (procurem vídeos no you tube sobre o tema) acerca de McCready - personagem de Kurt Russell - ser a criatura no final do filme. Acreditem: dá muito pano pra manga e debate até dizer chega.
Em 2011 o diretor Matthijs van Heijningen Jr realizou a prequel A coisa e trouxe de volta o universo do longa de Carpenter, desta vez narrando os fatos que antecederam o longa de 1982. Contudo, ele não acrescentou em nada ao fenômeno no qual o filme se tornou. Teve até quem achasse a produção desnecessária, chamando-a de "puro caça-níqueis em tempos de falta de criatividade".
De concreto mesmo apenas que O enigma de outro mundo foi de lixo descartável (chegando a receber críticas até difamatórias) à fenômeno pop incontestável. E figura hoje em dia, mais do que nunca, em centenas de listas de "filmes de terror que você não pode deixar de assistir antes de morrer". E isso, você, fã de terror como eu, sabe que não é pouca coisa.
P.S: eu nunca deixei de acreditar que em Alien 3, de David Fincher, a cena em que a criatura alienígena entra pelo corpo do cachorro na colônia penal, é uma homenagem direta ao filme de Carpenter. Que me corrijam aqueles que tiverem uma opinião melhor ou mais lúcida do que a minha!
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Pedaços De Uma Mulher
3.8 544 Assista AgoraO tempo não cura todas as cicatrizes
(Pieces of a woman, de Kornél Mundruczó, não é um filme-denúncia - embora em alguns momentos almeje ser - e sim um ensaio sobre a dor e o sofrimento causado pela perda de um ente querido)
Não faço a menor ideia do que significa para um pai ou uma mãe perder um filho. Não mesmo. E é possível que eu nunca venha a entender de fato tal acontecimento, tendo em vista que não sou pai. No máximo, posso imaginar o tamanho dessa dor e mesmo isso é ainda muito pouco em se tratando da palavra compreensão. Logo, um casal como Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf), protagonistas do filme que pretendo resenhar aqui, estão num plano muito mais complexo do que minhas vãs palavras serão capazes de entender.
Em Pieces of a woman, do diretor húngaro Kornél Mundruczó, responsável pelo extraordinário Deus branco, vemos uma casal que fez a escolha de realizar o parto do seu bebê em casa, de forma humanizada, com uma parteira. Porém, ao contrário do que eles imaginavam, o processo termina de forma amarga e a criança morre. E a morte do bebê leva o relacionamento do casal a um outro patamar.
Sean até tenta seguir com sua vida, mas não consegue entender muito menos dialogar mais com sua esposa. Ela simplesmente se fechou em seu próprio mundo e não permite que os familiares façam parte dele. Daí para mentiras e traições é um passo mais do que natural. E do outro lado dessa modorra existencial, encontra-se Elizabeth (Ellen Burstyn), mãe de Martha, a maior interessada num processo criminal contra a parteira, que ela considera a maior culpada de todo esse caos pelo qual a família se encontra nesse momento.
Contudo, é preciso levar em consideração que Elizabeth é uma mulher que acredita unicamente no poder do dinheiro, das aparências, do sistema que sempre facilita tudo para os privilegiados e não consegue lidar com o fato de que, no futuro, seu "círculo de amizades" se lembrará dela como a mãe da mulher que perdeu um filho. Para ela, a tragédia maior é o que os vizinhos e amigos irão pensar dela. Eles, na visão de mundo dela, a verão como uma pessoa menor.
E a consequência mais do que natural desse turbilhão de desespero pelo qual a família passa é a sensação de que, na verdade, nenhum deles se conhecem realmente. Estão tão preocupados com status social ou "o que os outros irão pensar ou dizer quando souberem que..." que acabam por não viverem suas próprias vidas. Em outras palavras: são pessoas sem alma própria.
O trabalho de Vanessa Kirby na cena do parto é interessantíssimo e pode até, quem sabe, aparecer entre as atuações indicadas ao Oscar desse ano. Confesso que fiquei surpreso ao vê-la tão bem. Talvez pelo fato de estar acostumado a assistí-la em filmes blockbusters do gênero ação. Não conhecia essa faceta dramática dela! Já o jovem e sempre rebelde LaBeouf está apenas ok e eu gostaria muito de ver o personagem interpretado por um ator de mais pujança. Talvez sua participação no longa rendesse mais.
Percebi em certo momento uma subtrama brevemente mencionada sobre uma suposta rivalidade entre parteiras e a comunidade médica que, se bem trabalhada, renderia por si própria um grande filme. Uma pena que o diretor decidiu tomar um outro caminho. Aliás, a parte tribunal da história me soou um tanto quanto vazia e desnecessária, talvez pelo fato da direção não estar interessada em realizar um filme-denúncia contra a profissão das parteiras. E olha que eu cheguei a pensar que o longa enveredaria por esse caminho!
Feitas suas escolhas (nem todas elas surtiram o efeito desejado, pelo menos em mim) acabo me deparando ao final com um grande ensaio sobre a dor e o sofrimento por conta da perda de um ente querido. Porém, acredito que eles poderiam - se quisessem - contar sua história num tom menos melodramático. Acabaram por recorrer ao velho artifício de fazer o público ir às lágrimas e terminaram num meio termo incômodo.
De certeza mesmo, enquanto os créditos começam a ser exibidos na tela, somente uma: o tempo, por mais que o deixemos passar, não cura todas as feridas. E, honestamente, cheguei a um ponto da minha vida em que não acredito que ele, o tempo, sirva para isso.
O que precisamos, no final das contas, entender é que a vida nos impõe desafios e nos faz passar por tragédias para que possamos refletir sobre o quanto ela, vida, não passa de um grande "e se". Não controlamos de fato nossos caminhos, embora tentemos recorrentemente. E só nos sobra como legado desses desafios e tragédias levantar a cabeça e recomeçar do zero.
E o resto é apenas algum escritor de auto-ajuda milionário tentando vender fórmulas de sucesso efêmeras e inúteis (pelo menos, na maior parte de nossas vidas).
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Pague Para Entrar, Reze Para Sair
3.1 345Parque de diversões macabro
(Pague para entrar, reze para sair, de Tobe Hooper, é tosco em alguns momentos, cheio de clichês que se repetiram à exaustão no gênero terror posteriormente, mas com certeza levou ao deleite milhares de fãs do gênero)
O grande barato dos filmes de terror que marcaram época em minha infância e adolescência é que nunca houve exigência, pelo menos de minha parte, de que eles fossem exemplos de perfeição. Pelo contrário. Muitos fãs dentro das salas de cinema esperavam por defeitos, amadorismos e incorreções. E eles certamente acrescentavam um certo charme ao projeto. Infelizmente, parece que hollywood nos últimos tempos parou de entender isso e sofisticou um gênero que nasceu para ser, muitas vezes, tosco sem nem por isso perder o seu potencial de diversão.
Estava pensando nisso essa última semana quando me deparei na internet com uma matéria sobre o hoje clássico do horror Pague para entrar, reze para sair, do diretor Tobe Hooper (mestre por trás dos eternos clássicos O massacre da serra elétrica e Poltergheist - o fenômeno). E mesmo depois de quatro décadas de existência é impressionante ver o quanto ele ainda é capaz de levar ao deleite gerações de fãs, mesmo com tantas soluções óbvias e improvisadas.
O longa narra a história de dois casais de namorados, Amy (Elizabeth Berridge), Buzz (Cooper Huckabee), Richie (Miles Chapin) e Liz (Largo Woodruff), que decidem ir a um parque de diversões itinerante cujo último dia de apresentação é naquela noite. Os pais de Amy são contra por causa de uma mística envolvendo o lugar: numa outra cidade onde o parque esteve duas jovens foram encontradas mortas. E por isso a jovem precisa inventar uma história de que irá em outro lugar e dormirá na casa de Liz.
O que os dois casais, que pretendiam manter relações sexuais dentro do trem fantasma, não sabiam é que toda a diversão pretendida daria lugar a uma noite de perseguições e assassinatos, com um desfecho para lá de amargo para eles.
É preciso antes de mais nada destacar o caráter casa dos horrores do lugar, que mesclava atrações simples como jogos de azar e shows de mágica com outras um tanto perturbadoras como aberrações genéticas (feto morto, vaca de duas cabeças, etc). Isso sem contar uma falsa vidente que passa a maior parte do tempo alcoolizada. Contudo, devemos levar em consideração que o parque em si é uma desconstrução dos antigos vaudevilles (ou teatro de variedades) que fizeram muito sucesso no século XIX, justamente por trazerem atrações um tanto quanto mórbidas, pois era justamente isso que aguçava a curiosidade dos frequentadores.
Por outro lado, vale também lembrar do lado trash da produção com um adolescente de rosto deformado, que passa a maior parte do tempo usando uma máscara de Frankenstein, bem como o próprio dono do parque, o retrato típico de um sinistro psicopata. Há cenas deploráveis, como a de troca de sexo por dinheiro, e as mortes - se levarmos em consideração como são realizadas hoje em dia, com um extremo nível de sofisticação tecnológica - são primárias no nível do quase amadoresco. Mas como disse em parágrafo anterior: o charme da narrativa está justamente em não procurar perfeição ou levar tudo tão a sério.
Ah! Quase me esqueci de um detalhe: para quem procura referências à outros clássicos do gênero o diretor faz menção aqui à Halloween e Psicose (e de uma maneira bem humorada até). Só faltou um sósia do Hitchcock como apresentador das atrações. Ele bem que poderia ter pensado nisso também...
Pague para entrar, reze para sair, mesmo trazendo Hooper na direção, não foi o sucesso de bilheteria que se apregoava (faturou pouco mais de 8 milhões de dólares). Tem até quem diga que foi um fracasso de público para a época, levando em consideração que 1981, para muitos críticos, foi o grande ano do terror para o cinema americano. Entretanto, ele acabou por se reinventar anos depois como fenômeno cult por conta do home video.
Lembro de quando o assisti pela primeira na tv aberta e da dificuldade que tive para dormir naquela noite. E no dia seguinte minha mãe me dando esporro porque eu não queria acordar para ir à escola: "tá vendo?", ela dizia, "é nisso que dá ficar assistindo essas porcarias até de madrugada. Levanta pra não chegar atrasado, garoto!".
Em 2018 o diretor Gregory Plotkin realizou o filme Parque do inferno que, embora os fãs mais xiitas neguem, tem sim o longa de Hooper como inspiração. Mas é preciso avisar aos desavisados com antecedência: tratam-se de contextos e épocas completamente diferentes. Dito isto, caso queiram procurar o longa, vocês estão por sua conta e risco.
Querem saber mais? (e eu sei que vocês querem): revejam o filme, leiam a respeito do projeto, procurem na internet cinéfilos de carteirinha fanáticos pela produção. Pois Pague para entrar, reze para sair é daquelas experiências que por mais que você ache, em algum momento, tosca ou brega, não sai de moda. Nunca. Pergunta só pra quem viveu os anos 80...
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A Morte do Superman
3.4 115 Assista AgoraO dia em que o homem de aço tombou
(A HQ A morte do Super-homem foi um dos maiores eventos da história da nona arte que eu tive o prazer de testemunhar)
Enquanto os fãs mais entusiasmados da DC Comics aguardam ansiosos o Snyder Cut do longa da Liga da Justiça, lançado originalmente em 2017, e as mulheres apaixonadas por Henry Cavill, autor que interpreta Superman no filme, babam por seus músculos e beleza, eu me pego viajando no tempo enquanto procuro por um tema para escrever mais um dos meus textos sobre quadrinhos e relembro da façanha que foi chegar por aqui o kit da Editora Abril trazendo a edição de A morte de super-homem, em 1993.
Lembro como se fosse hoje de ir a, pelo menos, umas 15 bancas de jornal (naquela época, diferentemente de hoje, as HQs eram mais facilmente encontradas em bancas e apenas uma ou outra livraria vendia edições especiais ou específicas.) até encontrar o tal kit. Todo mundo foi pego de surpresa ao saber do lançamento do projeto, o que gerou uma imensa curiosidade dos fãs.
A DC, que vinha apanhando miseravelmente da Marvel em termos de vendas naquela época, precisava de um grande evento que a trouxesse de volta para o campo de batalha urgentemente. E eis que a editora Louise Simonson e um grupo de argumentistas e desenhistas talentosíssimos pensaram: por que não uma história sobre a morte do homem de aço? O que, acredito, deve ter gerado no mínimo uma pulga atrás da orelha da editora. Afinal de contas, trata-se de um evento ímpar e revolucionário em todos os sentidos.
Logo, ficava a pergunta sobre quem seria o algoz de um dos heróis mais poderosos da nona arte. Surge então o temível Apocalipse, uma criatura tão poderosa e cruel que foi capaz de dizimar a Liga da Justiça (uma liga completamente diferente da que vemos no longa de 2017) com extrema facilidade, com um braço preso às costas. Super-homem, que concedia uma entrevista naquele momento, fica sabendo da batalha entre o grupo de heróis e a criatura e parte para lá na mesma hora.
E isso, meus caros leitores, é o máximo que você precisa saber sobre a narrativa que não tem nada de complexa. Na verdade, o grande mérito da HQ está justamente nas batalhas memoráveis.
Primeiro destaque disparado: a arte magnífica de Dan Jurgens, seja da paleta de cores ao visual e anatomia dos personagens. Um artista, aliás, que eu li muito nos meus tempos de leitor de gibis de super-heróis (hoje em dia eu ainda leio graphic novels, mas deixei os superpoderosos de lado!). Outro ponto que merece meu elogio: a visceralidade com que o homem de aço sofre e apanha na história é louvável. A princípio pensei que eles fossem aliviar um tanto por se tratar do Superman, mas não... Eu raras vezes vi o herói - e não somente ele, mas todos os que enfrentaram Apocalipse - apanhar tanto numa história.
Lembro que quando cheguei ao capítulo final da história (que é dividida em seis partes), senti um misto de orgulho e tristeza. Orgulho pelo arrojo estético empregado - e na última parte cada página resume a batalha final em cenas épicas, sem divisões em quadrinhos menores - e tristeza por saber que o herói mais poderoso da DC iria sucumbir. Lógico, naquele momento, pois tudo era uma grande jogada de marketing para atrair os leitores que andavam sumidos.
Depois de A morte de Super-homem a DC Comics teve que manter o herói de Krypton afastado de suas páginas por um tempo, mas planejou seu retorno com garbo e lançou tempos depois O retorno de Super-homem (este dividido, na edição nacional, em três volumes), trazendo inclusive personagens como Aço e Superboy, que chegou a ganhar gibi próprio por aqui. E ao fim dessa saga zerou a numeração do gibi oficial do herói em nossas terras, levando o super para outras aventuras insólitas.
Só para não deixar de fora o meu momento memoriográfico o kit vendido nas bancas trazia, além da edição de capa preta com o logotipo do herói sangrando, um pôster caprichado com a cena do funeral do Super e uma versão fac-símile da edição em formato americano com as cenas finais da batalha. E, claro, que relançamentos com o passar dos anos também geraram um burburinho junto ao público, tanto que muitos deles encontram-se esgotados.
Em 2016 o diretor Zack Snyder (de novo ele!) trouxe o personagem Apocalipse para seu longa Batman vs. Superman: a origem da justiça e também matou o homem de aço. Confesso que, na época, eu achei um tanto forçada a escolha, mas o visual da criatura era realmente assustador. Pena que a história não teve o mesmo impacto. E houve também uma versão da história em animação, dirigida pela dupla Jake Castorena e Sam Liu em 2018, mas com liberdades artísticas que diferem do material original.
Como legado para a história da nona arte é preciso dizer que A morte de Super-homem divide opiniões. Tem quem ache uma grande bobagem, um reles caça-níqueis barato, e tem quem a considere uma das melhores sacadas da DC Comics até hoje. Enfim, meus caros leitores, fica a seu critério. Mas que foi um evento que mudou a minha relação com os quadrinhos na época (e eu tinha apenas 16 anos), ah! não há a menor dúvida...
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Alligator: O Jacaré Gigante
2.7 206 Assista AgoraNêmesis subterrâneo
(Alligator, de Lewis Teague, é um clássico dos filmes B de matança numa época em que hollywood sabia ganhar o seu público com pouco).
O gênero terror no cinema se sofisticou nos últimos anos e, para mim, meio que perdeu o seu encanto, aquilo que fazia dele um diferencial. Por mais que víssemos efeitos de quinta geração e cenas toscas, no fundo era justamente isso que nos agradava. E com a chegada do CGI, do 3D, do 4K ou qualquer outro modelo de sofisticação cinematográfica aquilo que o terror tinha de inovador deu lugar a um exagero no que se refere à perfeccionismo criativo.
Em outras palavras: hoje em dia se exige muito mais da pós-produção e da definição da imagem do que do roteiro (que, muitas vezes, é feito por escritores que não entendem de fato a essência do gênero). Vejam, por exemplo, O lobisomem, com Benicio del Toro. Traz o personagem clássico tratado de forma impecável do ponto de vista visual à serviço de uma história meia-boca e forçada. Logo, torna-se impossível não idolatrar o terror feito no passado.
A quadrilha dos sádicos; Pague para entrar, reze para sair; Evil dead - a morte do demônio; O exorcista; A profecia; O bebê de Rosemary, entre tantos outros exemplares únicos, souberam aliar o trash, o escatológico, soluções baratas, efeitos práticos e o muitas vezes chamado de improviso, a um roteiro que sabia tocar no âmago de seus mais ardorosos fãs. E o resultado dessa equação eram sustos, gritos e muita diversão.
E uma das primeiras lembranças que eu tenho disso em minha cabeça é o clássico Alligator, de Lewis Teague, que os cinéfilos raiz certamente se lembram das inúmeras repetições na programação de filmes do SBT num passado nem tão distante assim.
A jovem Marisa compra um pequeno crocodilo numa dessas exibições públicas em que homens enfrentam feras e o leva para casa. O pai, indignado porque o animal infestou a casa de fezes, o joga na privada, dá descarga e ele vai parar nos esgotos. 12 anos depois, já imenso, torna-se uma fera indestrutível que está tirando as vidas de milhares de pessoas. Mas o que assombra mesmo àqueles que devem investigar o caso é o tamanho da criatura.
O crocodilo sofreu uma variação hormonal porque comia cães mortos que serviam de cobaia para uma instalação suspeita que pretendia criar uma espécie de hormônio sintético revolucionário. Sinistro, eu sei... Mas também bem a cara do cinema daquela época.
Chamado para liderar as investigações, o detetive David Madison (Robert Foster) corre pela cidade atrás do nêmesis subterrâneo que continua aumentando seu número de vítimas. A única capaz de realmente o ajudar é a mesma Marisa (Robin Riker), agora doutora especialista em anfíbios e répteis. Mas acreditem: não será um trabalho nada fácil e nem sempre a polícia o apoiará em suas decisões.
As cenas em que a criatura invade a cidade, destrói o asfalto das ruas, adentra uma festa chique, mata um garoto que é jogado dentro da piscina e estraçalha um caçador contratado pelo prefeito para abatê-lo, já entraram para a história da sétima arte e desse filme B (sim, nunca esse longa se pretendeu algo mais do que isso e é exatamente essa característica um dos maiores charmes da produção até hoje).
Para os fãs da boa e velha matança Alligator é o protagonista ideal e o diretor não faz média ou cria estilo. Ele mostra suas intenções de forma nua e crua. E confesso: em alguns momentos parece até que ele tomou suas decisões criativas mais brilhantes na última hora. E isso é simplesmente sensacional!
Para as novas gerações, acostumadas à Annabelle, Invocação do mal e a série Supernatural (fenômeno televisivo) recomendo que procurem o filme, deem a ele uma chance, mas vejam com olhos sábios, entendendo que se trata de um cinema anterior a tudo o que você conhece sobre cinema, portanto visionário nesse sentido.
11 anos depois do lançamento da versão original o diretor Jon Hess dirigiu Alligator 2: a mutação, que não faz jus ao legado do crocodilo assassino. Ou seja: mais um pisada de bola do mercado hollywoodiano (e olha que eu tenho uma enorme dificuldade de chamar esse longa de uma continuação direta do primeiro!).
Faltou dizer alguma coisa? Sim. Que os produtores de cinema daquele período sabiam ganhar o seu público sem tanto esforço ou tecnologia de ponta. E isso, naquela época, era chamado de talento.
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Soul
4.3 1,4KMemento mori
(Soul, de Pete Docter, é um passeio lúdico sobre um tema que apavora a humanidade desde que o mundo é mundo)
Não conheço uma pessoa remotamente sã que seja capaz de explicar o que é a vida. E que bom que assim seja.
A vida é complexa, nos faz sorrir, chorar, sentir dor, nos irritar, pensar em desistir de tudo, em continuar tentando, lutando, sobrevivendo, aguentando até onde dá, só mais um dia, só mais um, e de repente dá tudo errado e você volta e recomeça e faz de novo e não satisfeita ela te desafia de novo, quer te colocar no chão como um pugilista malvado, mas você não deixa e chama ela para um outro round e mais um e mais outro... Ufa! Não é mole, não! A vida não é para principiantes.
E qual não foi a minha surpresa ao ver a Disney Pixar falar sobre a vida (e, é claro, a morte) para um público que a priori sequer começou a entender o que ela é de fato. Mais uma vez a casa do Mickey calou a minha boca, fazendo aquilo que os filmes adultos não têm tido coragem de fazer.
Em Soul, animação dirigida por Pete Docter, acompanhamos a trajetória de Joe, um professor de música num colégio infantil cujo maior sonho é trabalhar como pianista de jazz, algo que ele vem labutando há muitos anos sem sucesso. Quando a oportunidade aparece, podendo acompanhar a lendária Dorothea em seu quarteto, ele morre e se desespera ao conhecer o que chamamos de pós-vida. Tão desesperado que acaba furando a barreira e indo parar no pré-vida, onde crianças estão sendo preparadas para o início de suas existências.
Ele sabe que seu lugar não é ali, mas o considera melhor do que simplesmente morrer e aceita trabalhar como mentor para uma dessas novas jovens almas. O problema: recai sobre ele a difícil missão de ser o mentor de 22, um alma rebelde, extremamente relapsa e que não tem o menor interesse em viver. Mas ele precisa encontrar uma maneira de fazê-la acreditar que a vida vale a pena. Até que um acontecimento inusitado ocorre e todo o seu plano inicial vai pelo ralo.
Antes de qualquer outra coisa que eu diga sobre Soul é imprescindível que eu elogie o conjunto de vozes escolhidas para este projeto. Jamie Fox e Tina Fey - que dão voz, respectivamente, à Joe e 22 -, Alice Braga, Angela Bassett, o apresentador de tv Graham Norton... Eu não costumo recomendar a versão original em inglês para quem não conhece o idioma, mas se tiverem a oportunidade de ver ambas, legendado ou dublado, assistam. O trabalho deles é sensacional. Bem como as escolhas musicais para a trilha sonora.
Dito isto, vamos à minha impressão principal: durante toda a projeção me veio à mente uma expressão latina chamada "memento mori" ou, numa tradução livre, "lembre-se de que é mortal". E esse, para mim, foi justamente o conselho que Joe não ouviu ao longo de toda a sua vida.
Ele passou tanto tempo pensando em realizar o seu maior sonho - o que, de certa forma, era uma maneira de também realizar o sonho do pai, já falecido - que acabou por esquecer de viver. E esse me parece um dilema que acompanha grande parte da humanidade. Projetamos nossas felicidades em realizações extraordinárias, impérios gigantescos, e na maioria das vezes, desaprendemos a entender a necessidade do simples, dos pequenos gestos em nossas vidas.
Colocamos como prioridade uma suposta felicidade que tentamos explicar para os outros e não conseguimos. Corremos atrás de uma riqueza que não levaremos conosco quando não estivermos mais por aqui. E ainda assim, achamos tudo isso, toda essa distorção, extremamente natural.
John Lennon, vocalista dos Beatles, dizia que "a vida é o que acontece enquanto estamos fazendo planos" e estava coberto de razão. Passamos a vida a planejar e esquecemos completamente de vivê-la, de encarar o dia a dia. Preferimos chamá-lo de chato, monótono, de mesmice. E a vida, na maior parte do tempo, é o que você faz dela. Então, meus caros leitores, carpe diem (impossível não lembrar do mestre Robin Williams dizendo isso aos seus alunos em Sociedade dos poetas mortos!).
P.S: o visual estético do longa é de uma exuberância assustadora. É definitivamente um Oscar bait.
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A Voz Suprema do Blues
3.5 540 Assista AgoraOs restos
(A voz suprema do blues, de George C. Wolfe, usa uma simples sessão de gravação como desculpa para esmiuçar a eterna condição do racismo nos EUA.).
Assim como na vida, o mundo do show business é complexo. Quem está de fora muitas vezes vende até a alma por uma remota possibilidade de acesso. E quem se consagrou dentro dele não admite, sob hipótese alguma, que outros venham roubar ou mesmo ofuscar o seu espaço, na maioria das vezes conquistado com muito suor e renúncia. E quando esses dois mundos se chocam, sai de baixo, pois somente os realmente fortes sobreviverão.
Chicago, 1927. Para um homem ou mulher negra como Ma Rainey (Viola Davis) conseguir celebritismo é preciso ter algo de muito bom ou especial para entregar ao público. E acreditem: ela tem e de sobra. Entretanto, ela precisou enfrentar o mundo dos homens brancos e suas eternas injustiças. Por isso, essa mulher forte enfrenta quem quer que seja de frente, sem papas na língua, nem fazendo concessões. Ela sabe que se quiser se manter onde está é preciso encarar o touro pelos chifres diariamente. E o principal: entender que nunca, nunca mesmo, ela terá descanso ou será aceita como uma igual.
Ela vai até um estúdio de gravação para produzir seu mais novo álbum e esperava que não fosse ter grandes problemas. A banda a acompanha faz tempo e sabe o seu lugar dentro do negócio. Contudo, como eu disse antes: o show business é complexo e cheio de novatos tentando chegar à fama. E ela esbarra no jovem - e convencido por natureza - trompetista Levee (Chadwick Boseman, em seu último trabalho nas telas de cinema), que tem como certo o seu sucesso vindouro. Resultado: um duelo de gerações recheado de preconceitos os mais diversos.
A voz suprema do blues, do diretor George C. Wolfe, é o filme que eu estava aguardando com ansiedade para este final do ano. Fala do ontem para as minorias e os massacrados sem se esquecer do que o problema se tornou com o passar das décadas. E expõe a nu toda a dor e ressentimento de um povo (que, cá entre nós, tem todo o direito de ser ressentido do jeito que é, embora a classe privilegiada não tenha a capacidade de entender isso!).
Quando Levee esmiuça seu ponto de vista moderno para os outros músicos da banda, a chamada velha guarda, satisfeita com as míseras conquistas que realizou, começa um grande debate, feroz em suas intenções, sobre demagogia, religião, poder, sucesso e hierarquia. Quem manda e quem obedece, quem tem talento e quem só serve para acompanhar os outros, quem comanda o show e quem deve obedecer, etc etc etc. Há inclusive um monólogo extremamente questionador sobre a fé que vale por, pelo menos, um terço do longa.
A história, que é baseada numa peça teatral de August Wilson, me ganhou logo cara nessa adaptação cinematográfica por sua caracterização irretocável, os figurinos e o clima da época. Para cinéfilos que adoram filmes históricos, verão na película um prato cheio. Porém, trata-se de uma narrativa de embates, logo de interpretações ora fortes ora precisas. E tirando uma participação feminina dispensável, achei o elenco coeso e ciente do que queria desde o primeiro fotograma. Prevejo algumas indicações ao Oscar.
Detalhe que eu quase ia esquecendo: no quesito musical, o filme também não deixa a desejar, embora (eu confesso) quisesse ver um pouco mais. Mas não se trata de um musical estilo Broadway, logo volto à realidade para acompanhar as entrelinhas da história.
E ao passar dos créditos, percebi estar diante de um grande ensaio sobre os restos da sociedade.
Você, neste exato momento, deve estar pensando em casa: "o que ele quis dizer com isso?". A voz suprema do blues se debruça de forma inteligente sobre a vida miserável dos eternos excluídos da maior nação do planeta. Aqueles que só têm utilidade em época de eleição (algo que nós, brasileiros, conhecemos bem) e durante o resto do ano precisam se satisfazer com o que têm. E mesmo quando vencem na vida, por menor que seja, não passam de meros bobos da corte, "aqueles que entretém os verdadeiros seres humanos, os homens de bem".
O longa de Wolfe me fez pensar em muita coisa boa que eu vi nessa linha ao longo da minha vida cinéfila. Falo de Bird, de Clint Eastwood; da minissérie Raízes (de 1977); 12 anos de escravidão, de Steve McQueen e o eterno Malcolm X, de Spike Lee. E isso é realmente muito bom. Por outro lado, também nos mostra o quanto continuamos involuindo como sociedade, principalmente: como raça humana. E isso é realmente muito triste.
E só por essa contradição já vale a pena dar uma fuçada atrás dessa produção da Netflix (É... Outra vez ela!).
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O Rei da Munganga
2.6 1O rei da munganga
(R.I.P Genival Lacerda)
Tem dias em que a tristeza bate fundo porque uma pessoa querida, que fez parte da nossa infância e da nossa formação cultural, vai embora. E parte de maneira dolorida. E você fica em casa pensando: "tanta gente escrota no país e justo ele teve que ir embora!". Pois é... É exatamente assim que eu estou me sentindo nesta quinta-feira ao acordar e ver na tv a notícia de que o cantor e compositor Genival Lacerda faleceu, aos 89 anos, vítima do Coronavírus.
Eu lembro exatamente do dia em que vi Genival na televisão pela primeira vez. Era o Clube do Bolinha, na Rede Bandeirantes, e assistíamos na casa da minha avó. Na verdade, era um acontecimento assistir esses programas de auditório na casa da minha avó. Todos os netos se reuniam em frente a tv e sempre tinha um lanche para acompanhar a farra, que adentrava a tarde.
Genival chegou com seu jeito despojado, seu chapeuzinho, sua camisa florida (gosto que não perdeu com o passar dos anos), mexia com uma bailarina específica que estava sempre irritada, dançando, chamava a galera para cantar junto, dançava com a própria barriga. Era o verdadeiro munganga (expressão referente aos trejeitos, caretas e macaquices que fazia no palco como poucos na MPB).
Na hora pensei comigo mesmo: "está aí um cara que sabe viver a vida!". Passei a acompanhar sua carreira de perto. Quando não estava no Bolinha, dava as caras no Cassino do Chacrinha ou no programa do Raul Gil, sempre com um enorme sucesso.
E desde já proponho um desafio aos leitores deste humilde artigo: quem aqui pode admitir que nunca ouviu suas músicas? Quem se atreveria? Canções como "Severina Xique Xique", "Radinho de pilha", "Mate o véio" e "De quem é esse jegue" certamente fizeram parte do imaginário popular não somente nordestino (Genival é de Campina Grande, na Paraíba) como do Brasil como um todo.
Quando penso num artista popular que agradou a gregos e troianos, foi do Oiapoque ao Chuí, penso imediatamente em Genival Lacerda e suas momices. Ele era a cara do forró, da MPB eclética e bem humorada e de um tempo que, dia a dia, parece ficar cada dia mais distante do país por conta dessa nova mania do povo brasileiro em desmentir ou esconder tudo.
Em 2008 a documentarista Carolina Paiva realizou o longa O rei da munganga (que dá título a este texto) e mostrou de perto a vida íntima, as amizades e a rotina de trabalho de Genival. Lembro de ter assistido o filme na TV Brasil às gargalhadas. Era uma figura ímpar que vai deixar muitas saudades!
Hoje, ao ver amigos do cantor de longa data, como Elba Ramalho, Alceu Valença, Fagner, dentre tantos outros, se despedindo do velho mestre, alguns às lágrimas, confesso que também chorei.
Genival fez parte da minha infância. Com ele, aprendi que não é preciso ser sofisticado, cheio de rapapés acadêmicos, vestindo ternos e gravatas caríssimos, para entender o outro. Ele fez tudo isso com tão pouco e ao mesmo tempo parecia que ele tinha feito tanto. E, honestamente, ele fez sim. Muito. São pessoas como ele que precisam servir de exemplo e legado à esse país estilhaçado no qual estamos vivendo atualmente, que só quer saber de idolatrar as fake news e um passado fictício.
Genival, meu caro, não lhe conheci pessoalmente (e desde já me arrependo disso), mas tenha a certeza de que falarei sobre você e ouvirei suas músicas pelo resto da minha vida. Você era o cara!
Fica com Deus! E todo meu respeito e sentimentos aos seus familiares.
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