Tabloide Junkie (com The Acid House, o diretor Paul McGuigan constrói um retrato paranoico e psicodélico sobre a vida dos excluídos e viciados do mundo)
Quando devorava alucinadamente os romances do escritor norte-americano James Ellroy (autor de, entre outras façanhas literárias, os notáveis Los Angeles: cidade proibida e A Dália negra) havia, volta e meia, a presença da revista Hush-hush na trama. Tratava-se de uma publicação sensacionalista, que vivia de escândalos em hollywood e da vida das chamadas pseudocelebridades. E já naquela época - eu tinha pouco mais de 20 anos nesse período - alguns segmentos de hollywood reclamavam e muito da abordagem do autor sobre os artistas e famosos.
O tempo passou, Ellroy envelheceu (e continuou um autor brilhante dentro do gênero policial) e hollywood aprendeu a conviver com suas distorções comportamentais. Mais do que isso: passou a inserir em suas histórias as celebridades fake, os excluídos, renegados e também os junkies - que, a meu ver, rendem em muitos momentos grandes personagens. Quem quiser tirar uma prova dos nove sobre isso, assista ao extraordinário Réquiem para um sonho, de Darren Aronofsky.
E não é que nesta última sexta-feira encontro numa banqueta de dvds piratas, dessas que vocês vêem rotineiramente nas feiras livres, um exemplar surreal dessa vertente, provavelmente um dos filmes mais loucos que eu assisti nos últimos dez anos? Trata-se de The Acid House, o primeiro longa-metragem do diretor Paul McGuigan.
The Acid House traz aos espectadores uma grande crônica (melhor dizendo: um tablóide) sobre a vida miserável dos excluídos e viciados da América - e também, por que não dizer, do mundo. E não me refiro exclusivamente aos viciados em entorpecentes e psicotrópicos, não! Quem dera fosse fácil interpretar todos os tipos de vícios existentes na sociedade contemporânea...
Seguindo uma toada que lembra em alguns momentos o clima de Trainspotting: sem limites, de Danny Boyle, McGuigan constrói sua narrativa em torno de três "protagonistas" (as aspas são intencionais, na medida em que eles não se encontram sozinhos nessa rotina desesperadora que eles chamam de vida!): são eles Boab (Stephen McCole), Johnny (Kevin McKidd) e Coco (Ewen Bremner, que por sinal trabalhou com Boyle em Trainspotting).
Boab vê sua vida virar um caos após ser expulso do time de futebol no qual jogava e ser abandonado pelos pais e pela namorada. E quando se depara com a figura de Deus, dizendo que vai lhe transformar numa reles mosca, pois ele precisava aprender com seus próprios erros da pior maneira possível, ele entende que o inferno de fato ainda não começou. Já Kevin precisa lidar com um casamento frustrado com uma mulher de vida fácil, a última pessoa na face da terra indicada para iniciar um relacionamento desses. Pior: eles tiveram um filho. Enquanto isso, Coco, um viciado em ácido, se depara com um revés terrível em sua jornada quando um raio cai sobre sua cabeça ao mesmo tempo que atinge um bebê recém-nascido e seus cérebros mudam de lugar. Agora, vê seu intelecto preso a uma criança pequena enquanto seu corpo vaga pelas ruas, conduzido pelo cérebro da criança (esta é, certamente, a mais louca do trio de histórias).
Para aqueles que não são afeitos a filmes em episódios, talvez o clima proposto pelo longa incomode em alguns momentos, pelo seu teor pessimista (embora o filme tenha um senso de humor bastante ácido). Até as músicas que acompanham a vida de cada protagonista dialogam no sentido de mostrarem que são pessoas que convivem com o niilismo e a falta de expectativas para um futuro melhor. Mas enfatizo: não se trata de uma trama autodestrutiva. Longe disso. Há, inclusive, quem consiga enxergar a película como uma grande comédia de humor negro.
No final das contas, o que sobra para os espectadores mais interessados no gênero paranóia, é uma interessante reflexão sobre o mundo caótico no qual estamos vivendo atualmente. Mais do que outros filmes mais famosos sobre o tema vício, como por exemplo Drugstore Cowboy, de Gus Van Sant e New Jack City - a gangue brutal, de Mario Van Peebles, o que percebo aqui é o resultado final de anos e anos de carências humanas substituídas por "curas milagrosas" (no caso, o ácido, o casamento e a procura de muletas existenciais - família, namoro, amigos, etc - para suprir uma falta de interesse em tomar as rédeas da própria vida.
Boab, Johnny e Coco, têm em sua gênese, um mesmo princípio ativo: o de empurrar suas vidas com a barriga, pois não tem coragem ou mesmo forças para buscar algo melhor. E o resultado disso é a eterna procura por paliativos e mecanismos de defesa que justifiquem suas inércias.
Nada mais século XXI do que isso, não é mesmo? (e olha que o filme é do século passado!).
P.S: após terminar este artigo, me lembro de que o cantor Michael Jackson no álbum History - past, present and future gravou uma canção com o mesmo título. Não há relação alguma entre ambos (embora Michael ao longo da sua carreira tivesse que conviver com muitos sanguessugas e "viciados" pelo poder).
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O time dos sonhos (Memórias de um tempo em que basquete era espetáculo)
Era 1992 e em Barcelona, na Espanha, acontecia a XXV edição dos jogos olímpicos da era moderna. A pira fora acendida durante a cerimônia de abertura por um atleta que atirou uma flecha em chamas e, aqui no Brasil, houve uma polêmica discussão, pois muitos acreditavam que a flecha havia ultrapassado a pira (e que ela havia sido acendida eletronicamente). Porém, nada que afetasse o brilho do espetáculo.
E entre os muitos atletas que se destacaram nessa edição - e eu, por conseguinte, esperava por grandes novidades já que adorara a edição anterior, realizada quatro anos antes em Seul, na Coréia do Sul - houve um grupo de homens extraordinários que conseguiram, por um momento, me provar até mesmo que seriam capazes de voar (se quisessem de fato).
Refiro-me à seleção norte-americana masculina de basquete, que ficou eternizada como dream team (ou, em português, o "time dos sonhos"). Detalhe importante: era a primeira vez na história das olimpíadas que atletas profissionais, oriundos da NBA, podiam disputar a competição. Até então, somente jogadores amadores ou da liga universitária poderiam representar suas seleções. E teve quem visse essa articulação promovida pela FIBA (a federação que rege o esporte) como puro oportunismo, pois poderia levar o basquete made in USA a um patamar jamais igualado por qualquer outro país.
Polêmicas e dissensões à parte, eles chegaram e promoveram a maior revolução da história do basquete olímpico até hoje. E quem eram eles? Christian Laettner, David Robinson, Patrick Ewing, Larry Bird, Scottie Pippen, Michael Jordan, Karl Malone, Clyde Drexler, John Stockton, Chris Mullin, Charles Barkley e Magic Johnson. Só a estrutura criada para fazer a segurança da equipe já renderia um blockbuster de cinema na linha action movie. Eles não ficaram hospedados na vila olímpica, mas em quartos de hotel exclusivos e caríssimos. A desculpa dada na época pela delegação é que eles queriam evitar tragédias como a ocorrida nas olimpíadas de Munique em 1972, quando 11 atletas foram mortos num dos atentados terroristas mais famosos da história mundial (e para quem ficou curioso, procurem pelo filme Munique, do diretor Steven Spielberg, e sabiam mais detalhes).
Os EUA começam sua campanha rumo ao título e logo de cara deixam claro sua discrepância e talento em relação aos demais times. Abrem os trabalhos metendo um humilhante 116 x 48 em Angola, seguidos de um 103 x 70 na seleção da Croácia (que, pasmem, faria a final com os americanos!).
Completando a primeira fase, seguiram-se um 111 x 68 na Alemanha, 127 x 83 na seleção brasileira (e cabe aqui um breve aparte: eu me lembro até hoje do final desse jogo, quando as lendas americanas fizeram questão de cumprimentar nosso ídolo maior, Oscar Schmidt. Não é à toa que ele faz parte do Hall da fama do basquetebol!) e, finalmente, 122 x 81 na Espanha (que, naqueles tempos, ainda não tinha a força esportiva que tem atualmente).
Obs: nunca me esqueço de uma jogada específica - não me recordo exatamente em que partida ocorreu - em que Magic Johnson finge que vai enterrar a bola na cesta, joga-a para trás e eis que surge Michael Jordan "quase voando" e a enterra de forma devastadora, levando a plateia ao delírio. É uma das minhas lembranças eternas de todas as olimpíadas que assisti.
Na segunda fase da competição, os EUA mantém o ritmo avassalador e provam por a mais b que não havia outra seleção que se igualasse a eles. Na quartas, enfiam 115 x 77 em Porto Rico; na semifinal, emplacam um 127 x 76 na Lituânia (que contava com o gênio Sabonis em seu time) e repetem o massacre na Croácia (117 x 85 na finalíssima). Resultado: medalha de ouro mais do que garantida e merecida. E eu, claro, preso ao sofá da sala boquiaberto em todas as partidas.
Mais do que o resultado em si, assistir a esses homens jogando foi um espetáculo à parte, com direito a assistências eletrizantes, enterradas inesquecíveis, voos antológicos e um senso de organização e marcação descomunal. O técnico do time, Chuck Daly, chegou a afirmar no período que treinar aquela seleção era como "ter Elvis e Beatles juntos no palco". E ele realmente não estava exagerando!
Em poucas palavras (se é possível explicar algo assim): se você não viu a seleção de 1992 jogar porque não era nascido ou não curte basquete, não faz a menor ideia do que perdeu. Foi um momento único, que não se repetiu, embora a delegação americana tenha tentado, mandando grandes equipes nas olimpíadas de Atlanta, em 1996 e Sydney, em 2000. Porém, quando uma das equipes posteriores levou 100 pontos de um adversário na mesma partida, viu-se claramente que o encanto, a magia, havia se perdido de vez.
Ou seja: quem viu, viu; já quem não viu, só pode se contentar mesmo com vídeos antigos no you tube e no vimeo (o que, claro, nunca será a mesma coisa).
Até hoje, confesso, aguardo por uma nova geração tão brilhante quanto aquela de Barcelona. E me parece muito longe ainda o dia em que aquilo tudo se repetirá. Contudo, mesmo os jogos olímpicos, com o passar dos anos, ganharam uma outra conotação para mim (mais política, vamos dizer assim) e confesso que não vejo mais a competição com o mesmo prazer. O que é uma pena.
Mas mesmo assim, como é bom saber que eu fui testemunha ocular de tudo aquilo. Dá até vontade de gritar, berrar, pedindo para que aqueles dias nunca acabassem... Volta, Dream team! Volta! Pelo amor de Deus!!! O basquete nunca mais foi a mesma coisa.
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A fama é passageira (Strike a pose, de Ester Gould e Reijer Zwaan, é uma interessante reflexão sobre o legado da fama)
Eu nunca entendi - e provavelmente nunca entenderei - a fixação da humanidade com a fama. Sempre a considerei transitória, um estágio dentro da existência "de algumas pessoas", algo com prazo de validade definido. E qualquer pessoa que construa sua vida em torno dela sempre me pareceu, à primeira vista, um louco, um insano total. Digo isso porque faz parte disso que chamamos de vida os altos e baixos, os percalços. Do contrário, não aprenderemos nada em nossa passagem por esse plano.
Infelizmente esse primeiro parágrafo é o suficiente para que muitos adoradores desse meio por vezes mesquinho me vejam como um inimigo, um traidor ou um derrotado. Mas honestamente... Eles não me assustam mais. Na verdade, são dignos de pena isso sim.
E por que decidi falar sobre isso justo hoje? Porque o canal brasil (a cada dia me torno mais fã de sua programação!) passou essa semana na mostra In-Edit Brasil, dedicada à documentários musicais, o interessantíssimo e elucidativo Strike a pose - a vida após Madonna, dos diretores Ester Gould e Reijer Zwaan. E fez com que eu, mais do que nunca, prefira permanecer afastado do mundo das celebridades efêmeras.
Strike a pose nos traz a história - melhor dizendo: o reencontro após duas décadas e meia - de Luis Camacho, Jose Gutierrez, Kevin Alexander Stea, Salim Gauwloos, Carlton Wilburn, Oliver Crumes Jr. e Gabriel Trupin, todos eles membros da trupe de dança da cantora Madonna durante a turnê Blond Ambition em 1991 (que gerou também o documentário Na cama com Madonna, do diretor Alek Keshishian).
A turnê em questão é até hoje considerada o ponto alto da carreira da diva do pop e levou seus dançarinos a um patamar nunca antes visto. Eles eram tão exaltados no meio quanto a própria cantora. E até aí, nenhum problema nisso. Afinal de contas, eram artistas de uma extrema competência e habilidade. Contudo, no mundo do show business é preciso estar preparado para o dia seguinte (e acreditem: por mais que os artistas não queiram, ele sempre dá as caras).
A temporada com Madonna, e todos os luxos e privilégios possíveis e imagináveis, passa e o que vêm a seguir é o ostracismo e um hiato que se prolongou por praticamente toda a vida deles. E, para algumas pessoas que não entendem nada do ramo, parece chegar aquele momento em que eles, os dançarinos, precisam "ser gratos por tudo o que conquistaram e aceitar a derrota". Falar é fácil. Agora pergunte aos dançarinos.
Resultado: brigas nos bastidores, processos, o uso de drogas, a AIDS (que dizimou grande parte daquela geração), o fato de serem quase todos homossexuais num país que simplesmente os abominava - e abomina até hoje, a falta de perspectiva para prosseguir a carreira num meio tão competitivo como esse, enfim, as desilusões típicas de quem viu o paraíso de perto e agora não consegue um novo trabalho no setor. Ou em outras palavras: o sonho acabou, e agora? O que fazer a seguir?
A parte dos testemunhos dos dançarinos - menos o de Gabriel, já falecido - lembra em muitos aspectos o dos atores de Cidade de Deus - 10 anos depois, de Cavi Borges e Luciano Vidigal. Eles também viveram uma revolução do dia para a noite com o filme homônimo de Fernando Meirelles, que chegou a concorrer a quatro categorias no Oscar, mas logo a seguir precisaram conviver com a triste realidade de que, para muitos do elenco, não houve propostas posteriores de trabalho. E teve até gente que entrou para o mundo do crime. Detalhe: ainda por cima advogava contra eles o fato de não serem, naquela época, atores profissionais. O que dificulta ainda mais o processo.
E bem ou mal, a maioria dos dançarinos de Madonna tinha formação em balé, em dança clássica (salvo apenas um deles, cria do hip-hop).
Entretanto, isso não foi suficiente para mantê-los no palco. E olha que tentaram! E é justamente na frustração por não conseguir essa segunda chance que nos deparamos com uma interessante reflexão sobre o legado da fama e a confirmação da frase que já se tornou clichê no meio artístico: a fama é passageira. E vou além: ela, a fama, nunca foi sinônimo de carreira. Pena que muitos não consigam entender isso!
O documentário termina num tom de acerto de contas entre esses homens talentosos que tiveram de lutar duramente com a vida e apanharam muito. E o que se percebe é que eles, enfim, entenderam sua participação nessa indústria cultural. Eles tiveram o seu propósito, deram o seu melhor, atingirem o seu ápice e agora precisam sair de cena. Because the show must go on.
Enquanto os créditos finais são exibidos, fico me perguntando o que a cantora achou do filme. Ela não é totalmente exaltada no documentário e acredito piamente que seus produtores na época não gostaram nada de determinadas declarações dadas aqui. Eu realmente gostaria de saber qual a sua opinião sobre esse projeto.
Mas enfim... Não se realiza um filme com essa intenção sem, de alguma maneira, deixar pontas soltas. E isso também faz parte do show business.
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Podem até me chamar de maluco, mas adorei isso aqui. Um dos poucos filmes que me pensar no quanto a indústria musical tem regredido nos últimos anos e perdido tempo com tantos artistas de plástico, que vivem apenas de imagem e propaganda enganosa.
Irmãos de alma (com Destacamento Blood, Spike Lee não somente reconta a história passada dos EUA como expõe o quanto a chamada "grande nação" não passa de um país inventado e distorcido)
A guerra não termina simplesmente porque os fuzis pararam de disparar ou as tropas bateram em retirada. Nada disso. Ela continua na cabeça dos soldados que lá estiveram e nas mentiras contadas pelos governos que a financiaram. Clint Eastwood estava certíssimo em A conquista da honra quando um de seus personagens disse: "a guerra não passa de um negócio e se não formos arrecadar muito no menor tempo possível, é melhor que ela termine o quanto antes".
Em outras palavras: guerras existem para enriquecer nações tendenciosas e levar à morte àqueles que não se adequam ao sistema. Os homens negros, então, que o digam!. Qualquer outra coisa diferente disso (leia-se: patriotismo, dever cívico, etc) sempre me pareceu puro blá blá blá de quem gosta mesmo é de viver no mundo da lua.
Dito isto, peguemos o exemplo de Paul (Delroy Lindo, simplesmente extraordinário!), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis), Melvin (Isiah Whitlock Jr.) e Stormin' Norman (Chadwick Boseman). Juntos eles formavam, na Guerra do Vietnã, o destacamento Blood. Mais do que isso: foram testemunhas oculares do inferno que levou à grande cicatriz que aquilo se tornou dentro da sociedade americana (quem quiser que me desminta, mas sempre achei que o Vietnã foi a página que os EUA nunca conseguiu virar).
A guerra acabou - e vocês sabem muito bem quem levou a melhor -, Norman morreu em campo de batalha, mas antes disso o grupo escondeu um carregamento de ouro que seria usado como pagamento (e poderia ter levado ao fim da guerra ou, quem sabe, a uma espécie de trégua entre ambas as nações). Pausa para um grande fast forward... Cinco décadas depois os bloods sobreviventes decidem voltar às terras vietnamitas não somente para resgatar o ouro escondido, como também trazer de volta o corpo do amigo morto, a ser entregue aos seus familiares.
Parece fácil no papel, não é mesmo? Mas como eu disse no primeiro parágrafo: a guerra nunca termina assim.
O filme de Spike Lee é revisionista até o extremo e não somente isso: é um grande manifesto político sobre a história mal contada que o tio Sam adora narrar volta e meia para o resto do mundo.
Tirar o dinheiro do Vietnã é uma empreitada que envolverá uma série de dissabores, desavenças políticas e "homens de negócios" inescrupulosos sempre aptos a lucros fáceis e oportunistas. E não bastasse tudo isso esses cinco irmãos de alma - pois é nisso que a batalha os tornou, mesmo depois de tantos anos - ainda terão que contar com imprevistos os mais diversos, fora a própria relação entre eles, que em algum momento ficará estremecida.
Como pano de fundo o diretor faz aquilo que conhece de melhor (e que já havia feito em seu longa anterior, o também acusatório Infiltrado na Klan): o enche de homenagens, ironias e erratas as mais diversas. Atletas que a América preferiu varrer para debaixo do tapete, discursos antológicos de Angela Davis, Martin Luther King e Mohammad Ali, sobra até para o cinema brucutu de Sylvester Stallone e Chuck Norris (na visão dos personagens, heróis de "guerras imaginárias").
Enquanto isso, Marvin Gaye, gênio da Motown, dita o tom da trilha sonora e ela por si só já vale, a meu ver, meio filme. Se você não é fã de Marvin, convido-o a parar de ler essa crítica e se retirar daqui imediatamente. Você não merece ver esse filme. Mesmo.
Quase ia me esquecendo... Prestem atenção no monólogo de Paul na selva vietnamita. É devastador no sentido de apontar as falhas de inúmeros governos federais passados, com uma cutucada especial no atual presidente. A morte de George Floyd e todas as manifestações que se seguiram, acabaram por tornar o longa um artefato quase profético. E, além do mais, Ele, Paul, é desde o primeiro momento o elo fraco do pelotão. Aquele que pior lidou com a guerra, tanto que acabou por se tornar uma figura extremamente autodestrutiva. E o monólogo em questão, mais do que um simples desabafo, é de uma verdade avassaladora.
O longa termina depois de duas horas e meia de dor e reflexão. E ao fim dessa catarse o que temos é um novo acerto de Spike - mestre desde os tempos de Faça a coisa certa e Malcolm X -, que andou um período em baixa, realizando produções anos-luz de sua capacidade crítica. Quem conhece sua filmografia sabe que seu dedo acusador, expondo as eternas hipocrisias made in USA, é sua marca registrada. E aqui, assim como no filme anterior, ele encontrou espaço para brilhar.
E eu fiquei pensando ao fim: "e ainda tem gente que se voluntaria para participar de guerras".
P.S (eu preciso dizer isso): obrigado, Netflix! De novo. Só uma empresa como a de vocês para fazer frente à enxurrada de super-heróis e franquias que vem tornando o cinema americano bobo e vazio. Já estou à espera do próximo projeto foda.
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O templo do futebol (Maracanã completa 70 anos de existência sem perder a elegância)
Eu conheço gente que nunca entrou nele (sim, esse tipo de gente existe no Brasil!). Também conheço quem chorou das lágrimas descerem pelo rosto quando decidiram que a geral - palco mor dos verdadeiros torcedores: os descamisados - não ia mais existir. Era meu vizinho o dito cujo e ficou entristecido por semanas. E conheço também gente que não consegue imaginar a própria vida sem frequentar o estádio de tempos em tempos. Fez dele uma necessidade básica, como comer ou beber água.
Refiro-me ao Maracanã, templo máximo do nosso futebol, que ficou setentão sem perder a elegância, o charme, o garbo e a atitude. Embora algumas pessoas que o frequentaram nos áureos tempos reclamem de que a redução de assentos com o passar dos anos foi uma "injustiça com os verdadeiros admiradores do lugar". E eu concordo. Não gosto de ver o estádio associado apenas às elites. Ele se torna menor quando fazem isso com ele.
O Maracanã foi construído com a intenção de sediar a copa do mundo de 1950, E quando nos deparamos com essa notícia, mesmo aqueles que não viram a copa, que não eram nascidos naquela época, já sabem do que falo (e não é uma lembrança feliz). O maracanazo imposto pelo Uruguai e o seu 2x1 na final - aquele que demonizou para o resto da vida o goleiro Barbosa - até hoje nos atormenta. Há inclusive um curta-metragem com o ator Antônio Fagundes com o nome do goleiro que mostra um torcedor tão impactado com a derrota que decide construir uma máquina do tempo só para voltar ao dia do infortúnio e impedir a vitória da celeste azul. Procurem no porta curtas.
Entretanto o estádio não foi, logicamente, palco apenas de derrotas e lamúrias. Não, meus caros leitores! Há muito de bom a se lembrar neste lugar abençoado.
Por aqui passaram o Papa João Paulo II, o astro beatle Paul McCartney, o eterno "the voice" Frank Sinatra, a segunda edição do Rock in Rio em 1991 - por causa de uma rixa entre o então governador Leonel Brizola e o criador do evento, o empresário Roberto Medina, que levou à destruição da cidade do rock original de 1985 -, entre tantas outras estrelas. A criançada volta e meia dava as caras aqui por causa da visita do Papai Noel (que, aliás, era televisionada e tinha patrocínio do supermercados Sendas).
E eu me lembro também de certa ocasião em que fui com meu pai nos arredores do bairro (se não me engano ele foi buscar uma cesta de natal da empresa onde trabalhava), a duas quadras do Maraca, e vi um grupo enorme de engravatados passando correndo com sacas imensas de dinheiro às costas. Não entendemos nada do que estava acontecendo, até chegarmos em casa e nos depararmos com a notícia do culto realizado ali no estádio pelo Pastor Edir Macedo. Em outras palavras: nascia ali o império da Igreja Universal do Reino de Deus e todas as contradições que ele viria a trazer nos anos posteriores.
O alambrado caiu em 1992, ano do pentacampeonato do rubro-negro contra o Botafogo. Meu pai e alguns amigos estavam lá e minha mãe ficou superpreocupada. Eram tempos de Júnior de cabeça branca, o "vovô garoto" exibindo toda sua maestria. E também representou o fim de uma era para o clube. E como esquecer do gol de barriga de Renato Gaúcho no Fla-Flu que os flamenguistas não gostam de lembrar? Mas cá entre nós: metade do gol pertence ao lançamento do Aílton. Em 1994 Romário nos colocou na Copa - da qual saímos tetra - e esculhambou o Uruguai e o goleiro Siboldi (até hoje eu me lembro do nome dele. Coitado! Acho que ele nunca mais vai esquecer desse dia).
São tantas histórias e lógico que eu poderia fazer deste humilde artigo um livro, se eu quisesse. Mas eles já existem (isso mesmo: no plural). E deixo aqui duas dicas para fanáticos, pelo estádio e também por futebol: Maracanã - meio século de paixão, de João Máximo e Maracanã 70, de Eduardo Bueno e outras feras. E mais: duvido que os mais apaixonados pelo tema não se emocionem página a página!
Para a nossa felicidade recente - falo mais especificamente da minha geração - o 7x1 da Alemanha não foi aqui (seria um segundo golpe devastador para o estádio). Menos mal. Contudo, é bom saber que o lugar resistiu bem às suas dores, soube conviver com elas. Mais que isso: soube se vender por suas glórias eternas. De triste mesmo só o fato de estar comemorando uma data tão importante em meio à pandemia de Covid-19. Ele realmente não merecia isso!
E que venham os 80, os 90, o centenário e muito mais. Pois os torcedores brasileiros merecem. Valeu, Maraca!
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O primeiro blockbuster da história (45 anos de Tubarão, de Steven Spielberg)
O cinema hollywoodiano é famoso pelos fenômenos de bilheteria que cria de tempos em tempos. E honestamente: não fosse assim, muito provavelmente a grande maioria do público - que de cada dez assiste a, pelo menos, sete filmes made in USA - já teria abandonado as salas de projeção. A esses fenômenos notórios, hoje em dia, dá-se o nome de blockbusters. Contudo, muitos não sabem mas tudo isso começou de fato com o mestre Steven Spielberg e seu clássico das matinês Tubarão.
A criatura marítima devastadora continua aumentando sua legião de fãs toda vez que sua película é reexibida, seja nos canais de televisão, seja nos serviços de streaming. E mais: não conheço até hoje outro filme sobre o tema que tenha gerado tanta discussão ou admiração quanto este.
Por que estou falando disso? porque Tubarão, de Steven Spielberg, completou 45 anos de existência no último dia 20 de junho, e continua com toda pompa, garbo e mandíbulas, idolatrado como um dos maiores vilões da história da sétima arte (ao lado de Norman Bates, Darth Vader, Hannibal Lecter, e outras feras da maldade).
A história, todo cinéfilo fanático conhece de cor e salteado: na cidade de Amity, um tubarão ataca banhistas em plena alta temporada do verão norte-americano, causando problemas para o policial Martin Brody (eternizado nas telas pelo ator Roy Scheider). As autoridades não querem fechar as praias e arcar com o prejuízo que será causado caso os banhistas vão embora e, sabendo do impasse para lidar com a situação, decidem encontrar alguém que mate o bicho. Já o agente policial prefere chamar um especialista em oceanografia, Matt Hooper (Richard Dreyfuss), que corrobora sua visão de que as praias devem ser fechadas, o que cria um duelo de forças entre prefeito e polícia.
E como não podia deixar de ser, é claro, o animal leva o caos e o medo à cidade com muita matança desmedida e corpos estraçalhados.
Detalhe: a cidade de Amity é fictícia e inspirada em Martha's Vineyard, rota turística dos ricaços e celebridades. Seria a referência uma cutucada, uma espécie de crítica social? Há quem debata o tema em certos fóruns sobre cinema na internet.
Uma das curiosidades até hoje mais interessantes sobre a película trata-se do tubarão animatrônico construído para interpretar o "personagem principal" (e que se recusou a trabalhar na maior parte das gravações, sempre afundando ou dando defeito na hora H). O diretor ficava tão puto que chegou a apelidá-lo de Bruce, nome de seu advogado. São tantas as histórias e lendas urbanas acerca do bicho mecânico criado - o próprio Spielberg já chegou a dizer em entrevista que "jamais faria uma continuação do filme ou mesmo o refaria hoje, tamanho foi o trabalho que deu lidar com aquilo tudo" - que eu confesso que gostaria de ver um documentário sobre o tema.
E para aqueles que já estão pensando em me chamar de louco, vocês não fazem ideia da quantidade de coisas loucas e às vezes inverossímeis que eu já vi em forma de documentário feito nos Estados Unidos!
Tubarão é o primeiro filme da história de hollywood (de que se tem notícia, pelo menos) a gerar filas quilométricas nas portas dos cinemas. Isso que hoje vemos com a maior naturalidade com filmes como Titanic e o Batman dirigido por Tim Burton (eu lembro de ficar praticamente três sessões em pé na porta do cinema esperando a fila andar até que a sessão em que eu comprei ingresso começasse!) teve seu pontapé inicial com o longa de Spielberg. Em outras palavras: ele abriu vários precedentes para a indústria de cinema norte-americano.
E fica aqui um breve aparte nesse sentido: o longa foi lançado no meio do ano, um período de vacas magras para o cinema, pois as pessoas preferiam outro tipo de programação nessa época, um período muito quente. Contudo, ele não só quebrou com todas as expectativas como também deu início a uma expressão muito em voga em hollywood atualmente (o chamado "verão norte-americano", quando grandes estreias são prometidas para o público). Em suma: não fosse o tubarão spielberguiano provavelmente a Marvel e a DC procurariam um outro período do ano para lançar suas produções. Toda a indústria como a conhecemos hoje começou basicamente aqui.
E ao contrário do que muita gente pensa ("blockbuster só serve para fazer bilheteria; prêmios que é bom... nunca leva) o filme também chegou a cerimônia do Oscar. Indicado a quatro categorias, só não levou a de melhor filme (esta quem levou foi o reflexivo Um estranho no ninho, de Milos Forman), tendo faturado melhor edição, som e trilha sonora (a icônica música do também mestre John Williams). Foi um sucesso reconhecido pela academia, sim senhor!
Recentemente, vasculhando em sites sobre cinema, descubro duas informações curiosas: a primeira diz que Tubarão tinha como plano original se tornar um seriado, trazendo sempre atores famosos convidados para serem devorados pelo bicho a cada episódio (honestamente... eu veria a série hoje, agora, cheio de curiosidade). E a segunda, ainda mais interessante, é a de que o diretor Michael Winner, do lendário Desejo de matar, thriller policial com o eterno action hero Charles Bronson, foi convidado para assumir o projeto antes de Spielberg e o recusou. Na mesma hora que li a notícia meu cérebro começou a fervilhar de ideias, tentando imaginar o que seria esse filme.
Para encerrar minha exposição (ou seria um texto-homenagem?) aqui, uma informação pessoal: considero Tubarão o melhor exemplo de uma adaptação cinematográfica em que o filme é infinitamente superior à obra original. Digo isso porque sempre achei o livro do escritor Peter Benchley um saco. Arrastado e melancólico até o final. O que Spielberg conseguiu fazer aqui, tirando leite de pedra, é digno dos maiores mestres do cinema norte-americano. Quem não leu a obra literária, procure e depois volte aqui para me dizer se não estou com razão.
E ainda tem gente que chama o cara de "diretor infantil". Fala sério!
P.S (esse texto tinha que ter, de qualquer jeito): nunca me esqueço de minha dizendo, quando foi ver o longa nos cinemas em 1975, que ela quase saiu correndo do Metro Copacabana com as amigas dos correios - onde trabalhava - quando o tubarão abriu a bocarra para pegar o policial Brody. Ela me disse: "era tão assustador, tão real! Nunca tinha visto nada igual até então". É... A criatura continua assustadora até hoje.
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Culpado desde o nascimento (Luta por justiça, de Destin Daniel Cretton, expõe a nu a face mais obscura dos EUA: o racismo).
Será que algum dia a humanidade tomará vergonha na cara e romperá definitivamente com a crueldade que conhecemos como racismo? Vejam o que está acontecendo nos EUA - exemplo mor do preconceito racial no mundo contemporâneo - por conta do assassinato brutal de George Floyd em Minneapolis. Pior: vendem, através do governo federal, a pecha de serem uma nação sem problemas, a qual as outras nações (a nossa, inclusive) querem copiar como modelo de retidão e ética. Malditos demagogos!
E em tempos de manifestações ao redor da terra do tio Sam e também em outros países ao redor do mundo (sim, pois racismo não é exclusividade da terra de Lincoln, Kennedy, Bush e Trump) há opções cinematográficas para discursar sobre o tema aos montes. E uma extremamente interessante é Luta por justiça, do diretor Destin Daniel Cretton.
O filme de Destin nos traz a história do primeiro homem a reverter uma condenação ao corredor da morte em toda a história jurídica dos EUA. Seu nome: Walter McMillan (Jamie Foxx, em atuação inebriante). O típico caso do homem escolhido por um sistema corrupto para ser o "homem certo na cena do crime exata". E esse mesmo sistema o condena à pena de morte pelo assassinato de Rhonda Morrison, que para os autos da justiça interessa apenas como "moça branca de família".
Quando ele é parado no meio da estrada pelo xerife Tate (Michael Harding) já sabe de antemão o que aquilo significa. Afinal de contas, na América ele pertence a "etnia errada". E por conta disso recebe sua condenação antes mesmo do julgamento acontecer. O que ele não sabe é que foi acusado através de uma trama sórdida que envolve não somente inúmeros interesses escusos, como também uma confissão forjada por um outro presidiário (ele, por sua vez, também ameaçado por esse mesmo sistema).
E ninguém quer meter a mão nessa cumbuca para defendê-lo. Até então. E digo até então pois eis que aparece na cidade de Monroe para elucidar o caso o jovem Bryan Stevenson (Michael B. Jordan, mais conhecido aqui no Brasil por seu personagem na franquia Creed), um jovem advogado idealista, formado em Harvard, e disposto a corrigir esse grave delito. Breve observação: o fato do diretor citar de forma direta e insistente a cidade de Monroe - onde a escritora Harper Lee escreveu o extraordinário romance O sol é para todos - é um aviso ao espectador, quase um prenúncio de que a barra vai pesar para o lado do advogado. Leiam o livro e tirem suas próprias conclusões para entender do que eu estou falando.
E acreditem: ela pesa. De todos os lados. Ninguém quer se envolver nessa história, sob pena de acabar pagando o pato também. Todos querem uma solução fácil, que atenda às necessidades dos moradores brancos do local. A única que acompanha a saga de Bryan - além da família, é claro! - é a jovem assistente dele, Eva Ansley (Brie Larson), que não escapa também de ameaças, bem como sua família.
O que Bryan precisa entender rápido nessa cidade é que não importa o fato de ele ser um advogado formado numa instituição de renome. Ele poderia ser médico, arquiteto, engenheiro... Fosse qual fosse a sua profissão, ainda assim aqueles que querem o caso resolvido como está, só conseguem enxergar a cor da sua pele. E nada mais. Logo, ele receberá o mesmo tratamento que qualquer criminoso.
No meu entender a frase que rege toda a trama, que dá significado à história, é aquela em que o protagonista diz ao seu advogado que, não importa o quanto ele lute, ele já "nasceu culpado". Walter entende perfeitamente o que significa nascer negro num país como os Estados Unidos.
O mais revoltante? Saber que depois de tanta escravidão, tanta luta, tanto sofrimento, nada mudou nessa terra que vive de vender hipocrisias como oportunidades para os outros. Luta por justiça é um longa que flerta bem com filmes de temática negra lançados nos últimos anos. Falo de Corra!, de Jordan Peele; 12 anos de escravidão, de Steve McQueen; Selma, de Ava DuVernay e O nascimento de uma nação, de Nate Parker, entre outros. Vejo todos esses filmes como uma espécie de cartografia da resistência aos mandos e desmandos de um país que se recusa a aceitar quem é diferente (mentalidade essa que nem mesmo o governo Obama conseguiu mudar).
E dessa catarse covarde, injusta, que sequer mostra sinais de mudança no ar (seja nos EUA, seja no restante do mundo) o que podemos perceber na prática é o quanto continuamos adoecendo como sociedade mundial por simplesmente não querermos uma mudança de postura, pois a manutenção da covardia a priori parece ter mais valor.
E enquanto isso persistir outros McMillans e Floyds e Luther Kings e Malcolm Xs continuarão perdendo suas vidas, sejam morrendo ou trancafiados em celas, ad aeternum...
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Post mortem (Eu te amo, de Arnaldo Jabor, é uma alegoria ácida sobre o desânimo e a inércia de uma geração)
"Se você acha que está difícil agora, imagina naquela época!".
A frase, que ouvi de longe proferida por um senhor de mais 80 anos num barzinho aqui perto de casa, era uma resposta dada a um grupo de adolescentes alienados que defendiam a relevância de regimes totalitários e repressores. E os jovens, sem resposta, calaram-se (um silêncio, diria, perturbador).
No mesmo dia que ouço essa frase, muito bem colocada por sinal, o Canal Brasil reexibe na madrugada o sempre interessante Eu te amo, de Arnaldo Jabor (lançado em 1981). E o sentimento que percebo ao fim da exibição é o mesmo: o de estarmos vivendo numa letargia, sem vistas a algo melhor no futuro.
Conheço muito moralista de plantão - de hoje e daquela época - que rotula este filme de "uma reles pornochanchada". Só posso lhes dizer: "assiste de novo, então! vocês não entenderam nada!"
Eu te amo conta a história de Paulo (Paulo César Pereiro, ator praticamente onipresente daquele período do cinema nacional), um empresário falido que apostou todas as suas fichas num empreendimento que não deu em nada e ainda por cima foi largado pela mulher, a médica Bárbara (Vera Fischer) e a sensual Maria (Sônia Braga) que não consegue fazer o grande amor de sua vida, o piloto Ulisses (Tarcísio Meira), abandonar a esposa. Exauridos pelas respectivas derrotas se encontram na cidade e trocam telefones. Paulo decide ligar para Maria - que se esconde sob a alcunha de Mônica, e diz ser garota de programa - e pede que ela venha até seu apartamento, o único patrimônio que lhe restou.
Paulo é praticamente um agorafóbico, quase não sai de casa e não se cansa de assistir os vídeos que gravou de sua ex-mulher. É um homem frustrado, arruinado pela vida e pelo que o Brasil se tornou durante o período militar. Já Maria/Mônica é uma submissa de carteirinha, não tem voz ativa para lutar pelo que quer e nunca conseguiu viver de outra maneira que não fosse à sombra do amante.
Quando suas vidas se esbarram eles meio que pressentem que precisam ser um a muleta do outro. Vivem numa espécie de post mortem (e por mais estranho que pareça aos leitores a minha escolha por esse termo, é dessa forma que vejo as suas existências: são pessoas destruídas, devastadas por uma era de violência e repressão que deixou sequelas nunca apagadas - até hoje, pleno século XXI). Empurram a vida com a barriga e fingem esperar por dias melhores, mas na prática o que se percebe é um inconformismo latente, um sentimento de que a verdade não existe mais, uma vontade de desistir de tudo, mas cadê coragem?
E como consequência dessa inércia ludibriam a vida (ou a rotina, como preferirem) do jeito que podem: tentam entender as razões do outro, transam sempre que podem, brincam, debocham do país, do sistema, de suas próprias vidas ilógicas. E quando raramente falam sério, vê-se claramente o ódio e o ressentimento acumulado por anos. Um retrato ácido sobre a contraditoriedade que reina nesse país desde que eu me entendo por gente.
Quando o desfecho bem humorado, à la musical da Broadway, dá as caras o que percebo é estar diante de uma grande alegoria sobre o desânimo que se abateu por toda uma geração que apostou suas fichas numa revolução que não veio, não passou de autoritarismo e da eterna mania que os seres humanos têm de acreditar nas piores coisas, desde que elas sejam baseadas "na moral e nos bons costumes".
E nesse sentido é impressionante ver que mesmo após quase quatro décadas o longa não só não envelheceu um segundo sequer, como permanece extremamente relevante para entendermos no que o país acabou se transformando com o passar do tempo: uma nação algemada à falsos ideais e correções políticas.
Grande Jabor. Por onde andas, meu caro, que não tenho te visto? O cinema brasileiro anda carente de boas ideias e desabafos. Como os seus.
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Ervas daninhas (Os miseráveis, de Ladj Ly ou "uma nação não se faz só de conquistas e realizações, não importa se ela pertence ao G8 ou não")
Às vezes eu gostaria, confesso, de ter a ingenuidade daqueles que acreditam piamente que competições como a Copa do Mundo e as Olimpíadas são capazes de melhorar os países que as sediaram. Infelizmente, a realidade (sempre triste, no final das contas) é bem outra. O que vemos é um país normalmente inventado para atender as necessidades de um grupo de capitalistas que não dão a mínima para nação nenhuma. Só querem mesmo saber é de show business e acumular contas bancárias fantasmas em paraísos fiscais.
Termino hoje de assistir o interessante Os miseráveis, do diretor Ladj Ly - indicado ao Oscar de filme internacional esse ano - e, ao final dos créditos, penso sozinho sentado no sofá da sala: "É... o mundo sempre consegue piorar, por mais que tentemos consertá-lo ou curá-lo das adversidades".
O filme - que não tem uma relação direta com o romance seminal homônimo do escritor Victor Hugo - é uma grande crônica sobre a estereotipia racial que habita a França nesse século XXI. E achei inteligente da parte do diretor abrir sua película com o dia da final da copa do mundo da Rússia, em 2018, quando a seleção dos azuis (os Le Bleu) venceram a Croácia na final. Digo isso, porque se trata da França que o governo e os tabloides querem que você conheça: a França vencedora, irretocável, sem defeitos, o melhor país do mundo para se viver.
Mas como disse lá no meio do primeiro parágrafo: a realidade (triste) é bem outra. E logo nos deparamos com um caldeirão cultural e ideológico dos mais fortes. Tenho a sensação, a cada fotograma mostrado, de estar diante de indivíduos sentados em cima de galões de gasolina, aptos a explodir a qualquer momento. E acreditem: eles explodirão à menor fissura.
A matéria prima humana vista aqui em nada difere daquela que os cinéfilos já conhecem de cor e salteado quando o assunto em pauta são os imigrantes (e muitas vezes eles se apresentam afrontosamente como mais cidadãos e éticos do que aqueles nascidos no país). Já vi muito dessa postura ofensiva em longas como Kids, de Larry Clark e Paranoid Park, de Gus Van Sant (e eu sei o que vocês vão dizer: "mas nesses filmes eles não eram imigrantes? Mas o contexto, no final das contas, é o mesmo!). Porém, há um adendo aqui: o sentimento legítimo de que essas pessoas não aguentam mais ser escravas de um regime capitalista e uma sistema de ideias que não as enxerga como parte da solução, mas do problema.
Os jovens Issa (Issa Perica), que rouba um filhote de leão do circo, causando uma quizila entre ciganos e senegaleses, e Buzz (Al-Hassan Ly), que com seu drone intrusivo invade privacidades alheias; o truculento Le Maire (Steve Tientcheu), espécie de manda-chuva da região, aquele que decide quem faz o que, quando, onde e como; o trio de policiais que faz a ronda na área, mas está mais interessado mesmo é em explorar a boa fé alheia, pois se escondem atrás do distintivo da corporação e suas leis distorcidas; o religioso, mas misterioso Salah (Almamy Kanouté), que se esconde em seu restaurante e em sua fé contraditória, mas sabe bem tudo o que se passa na área e é sempre procurado para opinar sobre certas questões espinhosas, entre outras figuras, têm algo em comum: são ervas daninhas.
Não. É isso mesmo que vocês leram: tratam-se de ervas daninhas, pois estão ali - na visão dos verdadeiros e conservadores franceses - para estragar toda a pureza e a dignidade que o país conquistou a duras penas da Revolução Francesa para cá. Eles são, para os nascidos na terra, os ingratos, os que deveriam voltar para sua terra natal e "deixar os cidadãos de bem em paz". (Sim, pois não é somente nos EUA que essa xenofobia acontece, não!).
Quando o final se aproxima, as rivalidades não conseguem ser arrefecidas e o nível de tensão aumenta, num crescendo assustador (pois, cá entre nós, é meramente impossível que um barril de pólvora desses não acabe em revolução ou guerra civil, para dizer o mínimo) o que nossos olhos vislumbram é algo que nossa sociedade já conhece e não aguenta mais rever: o desespero, a fúria, o direito a não permanecer mais calado diante de tanta injustiça. O que eles, os jovens, a nova geração, querem é respeito. E lutar pelo que acreditam. Quando isso não é possível, pois o Estado quer vê-los sempre como subservientes, bum! o caos se instaura.
Vi em alguns sites comentários que diziam que o diretor havia se inspirado em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, para realizar tal desfecho. E a referência se faz presente, não pela exatidão, mas pela intenção de promover uma reflexão forte.
Moral da história (se é possível uma moral nesse caso obscuro): o século XXI vê a promessa do capitalismo como solução para todos os problemas se dissolver de forma amarga e o que sobrou é um sentimento dúbio de impotência e hipocrisia. As nações do G8 - grupo do qual a França faz parte - querem se vender para o mundo através de suas conquistas e realizações, mas na prática o que vemos é preconceito e um abismo econômico e cultural atroz. Procurem saber sobre os refugiados que vagam pelo mundo e me corrijam se eu estiver errado.
E só me resta gritar : pobres de nós, habitantes desse mundo controverso!
P.S (eu vou me arrepender de ter escrito essa crítica se não falar isso): alguns jornais e tabloides disseram que o filme A vida invisível, de Karim Ainouz, perdeu a vaga no Oscar de melhor filme internacional na reta final para este filme por conta de uma distribuição melhor do longa francês. Caso isso seja verdade, espero que nossa sétima arte - quando todo esse clima ruim atual passar - aprenda a se vender melhor no exterior, pois a película de Karim é infinitamente superior a esta aqui em narrativa. Ou seja: continuamos sendo os vira-latas para a indústria cinematográfica americana, o que é uma pena.
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Não é só música, não senhor! (Pulse, de Pink Floyd, é uma despedida de luxo, mas também um evento único, desses que dificilmente se repete na vida)
Eu e as minhas viagens interiores que só a música é capaz de proporcionar...
Podem me chamar de louco quem quiser, mas eu sempre imaginei a banda Pink Floyd como uma grande experiência sensorial. Dizer que eles são só rock é não entender (a meu ver, pelo menos) o que é realmente a banda.
Detalhe: toda vez que eu reassisto filmes de ficção-científica antigos, como Laranja mecânica, THX 1138, Fahrenheit 451, Blade Runner: o caçador de androides, dentre outros, eu fico pensando que eles seriam o grupo ideal para realizar a trilha sonora da película. Ouvir Pink Floyd, para mim, é como ouvir um grande cântico, com viés reflexivo.
Pois bem: em tempos de quarentena (e esse vem virando um mantra que acompanha meus últimos tempos), me deparo com a presença do show Pulse -de 1995 - dando sopa 0800 no youtube e decido, é claro!, me sentar para apreciar a apresentação.
E que apresentação!
Pulse é a despedida do Pink Floyd dos palcos e está chegando à sua bodas de prata, sem envelhecer um ano sequer. Trata-se de uma das experiências sonoras mais inebriantes que eu (re)assisti nos últimos anos.
E isso graças a uma conjunção de fatores: para começar, a guitarra mágica e sempre bem-vinda de David Gilmour, afiadíssimo em todos os sentidos. O trio de backing vocals, Sam Brown, Claudia Fontaine e Durga McBroom, me deixou imaginando o que eu poderia esperar de um álbum solo das três, caso este álbum um dia existisse. Que vozes! Como complemento de luxo aos solos de Gilmour os teclados não menos magistrais de Jon Carin. O resultado dessa tríade, mais baixista, saxofonista, etc? Uma viagem pelo mundo mágico de uma das bandas mais originais que já passaram pelo mercado fonográfico até hoje.
E olha que quase me esqueço de falar da puxada de orelha que os caras deram na classe política com "brain damage" - sim, os caras alfinetam o errado também quando querem e do final apoteótico, deixando o público enlouquecido, com a dobradinha "wish you were here" e "confortably numb"!
Eu lembro de, décadas atrás, me deparar com esse álbum moscando num saldão das Lojas Americanas no centro da cidade e esnobá-lo, acreditando: "se ninguém quer isso, não deve ser grande coisa!". Queimei a língua. Também eu tinha meus 19 anos... E como todo adolescente que se preze, minha formação (ainda deficitária) incluía péssimos julgamentos e escolhas.
Valeu a pena dar uma segunda chance ao show cinco anos depois e agora, de novo.
Vivendo num mundo tão carente de boas ideias como esse contemporâneo, qualquer experiência válida merece ser vista, revista e comentada. Pois bem: vi, revi e agora comentei. Agora é com vocês. Dêem uma chance! E se você já conhece, está esperando o quê para ver de novo?
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Jason, o maior slasher de hollywood (40 anos de Sexta-feira 13, um marco do terror no cinema)
Os anos 1980 eram foda! E quem não os viveu, nunca irá entender isso completamente. Apenas imaginará e nada mais.
Minha televisão foi refém de meu delírio paranoico adolescente nessa década por conta das sessões de madrugada nos fins de semana (mais especificamente de sexta para sábado e de sábado para domingo, pois este que vos escreve não precisava acordar cedo no dia seguinte para ir à escola). Duas emissoras de tv dividiam minha atenção: o SBT - muito por conta da famigerada Sessão das Dez, que nunca começava às dez da noite e sim depois de meia-noite - e a Globo (leia-se: Corujão, Sessão de Gala, etc). E parte do atrativo gerado por essa faixa de horário relacionava-se diretamente com os filmes de terror.
E sendo ainda mais específico: os chamados slashers (em outras palavras: Freddy Krueger, Michael Meyers e, claro, Jason Voorhees).
Pois bem: eis que o filme que tornou Jason famoso, o hoje cult Sexta-feira 13, completou no último dia 9 de maio 40 anos de existência. O tempo passou, a franquia Jason ganhou nove continuações, um derivado (no qual enfrenta Freddy), uma série de tv, um remake, e ele continua vivo na mente fértil de adolescentes os mais diversos ao redor do mundo. E com toda justiça, é bom que se diga...
Detalhe: no longa de estreia não é nem ele o responsável pelos assassinatos que movem a trama, e sim sua mãe (interpretada pela atriz Betsy Palmer). A matança irrefreável de Jason - que é trabalhado por seu diretor, Sean S. Cunningham, sob a ótica do "whodunnit", em que os assassinatos são cometidos em primeira pessoa e nunca vemos o rosto do vilão - só viria a acontecer de fato nos longas posteriores. Ou seja: sua fama é anterior aos próprios crimes cometidos.
A produção, que custou míseros 550 mil doláres e arrecadou mais de 40 milhões, se pensou como negócio lucrativo desde o início. E mais: a Paramount, que faturou o título do longa - antes mesmo de existir um roteiro - num leilão, queria que o diretor bebesse na fonte de Halloween: a noite do terror, de John Carpenter, lançado dois anos antes. Ou seja: não se pensavam em inovações, mas em investir no certo, no que gerava receita.
E não é que Sexta-feira 13 superou sua referência e seu design de produção primário e se tornou um fenômeno global do gênero horror até hoje? A crítica especializada, logicamente, detonou o longa, acusando-o inclusive de misoginia, por conta da violência praticada contra as mulheres na história. Desavenças à parte, o filme de Sean não era mesmo feito para eles, mas sim para adolescentes à procura de aventuras (como as praticadas no acampamento em Cristal Lake) e, claro, sustos e mais sustos.
Aliás, Cristal Lake (assim como Amity, em Tubarão) virou referência de cinéfilos e pesquisadores da sétima arte, ponto turístico a ser passado de geração em geração.
Uma pena que com o passar dos anos - só na década de 1980 foram realizados oito filmes da franquia - o personagem tenha perdido o fôlego e virado meio que "veneno de bilheteria".
Digo isso porque há em curso um novo reboot do personagem, envolvendo entre os produtores até o jogador de basquete da NBA LeBron James, que não anda nem desanda faz tempo, bem como uma novo seriado televisivo, que está completamente parado. Dizer que se encontra "em pré-produção" seria até um elogio. Não, está engavetado mesmo.
Talvez os EUA venham enfrentando nas últimas décadas vilões tão aterradores, como os do terrorismo internacional, o Oriente Médio, etc, que Jason tenha virado peixe pequeno em suas intenções culturais ou de entretenimento. Vai saber. O que importa mesmo agora para hollywood são heróis e personagens estereotipados ao extremo.
Já para os fãs originais sempre haverá um lugarzinho especial guardado para esse grande assassino da sétima arte, responsável por muitas mutilações, facadas, flechadas, decapitações, machadadas e o que mais os fãs pudessem imaginar de tenebroso.
P.S: no atual momento puritano em que vivemos no mundo vai ter muito conservador babaca dizendo, após ler este texto, "ainda bem que não fizeram mais nada dele; as famílias de bem agradecem". Honestamente... Acompanhei a franquia durante anos, ainda revejo os filmes quando posso, e nunca me tornei um assassino, uma pessoa do mal. Não acredito que filmes transformem pessoas em seres piores.
P.S 2: eu sempre quis conhecer pessoalmente o ator que interpretou Jason Voorhees no cinema. Mais: queria ver o rosto dele. Sem maquiagem. Eu sei o que vocês vão dizer, mas eu avisei lá no segundo parágrafo que eu era paranoico, não avisei?
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Manipuladora (Ema, de Pablo Larraín, é uma interessante reflexão sobre mulheres empoderadas e a dificuldade de lidarmos com escolhas infelizes feitas ao longo da vida)
Nunca imaginei que fosse me deparar com tanta coisa boa em termos de entretenimento, sem nem ao menos precisar sair de casa para isso... O que não faz uma epidemia!
Antes de qualquer outra coisa que se diga ao longo dessa crítica, é preciso agradecer ao site Mubi, por também disponibilizar conteúdo audiovisual gratuito durante a quarentena da covid-19. Os cinéfilos mais apaixonados agradecem!
Agora vamos aos fatos: conheço muitas feministas e mulheres empoderadas que vão se identificar - e muito! - com Ema, filme mais recente de Pablo Larraín (dos ótimos No e O clube). E por um motivo óbvio: a protagonista é forte, não leva desaforo pra casa e muito menos desiste do que quer (mesmo quando aquilo que ela quer contraria as regras do que conhecemos como ética ou senso comum). E em tempos tão inescrupulosos como esses em que vivemos no século XXI, isso não é pouca coisa, não.
Ema (a exótica Mariana Di Girolamo) é uma mulher que chegou aquele ponto da vida em que o mais sensato a fazer seria tirar o time de campo e aceitar a derrota de forma digna pelos delitos que cometeu. Uma tragédia fez com que ela perdesse a guarda do seu filho adotivo, bem como arruinou o seu casamento pra lá de complexo com o tempestuoso Gaston (Gael García Bernal). O único resquício de humanidade que lhe resta é a paixão pela dança. E ela a exercita de forma digna, quase aflita, como quem se agarra a um cilindro de oxigênio.
Porém, ela decide não entregar os pontos e ir à luta, mesmo que para isso ela precise enfrentar essa jornada sozinha. Até mesmo a assistente social que cuida de seu caso já a alertou para os problemas que ela causará, caso insista em recuperar o filho. Mas ela, Ema, não vê razões realmente lúcidas para ouvir quem quer que seja.
Resultado: trama um plano sórdido que faça com que ela se aproxime novamente da criança, enquanto vive diariamente o seu estilo "living la vida loca" de ser. E digo mais: acredito piamente que mulheres como ela, insubordinadas, indomáveis, são aquelas que vêm ganhando o rótulo de avant-garde nos últimos anos. Em outras palavras: Ema é pura ousadia em forma de mulher e se orgulha disso. Mesmo.
Vi na sua persona quase indestrutível, confesso, um pouco da Erin Brockovich que Julia Roberts interpretou no filme homônimo do diretor Steven Soderbegh. E quando digo "vi um pouco", refiro-me à postura "eu vou vencer essa parada custe o que custar, e ninguém conseguirá me impedir por mais que tente". Só falta, em seu desejo de dar a volta por cima a qualquer preço, ela se transformar numa mulher-bomba e explodir tudo ao seu redor. De resto, ela simplesmente ultrapassou todos os limites do bom senso.
Embora não curta o gênero escolhido na trilha sonora (o reggaeton nunca fez o meu estilo), é de fácil compreensão a escolha dele para compor essa personagem turbulenta e decidida que Ema transpassa durante toda a projeção. E vejo essa música funcionando quase como um ruído. Tudo ao redor da protagonista vende essa ideia ruidosa, como se fossem paredes tentando sufocá-la, mantê-la presa de qualquer jeito. No entanto, é praticamente impossível colocar freios numa mulher como essa.
E como consequência de toda essa paranoia em forma de narrativa cinematográfica o que temos no final das contas é uma interessante reflexão sobre a mulher nesse século cheio de dúvidas e nenhuma resposta à vista. Mas uma mulher extremamente manipuladora, que não entende minimamente a dificuldade de lidar com a própria vida e com as escolhas infelizes que cometeu no passado.
Perdida, ela apela para o baixo nível - algo que anda muito em voga no mundo contemporâneo - e passará por cima de qualquer um como um rolo compressor, toda vez que o sistema ou a sociedade ousarem desafiá-la.
P.S: uma pena que o longa seja mais um exemplo, dentre tantos que já resenhei por aqui, do tipo de cinema que não vem interessando aos nossos cinemas, mais afeitos à comédias bobocas, franquias sem sentido e heróis estereotipados. Ainda bem que o streaming e sites como o Mubi existem para suprir a carência dos espectadores mais corajosos, que buscam fugir do tédio e da mesmice promovida pelos blockbusters.
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O Sr. conserta tudo (Sérgio, de Greg Barker, é a biografia sobre um homem que escolheu enfrentar um mundo consumido pelo poder e a eterna mania de fazer guerras)
É difícil ser mediador num mundo onde a sociedade decidiu se apaixonar por conflitos, guerras, terrorismo e a eterna ânsia pelo poder. À primeira vista, a sensação que me fica, é a de que essas pessoas se limitam a aceitar a derrota, pois não há quem consiga detê-los (e quando digo eles, refiro-me aos donos do poder, que não se cansam de tramar suas artimanhas, que por sua vez só fazem mesmo é piorar o mundo cada vez mais).
Contudo, existem aqueles que aceitaram o desafio de confrontar a guerra de frente, por acreditar que ainda é possível manter o diálogo, mesmo em tempos de matança e ódio exacerbado. O embaixador da ONU Sérgio Vieira de Mello foi uma dessas pessoas.
Timor Leste, Indonésia, Cambodja, Iraque... Sérgio esteve na parte do mundo onde a guerra, mais do que um enfrentamento, é um estilo de vida. Vive-se por ela, acredita-se piamente - em alguns casos - que não se pode ser respeitado ou mesmo feliz sem estar envolvido com ela. E o resultado disso tudo é catastrófico.
O diretor Greg Barker realizou, em 2009, um documentário sobre Sérgio, mas acreditou que não era o suficiente para explicar a importância desse homem para as novas gerações. Consequência: decidiu transpor essa história para um projeto ficcional junto à Netflix. E ei-lo aqui.
Primeiramente é preciso um aparte: vi muitas críticas na internet associando a maneira como Sérgio (que é vivido no longa pelo ator Wagner Moura, que por sinal está ótimo, uma das melhores coisas do filme) é ficcionalizado ao agente secreto James Bond. E desde já adianto que não concordo. Para mim, me pareceu uma maneira de diminuir ou o projeto ou a figura de Wagner, que vem se mostrando contrário ao que hoje está sendo chamado no país de "o novo Brasil". Em outras palavras: as pessoas não conseguem mais dissociar o artista do indivíduo.
O filme pega emprestado um estrutura narrativa parecida com a do filme As torres gêmeas, de Oliver Stone. Abre a história com o atentado sofrido na Embaixada de Bagdá, onde Sérgio ficou soterrado por horas até seu falecimento, e depois vão intercalando essas cenas dos destroços com flashbacks de sua vida política, seus embates junto à adversários e o romance com Carolina Larriera (a lindíssima Ana de Armas). Honestamente, não sei se a escolha agradará a todos. Confesso que preferia uma cronologia mais tradicional, principalmente depois de ter visto o excelente documentário. Mas entendo a necessidade de sofisticar a história com um certo requinte.
Sensacionalismos e distorções à parte, vemos a luta de Sérgio contra o governo norte-americano que quer impor sua política ao Iraque logo após a queda do ditador Saddam Hussein. E o assunto, todos sabem, não poderia ser outro (embora o longa não mencione isso): o petróleo.
As músicas, embora poucas, são pontuais e muito bem-vindas (é sempre bom ouvir Cartola e Caetano Veloso em qualquer projeto que seja!). A maneira como o diretor intercala o material de arquivo, as notícias dos telejornais, com a trama, também é muito bem construída e ajuda a estabelecer o contexto e diminuir possíveis pontas soltas. E no geral, achei que ele não errou tanto assim. Desde que você, lógico, guarde as devidas proporções entre vida real e filme de cinema.
A grande mensagem por trás de Sérgio está bem explicada nas palavras do general de Timor Leste que, em determinado momento da trama, o chama de "sr. conserta tudo" (eu assisti o filme em versão dublada, então não sei se na versão original, com legendas, eles usam uma expressão parecida). Sérgio era exatamente isso. Ele acreditava em debates e não em armas, e fez de tudo pela independência do Timor Leste bem como pelo fim das imposições norte-americanas com o Iraque (detalhe: prestem atenção em suas conversas com Paul Brenner, representante da Casa Branca no país; elas são fundamentais para entendermos o clima que pairava por lá naquele período).
Ao final de quase duas horas de projeção, um sentimento amargo, de derrota. De que o mundo perdeu um grande homem que, infelizmente, sabia onde estava se metendo e pagou o preço. Não é à toa que a sociedade prefere se esconder atrás de frases como "o mundo não é simples" (proferida pelo presidente da Indonésia), pois elas justificam o eterno desejo de destruir, de conquistar, de desrespeitar o próximo. Viramos um mundo consumido pelo poder (político e também de fogo). E enquanto tratarmos tudo sob a ótica da guerra, continuarei descrente, acreditando que a tão sonhada paz não passa de um enorme delírio.
Logo, como consertar o que prefere permanecer quebrado? Me digam vocês, se souberem...
P.S: se tiverem tempo, após assistirem Sérgio procurem pelo longa-metragem Ao vivo em Bagdá, de Mick Jackson. Acho que ele dialoga de forma interessantíssima com esse filme aqui!
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A seleção natural (O poço, de Galder Gaztelu-Urrutia, é uma alegoria doentia sobre a luta por um direito básico universal: o de sobreviver)
É... Não tá fácil, não! Na verdade está piorando...
Na tv, senadores confabulam (leia-se: guerreiam com unhas e dentes), sem chegar a um acordo, pelo chamado contrato verde-e-amarelo que, na prática, exclui diversos direitos trabalhistas outrora adquiridos. É uma terra de lobos comendo lobos a política partidária. Enquanto isso, a sociedade definha entre um aviso de morte por covid-19 e outro. É o agora, atingindo nossos olhos e consciências como um dardo envenenado.
E mediante toda essa insensatez e falta de escrúpulos achei extremamente enriquecedor - há quem certamente me chamará de maluco - assistir ao longa-metragem da Netflix O poço, do diretor Galder Gaztelu-Urrutia. E digo isso porque, mais do que nunca, precisamos entender (mesmo que vendo na marra) o mundo caótico que ajudamos a construir.
O poço traz uma plataforma (e nesse sentido, o título em inglês mostrado no IMDb faz bem mais sentido para mim) onde diferentes seres humanos, que se cadastraram para participar dessa suposta experiência, se intercalam, uma dupla por andar. Detalhe: o período em que cada dupla permanece no mesmo andar é de um mês. Após isso, eles vão para um outro, escolhido pelos administradores aleatoriamente. Parece simples de entender, mas o que realmente interessa não é o local, mas a mentalidade de seus moradores.
E é difícil classificar o novato Goreng (Ivan Massagué) como um protagonista desta trama. Pelo contrário. Ele me parece mais uma engrenagem de um indústria que trabalha com produção em série, como em Tempos Modernos, do sempre genial Charles Chaplin.
Aliás, qualquer correlação feita aqui com o mercado de trabalho de forma geral é muito bem-vinda. O filme expõe de forma lúcida (sem perder o seu percentual de enigmático) o eterno regime de castas no qual estamos amordaçados desde que o mundo é mundo.
Há de tudo no poço: homens e mulheres desesperançados por natureza, reféns de seu próprio niilismo; uma mãe desesperada que procura seu filho perdido no meio dos moradores; um fanático religioso que acredita piamente que somente Deus poderá tirá-lo daquele lugar miserável; canibais contemporâneos à espera de que qualquer pessoa morra a qualquer momento para que ele(a) não morra de fome; etc...
Quase ia me esquecendo: o elevador que traz a comida diária para os moradores do poço é o retrato do que existe de mais vil (e não menos verdadeiro) no que conhecemos como sociedade contemporânea. Ali se vê claramente a mentalidade egoísta do homem, incapaz de enxergar além de seu próprio umbigo e convicções. Quem comeu, comeu; quem não comeu, que reze, peça a Deus por dias melhores.
Neste momento a trama ganha uma conotação quase darwiniana, pois a seleção natural que se constrói diante de nossos olhos é sórdida, diria mesmo macabra (entendo perfeitamente os espectadores que classificam o longa dentro do gênero terror). Trata-se de uma luta inumana por aquele que deveria ser um direito básico universal garantido ao homem: o de sobreviver. E, no entanto, percebemos que nossa existência aqui não tem nada de garantido. Não há certezas no mundo dos homens. Apenas possibilidades e a maioria delas injustas.
Enquanto a sociedade procura por heróis de plástico e líderes tendenciosos a quem possam seguir inutilmente, como cachorrinhos de madame, o mundo real - aquele que nunca quisemos encarar de fato, frente a frente, pois é mais fácil ser covarde ou demagogo - nos coloca uns contra os outros e ainda disponibiliza as armas, para que nos matemos mais rápidos.
Eu já prevejo alguns leitores entediantes e repetitivos dizendo: "que crítico maquiavélico esse rapaz! não apresentou nenhuma notícia feliz ou sinal de esperança para o futuro" e eles podem se manifestar à vontade. Mas me parece à primeira vista impossível uma solução para o mundo enquanto empurrarmos o lado duro da vida para debaixo do tapete. O contrário disso sempre me soou como hipocrisia e dela, que conheço de cor e salteado, eu já ando cheio. Mesmo.
P.S: desde Mãe!, de Darren Aronofsky, um filme não mexia tanto com a minha cabeça como esse aqui. E a minha cabeça precisava de uma sacudida forte.
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Catarse alucinógena (Medo e delírio em Las Vegas, Terry Gilliam e uma viagem psicodélica ao mundo perturbador das drogas)
Gosto de Hunther S.Thompson. Mesmo. Lembro-me da primeira vez que eu li um livro de sua autoria, comprado num sebo no Largo do Machado. O nome da obra em questão era Screw Jack e me deparei com um dos relatos literários mais alucinados que eu tinha lido até então. O tempo passou e eu corri atrás de outros exemplares de sua bibliografia. E acreditem: aqui no Rio de Janeiro, assim como o poeta americano Charles Bukowski, Thompson não é um autor fácil de ser encontrado. Mas achei outros. A duras penas, mas achei. Dentre eles, o mítico Medo e delírio em Las Vegas.
No ano seguinte à minha leitura do livro - era uma versão pocket da LPM - fico sabendo da existência da adaptação cinematográfica realizada pelo diretor Terry Gilliam (de quem sou fá há anos, desde os tempos do Monty Python!). E começa então uma nova corrida, desta vez para assistir o fatídico filme. E o tempo passou, passou, passou, e o filme entrou para minha lista sempre cheia de "filmes a serem assistidos um dia".
Passaram-se quase 12 anos e eis que, finalmente, e graças à quarentena do coronavírus, eu encontro o filme no catalógo do Now disponibilizado gratuitamente entre um montante de longas-metragens os mais diversos. E desde já adianto: valeu a pena esperar.
Medo e delírio em Las Vegas traz Raoul Duke (Johnny Depp, num dos muitos alter-egos de Thompson) acompanhado de seu advogado, o Dr. Gonzo (Benicio del Toro), numa viagem rumo à terra dos cassinos e da perdição para cobrir uma corrida de motocross. Mas essa, meus caros leitores, é a última coisa que Raoul e seu amigo farão nessa terra onde "o que acontece por ali, fica por ali mesmo".
O que Raoul e Gonzo apresentam para os espectadores - de preferência, os de mente mais aberta - é um dos retratos mais surreais que eu já vi até hoje da dependência química. E ambos são viciados no que quer que seja, da cocaína ao éter, passando por comprimidos e o que mais você puder imaginar. Eles enlouquecem literalmente, têm visões de todo tipo, volta e meia se dizem perseguidos por forças obscuras e por inimigos imaginários, na melhor faceta Gilliam de ser (afinal de contas, se trata de um mago das imagens - e quem quiser se inteirar mais pela carreira do diretor, procure por O mundo imaginário do Doutor Parnassus e 12 macacos).
E dessa grande catarse alucinógena, repleta de reviravoltas as mais inverossímeis, vemos como pano de fundo a verdadeira América. Aquela que gosta de se vender para o resto do mundo através de seus heróis - Lincoln, Kennedy, etc - e seu discurso de vencedora, mas que adora varrer para o tapete suas desilusões, seus vícios e seu verdadeiro modo de vida.
A dupla Depp/Del Toro funciona bem durante toda a jornada, e me peguei a todo momento perguntando o que foi que aconteceu com o ator de Edward mãos de tesoura e Piratas do Caribe nos últimos anos. Onde foi parar toda essa ousadia e coragem para interpretar personagens alucinados? Engraçado. E tem fãs que dizem que artistas não desaprendem a atuar. Às vezes, eu sinceramente tenho as minhas dúvidas.
A mistura Thompson + Gilliam + Depp não só fundiu a minha cabeça de forma permanente, à procura de referências as mais loucas e diversas, como também me deixou com saudades dessa velha hollywood (o filme é de 1998, logo do século passado).
Estamos tão viciados em tecnologias de última geração, óculos 3D enfiados na cara o tempo todo, o vício exorbitante por franquias excessivas e remakes e spinoffs vazios, que perdemos completamente a noção do que significa ser original nos dias de hoje. E até quando o quesito em questão é adaptação, perdemos o gosto por boas histórias, cheias de nuances e tramas rebuscadas, e nos rendemos ao gratuito dos quadrinhos e ao vazio da cultura pop superficial. Uma pena!
Em outras palavras: Medo e delírio em Las Vegas é cinema que vem desaparecendo com o tempo e ninguém dá a mínima, pois a alienação e a barbárie ditam as regras do mercado cinematográfico atual. Mas se você, como eu, cansou desse óbvio ululante, dessa zona de conforto incômoda e repetitiva, então, meu amigo e minha amiga, essa sétima arte aqui é pra você. E mais não digo.
Pois a decisão de descobri-la é sua, e somente sua...
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Meio que um precursor dos filmes de zumbi que andam tão em voga atualmente em hollywood. . Cronenberg destila todo o seu nonsense, marca registrada que o consagrou no início da carreira, levando-o posteriormente à obras-primas B como A mosca e Gêmeos - mórbida semelhança. Vale a conferida para que os cinéfilos conheçam o mestre ainda em formação!
Territorialismos (Faça a coisa certa, de Spike Lee, e a América dos excluídos que competem entre si com unhas e dentes pelo mínimo necessário)
Todas as vezes que me perguntaram o que é mais extraordinário na história da sétima arte eu sempre respondi: "a capacidade de certos cineastas fazerem o seu trabalho repercutir além da geração para quem o seu cinema foi realizado". E há sempre uma lista imensa de filmes que cabem como uma luva nessa categoria. E dentre os filmes que vêm à minha cabeça toda vez que eu penso na lista desses filmes que foram além de sua própria época, é impossível não me lembrar de Faça a coisa certa, do diretor Spike Lee.
Lá se foram mais de três décadas e o longa de Spike não envelheceu um segundo sequer. Pelo contrário. Parece até que foi realizado no mês passado, na semana passada, tamanha a atualidade de seu discurso. E antes que os espectadores mais tradicionais e viciados num resuminho básico me aporrinhem, é preciso adiantar: Faça a coisa certa é um filme sobre territorialismos, sobre disputar espaço, qualquer espaço, o mínimo que seja, como quem luta pela própria vida. E isso, meus caros leitores e fãs de cinema, é muito maior do que qualquer sinopse que eu vá narrar aqui.
Seus personagens buscam razões para lutar por sua própria identidade, mesmo quando tudo parece conspirar contra eles. E o pano de fundo para essas discussões e disputas de território, além da música forte e precisa do Public Enemy, é a câmera subjetiva do diretor que nos proporciona um grande passeio pela vizinhança numa América à anos-luz daquela que vemos todo dia nos tabloides e na programação da CNN ou da Fox News.
E a estereotipia do lugar, é claro, chama a atenção com gigantesca facilidade. Se é possível falar em protagonistas, fiquemos então - na superfície - com o duelo entre Sal (Danny Aiello, fantástico!), o dono da pizzaria, point de grande parte dos moradores do bairro, e Mookie (o próprio Spike Lee), seu entregador, que vive reclamando do pagamento atrasado. Mas como disse no início do parágrafo é um protagonismo superficial, pois eles dividem a atenção com uma série de figuras que flertam com tipos sociais, embora tenham revolta e atitude própria para dar e vender.
Radio Raheem (Bill Nunn), como diz o próprio nome, anda para cima e para baixo carregando seu rádio no mais alto volume e incomodando os outros moradores da região. E ai de quem mandá-lo abaixar o som! Da Mayor (Ossie Davis) é praticamente um zorba, o grego da rua, sempre sugerindo soluções para os outros e tentando manter a paz a qualquer custo. Mother Sister (Ruby Dee) vê a vida passar da janela de sua casa, mas não perde a chance - quando a oportunidade lhe aparece - de palpitar sobre o que quer que seja. Buggin (Giacarlo Esposito) é aquele revoltado que existe em qualquer subúrbio do mundo. Deseja boicotar a pizzaria do Sal simplesmente porque ele não possui em seu hall da fama - a parede onde constam fotografias de clientes famosos - um homem negro sequer. Smiley (Roger Guenveur Smith) é o gago que perambula pelas ruas vendendo seus folhetos e lutando contra o preconceito daqueles que acreditam que ele deveria parar de encher o saco ou simplesmente desaparecer de uma vez por todas. E Love Daddy (Samuel L. Jackson), com suas tiradas no programa de rádio que apresenta, faz as vezes de cronista do cotidiano daquelas ruas sofridas.
E isso porque eu fiquei somente nos moradores mais influentes. Mas uma dica aqui: prestem atenção no contexto geral.
Digo isso porque, lógico, há sempre espaço para discussões entre vizinhos, crianças quase sendo atropeladas porque decidiram atravessar a rua na hora errada, brigas entre irmãos, a eterna guerra entre os policiais brancos que rondam a área e os moradores (detalhe: há uma sequência em que são exibidos os mais diferentes tipos de insultos que, por si só, vale pelo filme todo!) e a convivência difícil entre a comunidade negra e os donos de estabelecimentos comerciais de outras etnias.
Embora Spike Lee tenha se consagrado por uma carreira cheia de sucessos, acredito piamente que seu estrelato esteja até hoje muito atrelado ao sucesso desse longa. Digo mais: acredito que foi aqui que começou a sua fama de ativista. E os fãs de sua gloriosa carreira têm muito a agradecer...
Até hoje me pergunto onde a Academia de artes e ciências cinematográficas estava com a cabeça quando premiou Conduzindo Miss Daisy com o Oscar e não esta pequena obra-prima, que gera reflexões valiosíssimas até hoje. A América contraditória que virou as costas para New Orleans após o furacão Katrina e que trouxe de volta à cena a Ku Klux Klan em plena era Trump tem aqui o seu embrião (embora muitos demagogos prefiram não enxergar dessa forma).
Em outras palavras: os moradores do Brooklyn de Faça a coisa certa estão, embora prefiram não lembrar e se preocupar com questões mais pertinentes e agradáveis, sentados num enorme barril de pólvora, pronto para explodir a qualquer momento. E o fósforo que promoverá essa tragédia está na intolerância e na incompreensão de certos discursos. Porque o ser humano, infelizmente, nunca perde a mania de se achar mais do que os outros ou contar vantagem de si. Logo, esperar pelo pior não é uma promessa e sim uma realidade a longo prazo.
Tenho (sempre tive) a curiosidade de ver a continuação desse filme com seus personagens mais velhos, digamos, 20 anos depois do incêndio que encerra o longa. Infelizmente o tempo passou e Danny Aiello não está mais entre nós (o que é uma perda irreparável). E não bastasse tudo isso Spike decidiu seguir um novo caminho, não menos denunciatório. Uma pena! Precisávamos - e muito - rediscutir o que foi iniciado aqui, principalmente depois do advento das novas tecnologias e a chegada das redes sociais. Como isso não aconteceu, que bom saber que pelo menos podemos revê-lo e repensarmos a sociedade quantas vezes quisermos!
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O Cristo da vez (O caso de Richard Jewell, de Clint Eastwood, na verdade é a América fabricando heróis e vilões ao sabor de seus próprios interesses escusos)
Os Estados Unidos, que certos brasileiros frustrados adoram chamar de "a maior nação do planeta", é um país no mínimo irônico. Vive de fabricar maniqueísmos os mais diversos com o intuito de se promover e, com isso, conseguir mais adeptos alienados, antenados com a sua "causa" aham patriótica. E o maior exemplo disso é a maneira como constrói para a opinião pública seus conceitos de herói e vilão.
Dito isso, confesso que foi uma grata surpresa assistir o último longa de Clint Eastwood, O caso de Richard Jewell. E digo surpresa porque antes mesmo do filme ser lançado em nossas salas de projeção, já aportou por aqui carregado de polêmica por conta da maneira como o diretor expôs o ponto de vista de uma das personagens principais da trama.
Contudo, o protagonista desta história, Richard (vivido de forma exuberante pelo ótimo Paul Walter Hauser) tem seu próprio calvário para enfrentar. Ele é um reles segurança, ex-agente policial, que busca melhorar de vida para poder pagar suas contas e ajudar a mãe, Bobi (Kathy Bates, também excelente!). Mas sua vida muda completamente quando decide trabalhar nas olimpíadas de Atlanta, em 1996.
Uma bomba é colocada no Centennial Park e Richard é o primeiro a localizá-la e informar as autoridades. A explosão causa graves sequelas no público presente, mas a maior delas certamente na vida do próprio segurança. E tudo por causa da personagem que rendeu polêmica (como citado no segundo parágrafo). Kathy Scruggs - vivida por Olivia Wilde - é uma jornalista ambiciosa à procura de um furo de reportagem que tire a sua carreira do tédio. E que vê numa informação tendenciosa obtida através de um agente do FBI razões suficientes para colocar sobre Jewell a culpa pelo atentado.
A razão por trás da suspeita: o passado de Richard advoga contra ele e, nesse momento, surge uma cultura muito comum na sociedade globalizada em que vivemos. A eterna mania de ver o pior nos outros e não acreditarmos que as pessoas mereçam uma segunda chance.
(Detalhe: a polêmica que engoliu as intenções do filme em conseguir indicações para as principais categorias do Oscar e da temporada de prêmios em geral tem a ver com o fato da jornalista, no filme, trocar sexo por informação privilegiada sobre o caso. E é nesse momento - em tempos de feminismo ganhando espaço nas redes sociais e na internet, Me Too, etc - que a coisa começa a feder.
E fazendo aqui um aparte em defesa das mulheres que chegaram a rotular Clint de misógino e cruel, acredito que Eastwood queimou seu filme de graça aqui, pois vende a imagem de Kathy desde o primeiro fotograma como uma mulher promíscua, capaz de qualquer coisa para se dar bem. E só por isso já temos motivo suficiente para tomarmos cuidado ao analisar o projeto.
No final das contas, o que salvou o filme do eterno Dirty Harry de não cair no ostracismo e virar alvo de ativistas é o grande painel que ele construiu sobre os EUA controverso de hoje. Há um pouco de tudo aqui: a eterna mídia sensacionalista, que volta e meia bagunça a vida dos outros e, quando erra, não pede desculpas; a cultura viciante da hierarquia policial, não por estar preocupada em fazer justiça e averiguar os fatos, mas porque quer assumir o caso visando a fama; e a indústria dos ressentidos que adoram pegar volta e meia alguém para Cristo.
E Richard Jewell funciona bem como o Cristo da vez. Ele não se encaixa no padrão do que a sociedade americana gosta de vender como correto, como modelo. É gordo, nunca é levado a sério, mora com a mãe - para muitos, o suficiente para ser rotulado como um perdedor - e está sempre disponível (para o senso comum: disponível em excesso).
O monólogo final do personagem, quando enfrenta cara a cara o agente do FBI que quase destruiu sua vida, é extraordinário e mostra uma realidade nua e crua. Não é à toa que tão poucos ajudam no mundo, e tantos prefiram fugir, se esconder, virar a cara para o outro lado. No final das contas, parece que bandido é "aquele que faz a sua parte, que se preocupa, que toma uma atitude".
Logo, que país é esse que se esconde atrás de super-heróis e presidentes machões, mas adora varrer para debaixo do tapete a verdade sobre certas histórias contadas ao povo? Richard Jewell nada mais é do que um Lee Harvey Oswald aprimorado. Aquele que deve herdar a culpa para que não precisemos ir longe descobrir a verdade.
Mas vai ter gente por aqui dizendo que "não é bem assim", pois não tem recursos para formar uma opinião melhor do que essa.
P.S (e numa era cheia de politicamente correto e demagogos religiosos no Brasil, eu não posso terminar essa crítica sem dizer isso): você, cristão chato e que chama tudo de blasfêmia, que se incomodou com o título do meu texto, na boa... O problema é seu e só seu. Eu tenho mais o que fazer do que esperar a sua benção sobre tudo o que eu penso, digo ou escrevo. Anotou?
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Manual prático para entender psicopatas (A casa que Jack construiu, de Lars von Trier, é o resultado de uma sociedade que acredita na eficácia de guerras, armas e muita violência)
O mundo está cheio de Jacks, mas a humanidade (ah! a humanidade!) prefere o conforto da hipocrisia, e esconder suas mentiras preferidas atrás do discurso de que "fala sério! isso é mais uma invenção da cultura pop!". E por isso, defendo aqui o diretor Lars Von Trier. Ele matou a pau.
A casa que Jack construiu, último longa lançado pelo diretor (e que foi odiado de forma maciça pela crítica; teve até gente que abandonou a sessão no meio num dos festivais de cinema da Europa) é um grande ensaio sobre a hipocrisia latente que reina entre nós.
O Jack - interpretado pelo ator Matt Dillon, que depois de anos perdendo tempo com personagens inúteis, enfim faz uma boa escolha de carreira - proposto por Von Trier é o estereótipo máximo da psicopatia. Mata única e exclusivamente pelo prazer de matar. A ele não interessa nenhum juízo de valor ou moral ilibada. Ele é desse jeito porque decidiu ser assim. E suas vítimas são aquelas que aparecem diante de si quando a oportunidade se mostra. Ele não precisa de um motivo para caçá-las ou perseguí-las. Nada disso. Na prática, ele aprecia o momento e exerce "sua arte".
E é nesse momento que o filme se torna ainda mais interessante como reflexão (e essa, por sinal, deveria ser a principal abordagem dos cinéfilos, e não buscar algum tipo de adoração ou repulsa pela barbárie ou tentar catalogá-lo dentro do universo "filme de terror"). O diretor faz uma inteligente correlação entre os crimes de Jack e as obras de artistas clássicos da pintura.
Me peguei a todo momento pensando nessa geração de hoje que não sabe separar a obra artística de um indivíduo de seus delitos morais e perniciosos. Pior: boicotam suas carreiras, chegam a fazer campanha para que outros a boicotem também. Estão perdendo tempo, coitados! É praticamente impossível encontrar no mundo das artes alguém - e olha que eu já procurei por isso - que tenha uma vida acima de qualquer suspeita.
Parece fazer parte desse mundo a ideia de perversão, de incômodo. E isso é muito bem trabalhado em forma de telas, películas, livros, fotografias, músicas, ou seja lá que plataforma artística eles escolham. Não se trata - sinto muito aos moralistas que estiverem lendo esta crítica - de uma ciência exata, de uma realidade feita apenas de virtudes. Quem dera fosse fácil assim!
E Jack entende isso como poucos. Chega a descer ao seu último grau de indecência para provar às suas vítimas e perseguidores o quanto sua "arte" é pura, e não atrelada aos desejos de outros. Ele é, na melhor (ou pior, dependendo de como você enxergue a situação) expressão do termo, um sobrevivente do caos diário. E por isso não deve justificativas àqueles que nunca irão compreendê-lo como um todo. Porém, um todo fadado a destruir e não a construir o que quer seja.
E nesse sentido a casa que ele "supostamente construiu" é apenas uma dúvida, uma lamento, uma tentativa inglória de permanecer humano, quando na verdade o que ele deseja de fato é destruir o mundo que o rodeia.
Adorei um passagem do filme no qual Von Trier me fez lembrar de O auto da barca do inferno, de Gil Vicente (se a correlação não era essa, peço desculpas! nessas horas, eu sempre enxergo demais e de acordo com meus próprios gostos e referências).
Volta e meia chamam Lars de devasso, de polêmico, de mau caráter e aqui ele deu todos os motivos para que seus detratores bufassem de ódio. Realiza uma espécie de manual prático para entender psicopatas, mas sem cair nas armadilhas dos jargões psicanalíticos. Ele recorre às artes plásticas para nos mostrar o quanto o mundo anda impregnado de morte e violência até o talo, e acha tudo isso um tanto natural, às vezes até necessário.
Digo isso porque nunca falamos tanto em andarmos armados 24 horas por dia. Nunca se pediu tanto como nessa sociedade contemporânea por uma terceira guerra mundial (e tem quem se faça de desentendido, dizendo que "não é bem assim"). E não bastasse todo esse ódio, essa apologia à violência, tem quem exija a volta de muros, regimes totalitários e cultue ditadores e genocidas. Mas, no final, quem não prestam são os artistas. Esses sim precisam sumir do mapa. De vez.
Ó, Deus, perdoai-os! Eles não sabem de nada! Que dirá o que fazem...
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O VÍCIO, de Abel Ferrara, faz um interessante paralelo entre o universo vampiresco (embora seu filme não seja especificamente um projeto do gênero) e o mundo dos dependentes químicos. E talvez se tivesse optado por uma atriz do chamado primeiro escalão para sua protagonista, tivesse até conseguido arrebatar alguns prêmios em festivais independentes. Enfim... Vale a minha recomendação!
THE BEACH BUM me lembra muito a cagada que o Eddie Murphy fez quando, depois de ganhar o Globo de Ouro por DREAMGIRLS, foi fazer aquela porcaria cômica chamada NORBIT. Só que dessa vez quem esculhambou de vez foi o Matthew McCounaghey. Não dá pra entender esses artistas que depois que vencem um grande prêmio se associam a porcarias!
O marginal popstar (O bandido da luz vermelha, Rogério Sganzerla e o país que adora cultuar o errado)
O Brasil é um país que não muda porque não tem interesse em mudar, quer que tudo permaneça na mesma (de preferência, de acordo com os seus próprios interesses). Não bastasse isso, adora cultuar o errado, relativizar o que é crime e o que é boa ação. Bota tudo na conta do "veja bem...". E pensar que o diretor Rogério Sganzerla falava disso mais de 50 anos atrás e ninguém deu a menor bola. Nem naquela época, muito menos hoje!
É com uma enorme satisfação que sentei em frente ao meu aparelho de tv esta semana para assistir o dvd de O bandido da luz vermelha, de Sganzerla, clássico do chamado cinema marginal. E é também com uma enorme tristeza e um sentimento de impotência atroz que percebo que nada, absolutamente nada, mudou neste país que não consegue fugir da pecha de república de bananas. "Que país de merda!", dirão sem pestanejar aqueles que hoje migram em massa para Portugal.
O longa, que estreou por aqui às vésperas do ato institucional nº 5, é um marco do nosso cinema (mas vive sendo taxado por quem não conhece nada da sétima arte brasileira e da nossa cultura em geral de "mais um exemplar da apologia à violência"). Coitados deles! Não fazem a menor ideia do que estão falando!
Paulo Villaça (ator que merecia estar em evidência no país até os dias de hoje) entrega um luz vermelha que é a cara do Brasil de ontem, de hoje e provavelmente de amanhã. E Sganzerla, diretor que fez parte do grupo que fundou o cinema novo, mas também quis seguir por outros caminhos mais ácidos, entrega aquele que é, para mim, o filme derradeiro sobre a nossa nação controversa, que adora idolatrar criminosos de todos os tipos.
Luz vermelha é um marginal popstar, figura que volta e meia ganha os holofotes da mídia sensacionalista nessa terra ainda tupiniquinesca que chamamos equivocadamente de "país em desenvolvimento". É tão folgado que não só assalta casas, como dorme com as mulheres que rouba (e volta e meia elas se apaixonam por ele!) e ainda pede, de vez em quando, que elas façam um almoço para ele. Em outras palavras: é um artífice-mor dessa cara de pau que reina no Brasil há séculos.
Talvez a única, de todas as mulheres com quem dormiu, que pudesse entendê-lo na íntegra fosse Janete Jane (Helena Ignez, musa dessa geração cinematográfica). Mas ela estava tão preocupada com o seu próprio oportunismo, sua própria beleza, que preferiu traí-lo. E pagou caro por isso, como tantos outros que atravessaram o caminho dele.
Do outro lado da sede de status de Luz vermelha está o Delegado Cabeção (Luiz Linhares), que sofre do mesmo problema de Luz: ele busca também, a sua maneira, a notoriedade em primeiro lugar. Prender o bandido é apenas um detalhe perto do que representa ser reconhecido nas ruas como "o homem que prendeu Luz vermelha". E nesse momento Sganzerla realça um faceta típica de nossa sociedade que adoramos varrer para debaixo do tapete. Falo da eterna mania de fazermos péssimas escolhas baseadas em interesses escusos. Insira nesse contexto um pontada de fama e projeção e bum! eis aí o nosso exemplar ser humano de baixa categoria.
Contudo, me corrijam vocês, leitores, se eu estiver errado, mas acredito que os grandes protagonistas de O bandido da luz vermelha são os dois locutores de rádio que narram essa saga inglória, fadada logicamente ao insucesso. Digo mais: ambos remetem à uma espécie de consciência, aquela voz incômoda, que nunca queremos ouvir, pois nossa egolatria não permite, mas está sempre apontando os caminhos certos ou, ao menos, aqueles que deveríamos prestar mais atenção.
Mas vai explicar isso a uma nação que idolatra a ignorância desde a chegada de nossos patrícios em 1500?
Com seu filme-denúncia, quase manifesto de uma era que (ainda) não acabou, Sganzerla compõe uma tríade (junto com Terra em transe, de Glauber Rocha e A dama do lotação, de Neville d'Almeida) que optou por esmiuçar o Brasil ao invés de simplesmente deixá-lo para lá e vender belezas, fetiches e estereótipos. Aliás, tudo o que está acabando com o cinema da retomada.
Certa ocasião num vídeo do you tube vi Quentin Tarantino se dizendo fã do longa e é fácil entender o porquê. Sganzerla foi, à sua maneira, na sua época, um Tarantino. Mesclou referências e brincou com formatos do jeito que quis e quando quis. E não à toa ganhou, para mim, ao lado de Glauber, o rótulo de gênio do nosso cinema.
E é uma pena saber que a obra desse homem ande tão esquecida hoje em dia por parte de quem acha que sétima arte é sinônimo unicamente de efeitos especiais, super-heróis, CGI e mulheres masculinizadas interpretando vingadoras, assassinas de elite e caçadoras de recompensa!
Ah, Sganzerla! É sério que você teve de morrer? Que falta você está fazendo aqui embaixo, meu amigo!
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Eu vi o filme só por causa da Emilia Clarke. Mas confesso: não esperava aquela reviravolta na final. Para os casais de namorados que estão procurando aquele filme de fim de noite no domingo é a opção ideal.
The Acid House
3.4 76Tabloide Junkie
(com The Acid House, o diretor Paul McGuigan constrói um retrato paranoico e psicodélico sobre a vida dos excluídos e viciados do mundo)
Quando devorava alucinadamente os romances do escritor norte-americano James Ellroy (autor de, entre outras façanhas literárias, os notáveis Los Angeles: cidade proibida e A Dália negra) havia, volta e meia, a presença da revista Hush-hush na trama. Tratava-se de uma publicação sensacionalista, que vivia de escândalos em hollywood e da vida das chamadas pseudocelebridades. E já naquela época - eu tinha pouco mais de 20 anos nesse período - alguns segmentos de hollywood reclamavam e muito da abordagem do autor sobre os artistas e famosos.
O tempo passou, Ellroy envelheceu (e continuou um autor brilhante dentro do gênero policial) e hollywood aprendeu a conviver com suas distorções comportamentais. Mais do que isso: passou a inserir em suas histórias as celebridades fake, os excluídos, renegados e também os junkies - que, a meu ver, rendem em muitos momentos grandes personagens. Quem quiser tirar uma prova dos nove sobre isso, assista ao extraordinário Réquiem para um sonho, de Darren Aronofsky.
E não é que nesta última sexta-feira encontro numa banqueta de dvds piratas, dessas que vocês vêem rotineiramente nas feiras livres, um exemplar surreal dessa vertente, provavelmente um dos filmes mais loucos que eu assisti nos últimos dez anos? Trata-se de The Acid House, o primeiro longa-metragem do diretor Paul McGuigan.
The Acid House traz aos espectadores uma grande crônica (melhor dizendo: um tablóide) sobre a vida miserável dos excluídos e viciados da América - e também, por que não dizer, do mundo. E não me refiro exclusivamente aos viciados em entorpecentes e psicotrópicos, não! Quem dera fosse fácil interpretar todos os tipos de vícios existentes na sociedade contemporânea...
Seguindo uma toada que lembra em alguns momentos o clima de Trainspotting: sem limites, de Danny Boyle, McGuigan constrói sua narrativa em torno de três "protagonistas" (as aspas são intencionais, na medida em que eles não se encontram sozinhos nessa rotina desesperadora que eles chamam de vida!): são eles Boab (Stephen McCole), Johnny (Kevin McKidd) e Coco (Ewen Bremner, que por sinal trabalhou com Boyle em Trainspotting).
Boab vê sua vida virar um caos após ser expulso do time de futebol no qual jogava e ser abandonado pelos pais e pela namorada. E quando se depara com a figura de Deus, dizendo que vai lhe transformar numa reles mosca, pois ele precisava aprender com seus próprios erros da pior maneira possível, ele entende que o inferno de fato ainda não começou. Já Kevin precisa lidar com um casamento frustrado com uma mulher de vida fácil, a última pessoa na face da terra indicada para iniciar um relacionamento desses. Pior: eles tiveram um filho. Enquanto isso, Coco, um viciado em ácido, se depara com um revés terrível em sua jornada quando um raio cai sobre sua cabeça ao mesmo tempo que atinge um bebê recém-nascido e seus cérebros mudam de lugar. Agora, vê seu intelecto preso a uma criança pequena enquanto seu corpo vaga pelas ruas, conduzido pelo cérebro da criança (esta é, certamente, a mais louca do trio de histórias).
Para aqueles que não são afeitos a filmes em episódios, talvez o clima proposto pelo longa incomode em alguns momentos, pelo seu teor pessimista (embora o filme tenha um senso de humor bastante ácido). Até as músicas que acompanham a vida de cada protagonista dialogam no sentido de mostrarem que são pessoas que convivem com o niilismo e a falta de expectativas para um futuro melhor. Mas enfatizo: não se trata de uma trama autodestrutiva. Longe disso. Há, inclusive, quem consiga enxergar a película como uma grande comédia de humor negro.
No final das contas, o que sobra para os espectadores mais interessados no gênero paranóia, é uma interessante reflexão sobre o mundo caótico no qual estamos vivendo atualmente. Mais do que outros filmes mais famosos sobre o tema vício, como por exemplo Drugstore Cowboy, de Gus Van Sant e New Jack City - a gangue brutal, de Mario Van Peebles, o que percebo aqui é o resultado final de anos e anos de carências humanas substituídas por "curas milagrosas" (no caso, o ácido, o casamento e a procura de muletas existenciais - família, namoro, amigos, etc - para suprir uma falta de interesse em tomar as rédeas da própria vida.
Boab, Johnny e Coco, têm em sua gênese, um mesmo princípio ativo: o de empurrar suas vidas com a barriga, pois não tem coragem ou mesmo forças para buscar algo melhor. E o resultado disso é a eterna procura por paliativos e mecanismos de defesa que justifiquem suas inércias.
Nada mais século XXI do que isso, não é mesmo? (e olha que o filme é do século passado!).
P.S: após terminar este artigo, me lembro de que o cantor Michael Jackson no álbum History - past, present and future gravou uma canção com o mesmo título. Não há relação alguma entre ambos (embora Michael ao longo da sua carreira tivesse que conviver com muitos sanguessugas e "viciados" pelo poder).
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O Time dos Sonhos
4.2 1O time dos sonhos
(Memórias de um tempo em que basquete era espetáculo)
Era 1992 e em Barcelona, na Espanha, acontecia a XXV edição dos jogos olímpicos da era moderna. A pira fora acendida durante a cerimônia de abertura por um atleta que atirou uma flecha em chamas e, aqui no Brasil, houve uma polêmica discussão, pois muitos acreditavam que a flecha havia ultrapassado a pira (e que ela havia sido acendida eletronicamente). Porém, nada que afetasse o brilho do espetáculo.
E entre os muitos atletas que se destacaram nessa edição - e eu, por conseguinte, esperava por grandes novidades já que adorara a edição anterior, realizada quatro anos antes em Seul, na Coréia do Sul - houve um grupo de homens extraordinários que conseguiram, por um momento, me provar até mesmo que seriam capazes de voar (se quisessem de fato).
Refiro-me à seleção norte-americana masculina de basquete, que ficou eternizada como dream team (ou, em português, o "time dos sonhos"). Detalhe importante: era a primeira vez na história das olimpíadas que atletas profissionais, oriundos da NBA, podiam disputar a competição. Até então, somente jogadores amadores ou da liga universitária poderiam representar suas seleções. E teve quem visse essa articulação promovida pela FIBA (a federação que rege o esporte) como puro oportunismo, pois poderia levar o basquete made in USA a um patamar jamais igualado por qualquer outro país.
Polêmicas e dissensões à parte, eles chegaram e promoveram a maior revolução da história do basquete olímpico até hoje. E quem eram eles? Christian Laettner, David Robinson, Patrick Ewing, Larry Bird, Scottie Pippen, Michael Jordan, Karl Malone, Clyde Drexler, John Stockton, Chris Mullin, Charles Barkley e Magic Johnson. Só a estrutura criada para fazer a segurança da equipe já renderia um blockbuster de cinema na linha action movie. Eles não ficaram hospedados na vila olímpica, mas em quartos de hotel exclusivos e caríssimos. A desculpa dada na época pela delegação é que eles queriam evitar tragédias como a ocorrida nas olimpíadas de Munique em 1972, quando 11 atletas foram mortos num dos atentados terroristas mais famosos da história mundial (e para quem ficou curioso, procurem pelo filme Munique, do diretor Steven Spielberg, e sabiam mais detalhes).
Os EUA começam sua campanha rumo ao título e logo de cara deixam claro sua discrepância e talento em relação aos demais times. Abrem os trabalhos metendo um humilhante 116 x 48 em Angola, seguidos de um 103 x 70 na seleção da Croácia (que, pasmem, faria a final com os americanos!).
Completando a primeira fase, seguiram-se um 111 x 68 na Alemanha, 127 x 83 na seleção brasileira (e cabe aqui um breve aparte: eu me lembro até hoje do final desse jogo, quando as lendas americanas fizeram questão de cumprimentar nosso ídolo maior, Oscar Schmidt. Não é à toa que ele faz parte do Hall da fama do basquetebol!) e, finalmente, 122 x 81 na Espanha (que, naqueles tempos, ainda não tinha a força esportiva que tem atualmente).
Obs: nunca me esqueço de uma jogada específica - não me recordo exatamente em que partida ocorreu - em que Magic Johnson finge que vai enterrar a bola na cesta, joga-a para trás e eis que surge Michael Jordan "quase voando" e a enterra de forma devastadora, levando a plateia ao delírio. É uma das minhas lembranças eternas de todas as olimpíadas que assisti.
Na segunda fase da competição, os EUA mantém o ritmo avassalador e provam por a mais b que não havia outra seleção que se igualasse a eles. Na quartas, enfiam 115 x 77 em Porto Rico; na semifinal, emplacam um 127 x 76 na Lituânia (que contava com o gênio Sabonis em seu time) e repetem o massacre na Croácia (117 x 85 na finalíssima). Resultado: medalha de ouro mais do que garantida e merecida. E eu, claro, preso ao sofá da sala boquiaberto em todas as partidas.
Mais do que o resultado em si, assistir a esses homens jogando foi um espetáculo à parte, com direito a assistências eletrizantes, enterradas inesquecíveis, voos antológicos e um senso de organização e marcação descomunal. O técnico do time, Chuck Daly, chegou a afirmar no período que treinar aquela seleção era como "ter Elvis e Beatles juntos no palco". E ele realmente não estava exagerando!
Em poucas palavras (se é possível explicar algo assim): se você não viu a seleção de 1992 jogar porque não era nascido ou não curte basquete, não faz a menor ideia do que perdeu. Foi um momento único, que não se repetiu, embora a delegação americana tenha tentado, mandando grandes equipes nas olimpíadas de Atlanta, em 1996 e Sydney, em 2000. Porém, quando uma das equipes posteriores levou 100 pontos de um adversário na mesma partida, viu-se claramente que o encanto, a magia, havia se perdido de vez.
Ou seja: quem viu, viu; já quem não viu, só pode se contentar mesmo com vídeos antigos no you tube e no vimeo (o que, claro, nunca será a mesma coisa).
Até hoje, confesso, aguardo por uma nova geração tão brilhante quanto aquela de Barcelona. E me parece muito longe ainda o dia em que aquilo tudo se repetirá. Contudo, mesmo os jogos olímpicos, com o passar dos anos, ganharam uma outra conotação para mim (mais política, vamos dizer assim) e confesso que não vejo mais a competição com o mesmo prazer. O que é uma pena.
Mas mesmo assim, como é bom saber que eu fui testemunha ocular de tudo aquilo. Dá até vontade de gritar, berrar, pedindo para que aqueles dias nunca acabassem... Volta, Dream team! Volta! Pelo amor de Deus!!! O basquete nunca mais foi a mesma coisa.
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Strike a Pose
4.1 40A fama é passageira
(Strike a pose, de Ester Gould e Reijer Zwaan, é uma interessante reflexão sobre o legado da fama)
Eu nunca entendi - e provavelmente nunca entenderei - a fixação da humanidade com a fama. Sempre a considerei transitória, um estágio dentro da existência "de algumas pessoas", algo com prazo de validade definido. E qualquer pessoa que construa sua vida em torno dela sempre me pareceu, à primeira vista, um louco, um insano total. Digo isso porque faz parte disso que chamamos de vida os altos e baixos, os percalços. Do contrário, não aprenderemos nada em nossa passagem por esse plano.
Infelizmente esse primeiro parágrafo é o suficiente para que muitos adoradores desse meio por vezes mesquinho me vejam como um inimigo, um traidor ou um derrotado. Mas honestamente... Eles não me assustam mais. Na verdade, são dignos de pena isso sim.
E por que decidi falar sobre isso justo hoje? Porque o canal brasil (a cada dia me torno mais fã de sua programação!) passou essa semana na mostra In-Edit Brasil, dedicada à documentários musicais, o interessantíssimo e elucidativo Strike a pose - a vida após Madonna, dos diretores Ester Gould e Reijer Zwaan. E fez com que eu, mais do que nunca, prefira permanecer afastado do mundo das celebridades efêmeras.
Strike a pose nos traz a história - melhor dizendo: o reencontro após duas décadas e meia - de Luis Camacho, Jose Gutierrez, Kevin Alexander Stea, Salim Gauwloos, Carlton Wilburn, Oliver Crumes Jr. e Gabriel Trupin, todos eles membros da trupe de dança da cantora Madonna durante a turnê Blond Ambition em 1991 (que gerou também o documentário Na cama com Madonna, do diretor Alek Keshishian).
A turnê em questão é até hoje considerada o ponto alto da carreira da diva do pop e levou seus dançarinos a um patamar nunca antes visto. Eles eram tão exaltados no meio quanto a própria cantora. E até aí, nenhum problema nisso. Afinal de contas, eram artistas de uma extrema competência e habilidade. Contudo, no mundo do show business é preciso estar preparado para o dia seguinte (e acreditem: por mais que os artistas não queiram, ele sempre dá as caras).
A temporada com Madonna, e todos os luxos e privilégios possíveis e imagináveis, passa e o que vêm a seguir é o ostracismo e um hiato que se prolongou por praticamente toda a vida deles. E, para algumas pessoas que não entendem nada do ramo, parece chegar aquele momento em que eles, os dançarinos, precisam "ser gratos por tudo o que conquistaram e aceitar a derrota". Falar é fácil. Agora pergunte aos dançarinos.
Resultado: brigas nos bastidores, processos, o uso de drogas, a AIDS (que dizimou grande parte daquela geração), o fato de serem quase todos homossexuais num país que simplesmente os abominava - e abomina até hoje, a falta de perspectiva para prosseguir a carreira num meio tão competitivo como esse, enfim, as desilusões típicas de quem viu o paraíso de perto e agora não consegue um novo trabalho no setor. Ou em outras palavras: o sonho acabou, e agora? O que fazer a seguir?
A parte dos testemunhos dos dançarinos - menos o de Gabriel, já falecido - lembra em muitos aspectos o dos atores de Cidade de Deus - 10 anos depois, de Cavi Borges e Luciano Vidigal. Eles também viveram uma revolução do dia para a noite com o filme homônimo de Fernando Meirelles, que chegou a concorrer a quatro categorias no Oscar, mas logo a seguir precisaram conviver com a triste realidade de que, para muitos do elenco, não houve propostas posteriores de trabalho. E teve até gente que entrou para o mundo do crime. Detalhe: ainda por cima advogava contra eles o fato de não serem, naquela época, atores profissionais. O que dificulta ainda mais o processo.
E bem ou mal, a maioria dos dançarinos de Madonna tinha formação em balé, em dança clássica (salvo apenas um deles, cria do hip-hop).
Entretanto, isso não foi suficiente para mantê-los no palco. E olha que tentaram! E é justamente na frustração por não conseguir essa segunda chance que nos deparamos com uma interessante reflexão sobre o legado da fama e a confirmação da frase que já se tornou clichê no meio artístico: a fama é passageira. E vou além: ela, a fama, nunca foi sinônimo de carreira. Pena que muitos não consigam entender isso!
O documentário termina num tom de acerto de contas entre esses homens talentosos que tiveram de lutar duramente com a vida e apanharam muito. E o que se percebe é que eles, enfim, entenderam sua participação nessa indústria cultural. Eles tiveram o seu propósito, deram o seu melhor, atingirem o seu ápice e agora precisam sair de cena. Because the show must go on.
Enquanto os créditos finais são exibidos, fico me perguntando o que a cantora achou do filme. Ela não é totalmente exaltada no documentário e acredito piamente que seus produtores na época não gostaram nada de determinadas declarações dadas aqui. Eu realmente gostaria de saber qual a sua opinião sobre esse projeto.
Mas enfim... Não se realiza um filme com essa intenção sem, de alguma maneira, deixar pontas soltas. E isso também faz parte do show business.
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Festival Eurovision da Canção: A Saga de Sigrit e Lars
3.2 278Podem até me chamar de maluco, mas adorei isso aqui. Um dos poucos filmes que me pensar no quanto a indústria musical tem regredido nos últimos anos e perdido tempo com tantos artistas de plástico, que vivem apenas de imagem e propaganda enganosa.
Destacamento Blood
3.8 448 Assista AgoraIrmãos de alma
(com Destacamento Blood, Spike Lee não somente reconta a história passada dos EUA como expõe o quanto a chamada "grande nação" não passa de um país inventado e distorcido)
A guerra não termina simplesmente porque os fuzis pararam de disparar ou as tropas bateram em retirada. Nada disso. Ela continua na cabeça dos soldados que lá estiveram e nas mentiras contadas pelos governos que a financiaram. Clint Eastwood estava certíssimo em A conquista da honra quando um de seus personagens disse: "a guerra não passa de um negócio e se não formos arrecadar muito no menor tempo possível, é melhor que ela termine o quanto antes".
Em outras palavras: guerras existem para enriquecer nações tendenciosas e levar à morte àqueles que não se adequam ao sistema. Os homens negros, então, que o digam!. Qualquer outra coisa diferente disso (leia-se: patriotismo, dever cívico, etc) sempre me pareceu puro blá blá blá de quem gosta mesmo é de viver no mundo da lua.
Dito isto, peguemos o exemplo de Paul (Delroy Lindo, simplesmente extraordinário!), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis), Melvin (Isiah Whitlock Jr.) e Stormin' Norman (Chadwick Boseman). Juntos eles formavam, na Guerra do Vietnã, o destacamento Blood. Mais do que isso: foram testemunhas oculares do inferno que levou à grande cicatriz que aquilo se tornou dentro da sociedade americana (quem quiser que me desminta, mas sempre achei que o Vietnã foi a página que os EUA nunca conseguiu virar).
A guerra acabou - e vocês sabem muito bem quem levou a melhor -, Norman morreu em campo de batalha, mas antes disso o grupo escondeu um carregamento de ouro que seria usado como pagamento (e poderia ter levado ao fim da guerra ou, quem sabe, a uma espécie de trégua entre ambas as nações). Pausa para um grande fast forward... Cinco décadas depois os bloods sobreviventes decidem voltar às terras vietnamitas não somente para resgatar o ouro escondido, como também trazer de volta o corpo do amigo morto, a ser entregue aos seus familiares.
Parece fácil no papel, não é mesmo? Mas como eu disse no primeiro parágrafo: a guerra nunca termina assim.
O filme de Spike Lee é revisionista até o extremo e não somente isso: é um grande manifesto político sobre a história mal contada que o tio Sam adora narrar volta e meia para o resto do mundo.
Tirar o dinheiro do Vietnã é uma empreitada que envolverá uma série de dissabores, desavenças políticas e "homens de negócios" inescrupulosos sempre aptos a lucros fáceis e oportunistas. E não bastasse tudo isso esses cinco irmãos de alma - pois é nisso que a batalha os tornou, mesmo depois de tantos anos - ainda terão que contar com imprevistos os mais diversos, fora a própria relação entre eles, que em algum momento ficará estremecida.
Como pano de fundo o diretor faz aquilo que conhece de melhor (e que já havia feito em seu longa anterior, o também acusatório Infiltrado na Klan): o enche de homenagens, ironias e erratas as mais diversas. Atletas que a América preferiu varrer para debaixo do tapete, discursos antológicos de Angela Davis, Martin Luther King e Mohammad Ali, sobra até para o cinema brucutu de Sylvester Stallone e Chuck Norris (na visão dos personagens, heróis de "guerras imaginárias").
Enquanto isso, Marvin Gaye, gênio da Motown, dita o tom da trilha sonora e ela por si só já vale, a meu ver, meio filme. Se você não é fã de Marvin, convido-o a parar de ler essa crítica e se retirar daqui imediatamente. Você não merece ver esse filme. Mesmo.
Quase ia me esquecendo... Prestem atenção no monólogo de Paul na selva vietnamita. É devastador no sentido de apontar as falhas de inúmeros governos federais passados, com uma cutucada especial no atual presidente. A morte de George Floyd e todas as manifestações que se seguiram, acabaram por tornar o longa um artefato quase profético. E, além do mais, Ele, Paul, é desde o primeiro momento o elo fraco do pelotão. Aquele que pior lidou com a guerra, tanto que acabou por se tornar uma figura extremamente autodestrutiva. E o monólogo em questão, mais do que um simples desabafo, é de uma verdade avassaladora.
O longa termina depois de duas horas e meia de dor e reflexão. E ao fim dessa catarse o que temos é um novo acerto de Spike - mestre desde os tempos de Faça a coisa certa e Malcolm X -, que andou um período em baixa, realizando produções anos-luz de sua capacidade crítica. Quem conhece sua filmografia sabe que seu dedo acusador, expondo as eternas hipocrisias made in USA, é sua marca registrada. E aqui, assim como no filme anterior, ele encontrou espaço para brilhar.
E eu fiquei pensando ao fim: "e ainda tem gente que se voluntaria para participar de guerras".
P.S (eu preciso dizer isso): obrigado, Netflix! De novo. Só uma empresa como a de vocês para fazer frente à enxurrada de super-heróis e franquias que vem tornando o cinema americano bobo e vazio. Já estou à espera do próximo projeto foda.
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Maracaná
4.1 10O templo do futebol
(Maracanã completa 70 anos de existência sem perder a elegância)
Eu conheço gente que nunca entrou nele (sim, esse tipo de gente existe no Brasil!). Também conheço quem chorou das lágrimas descerem pelo rosto quando decidiram que a geral - palco mor dos verdadeiros torcedores: os descamisados - não ia mais existir. Era meu vizinho o dito cujo e ficou entristecido por semanas. E conheço também gente que não consegue imaginar a própria vida sem frequentar o estádio de tempos em tempos. Fez dele uma necessidade básica, como comer ou beber água.
Refiro-me ao Maracanã, templo máximo do nosso futebol, que ficou setentão sem perder a elegância, o charme, o garbo e a atitude. Embora algumas pessoas que o frequentaram nos áureos tempos reclamem de que a redução de assentos com o passar dos anos foi uma "injustiça com os verdadeiros admiradores do lugar". E eu concordo. Não gosto de ver o estádio associado apenas às elites. Ele se torna menor quando fazem isso com ele.
O Maracanã foi construído com a intenção de sediar a copa do mundo de 1950, E quando nos deparamos com essa notícia, mesmo aqueles que não viram a copa, que não eram nascidos naquela época, já sabem do que falo (e não é uma lembrança feliz). O maracanazo imposto pelo Uruguai e o seu 2x1 na final - aquele que demonizou para o resto da vida o goleiro Barbosa - até hoje nos atormenta. Há inclusive um curta-metragem com o ator Antônio Fagundes com o nome do goleiro que mostra um torcedor tão impactado com a derrota que decide construir uma máquina do tempo só para voltar ao dia do infortúnio e impedir a vitória da celeste azul. Procurem no porta curtas.
Entretanto o estádio não foi, logicamente, palco apenas de derrotas e lamúrias. Não, meus caros leitores! Há muito de bom a se lembrar neste lugar abençoado.
Por aqui passaram o Papa João Paulo II, o astro beatle Paul McCartney, o eterno "the voice" Frank Sinatra, a segunda edição do Rock in Rio em 1991 - por causa de uma rixa entre o então governador Leonel Brizola e o criador do evento, o empresário Roberto Medina, que levou à destruição da cidade do rock original de 1985 -, entre tantas outras estrelas. A criançada volta e meia dava as caras aqui por causa da visita do Papai Noel (que, aliás, era televisionada e tinha patrocínio do supermercados Sendas).
E eu me lembro também de certa ocasião em que fui com meu pai nos arredores do bairro (se não me engano ele foi buscar uma cesta de natal da empresa onde trabalhava), a duas quadras do Maraca, e vi um grupo enorme de engravatados passando correndo com sacas imensas de dinheiro às costas. Não entendemos nada do que estava acontecendo, até chegarmos em casa e nos depararmos com a notícia do culto realizado ali no estádio pelo Pastor Edir Macedo. Em outras palavras: nascia ali o império da Igreja Universal do Reino de Deus e todas as contradições que ele viria a trazer nos anos posteriores.
O alambrado caiu em 1992, ano do pentacampeonato do rubro-negro contra o Botafogo. Meu pai e alguns amigos estavam lá e minha mãe ficou superpreocupada. Eram tempos de Júnior de cabeça branca, o "vovô garoto" exibindo toda sua maestria. E também representou o fim de uma era para o clube. E como esquecer do gol de barriga de Renato Gaúcho no Fla-Flu que os flamenguistas não gostam de lembrar? Mas cá entre nós: metade do gol pertence ao lançamento do Aílton. Em 1994 Romário nos colocou na Copa - da qual saímos tetra - e esculhambou o Uruguai e o goleiro Siboldi (até hoje eu me lembro do nome dele. Coitado! Acho que ele nunca mais vai esquecer desse dia).
São tantas histórias e lógico que eu poderia fazer deste humilde artigo um livro, se eu quisesse. Mas eles já existem (isso mesmo: no plural). E deixo aqui duas dicas para fanáticos, pelo estádio e também por futebol: Maracanã - meio século de paixão, de João Máximo e Maracanã 70, de Eduardo Bueno e outras feras. E mais: duvido que os mais apaixonados pelo tema não se emocionem página a página!
Para a nossa felicidade recente - falo mais especificamente da minha geração - o 7x1 da Alemanha não foi aqui (seria um segundo golpe devastador para o estádio). Menos mal. Contudo, é bom saber que o lugar resistiu bem às suas dores, soube conviver com elas. Mais que isso: soube se vender por suas glórias eternas. De triste mesmo só o fato de estar comemorando uma data tão importante em meio à pandemia de Covid-19. Ele realmente não merecia isso!
E que venham os 80, os 90, o centenário e muito mais. Pois os torcedores brasileiros merecem. Valeu, Maraca!
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Tubarão
3.7 1,2K Assista AgoraO primeiro blockbuster da história
(45 anos de Tubarão, de Steven Spielberg)
O cinema hollywoodiano é famoso pelos fenômenos de bilheteria que cria de tempos em tempos. E honestamente: não fosse assim, muito provavelmente a grande maioria do público - que de cada dez assiste a, pelo menos, sete filmes made in USA - já teria abandonado as salas de projeção. A esses fenômenos notórios, hoje em dia, dá-se o nome de blockbusters. Contudo, muitos não sabem mas tudo isso começou de fato com o mestre Steven Spielberg e seu clássico das matinês Tubarão.
A criatura marítima devastadora continua aumentando sua legião de fãs toda vez que sua película é reexibida, seja nos canais de televisão, seja nos serviços de streaming. E mais: não conheço até hoje outro filme sobre o tema que tenha gerado tanta discussão ou admiração quanto este.
Por que estou falando disso? porque Tubarão, de Steven Spielberg, completou 45 anos de existência no último dia 20 de junho, e continua com toda pompa, garbo e mandíbulas, idolatrado como um dos maiores vilões da história da sétima arte (ao lado de Norman Bates, Darth Vader, Hannibal Lecter, e outras feras da maldade).
A história, todo cinéfilo fanático conhece de cor e salteado: na cidade de Amity, um tubarão ataca banhistas em plena alta temporada do verão norte-americano, causando problemas para o policial Martin Brody (eternizado nas telas pelo ator Roy Scheider). As autoridades não querem fechar as praias e arcar com o prejuízo que será causado caso os banhistas vão embora e, sabendo do impasse para lidar com a situação, decidem encontrar alguém que mate o bicho. Já o agente policial prefere chamar um especialista em oceanografia, Matt Hooper (Richard Dreyfuss), que corrobora sua visão de que as praias devem ser fechadas, o que cria um duelo de forças entre prefeito e polícia.
E como não podia deixar de ser, é claro, o animal leva o caos e o medo à cidade com muita matança desmedida e corpos estraçalhados.
Detalhe: a cidade de Amity é fictícia e inspirada em Martha's Vineyard, rota turística dos ricaços e celebridades. Seria a referência uma cutucada, uma espécie de crítica social? Há quem debata o tema em certos fóruns sobre cinema na internet.
Uma das curiosidades até hoje mais interessantes sobre a película trata-se do tubarão animatrônico construído para interpretar o "personagem principal" (e que se recusou a trabalhar na maior parte das gravações, sempre afundando ou dando defeito na hora H). O diretor ficava tão puto que chegou a apelidá-lo de Bruce, nome de seu advogado. São tantas as histórias e lendas urbanas acerca do bicho mecânico criado - o próprio Spielberg já chegou a dizer em entrevista que "jamais faria uma continuação do filme ou mesmo o refaria hoje, tamanho foi o trabalho que deu lidar com aquilo tudo" - que eu confesso que gostaria de ver um documentário sobre o tema.
E para aqueles que já estão pensando em me chamar de louco, vocês não fazem ideia da quantidade de coisas loucas e às vezes inverossímeis que eu já vi em forma de documentário feito nos Estados Unidos!
Tubarão é o primeiro filme da história de hollywood (de que se tem notícia, pelo menos) a gerar filas quilométricas nas portas dos cinemas. Isso que hoje vemos com a maior naturalidade com filmes como Titanic e o Batman dirigido por Tim Burton (eu lembro de ficar praticamente três sessões em pé na porta do cinema esperando a fila andar até que a sessão em que eu comprei ingresso começasse!) teve seu pontapé inicial com o longa de Spielberg. Em outras palavras: ele abriu vários precedentes para a indústria de cinema norte-americano.
E fica aqui um breve aparte nesse sentido: o longa foi lançado no meio do ano, um período de vacas magras para o cinema, pois as pessoas preferiam outro tipo de programação nessa época, um período muito quente. Contudo, ele não só quebrou com todas as expectativas como também deu início a uma expressão muito em voga em hollywood atualmente (o chamado "verão norte-americano", quando grandes estreias são prometidas para o público). Em suma: não fosse o tubarão spielberguiano provavelmente a Marvel e a DC procurariam um outro período do ano para lançar suas produções. Toda a indústria como a conhecemos hoje começou basicamente aqui.
E ao contrário do que muita gente pensa ("blockbuster só serve para fazer bilheteria; prêmios que é bom... nunca leva) o filme também chegou a cerimônia do Oscar. Indicado a quatro categorias, só não levou a de melhor filme (esta quem levou foi o reflexivo Um estranho no ninho, de Milos Forman), tendo faturado melhor edição, som e trilha sonora (a icônica música do também mestre John Williams). Foi um sucesso reconhecido pela academia, sim senhor!
Recentemente, vasculhando em sites sobre cinema, descubro duas informações curiosas: a primeira diz que Tubarão tinha como plano original se tornar um seriado, trazendo sempre atores famosos convidados para serem devorados pelo bicho a cada episódio (honestamente... eu veria a série hoje, agora, cheio de curiosidade). E a segunda, ainda mais interessante, é a de que o diretor Michael Winner, do lendário Desejo de matar, thriller policial com o eterno action hero Charles Bronson, foi convidado para assumir o projeto antes de Spielberg e o recusou. Na mesma hora que li a notícia meu cérebro começou a fervilhar de ideias, tentando imaginar o que seria esse filme.
Para encerrar minha exposição (ou seria um texto-homenagem?) aqui, uma informação pessoal: considero Tubarão o melhor exemplo de uma adaptação cinematográfica em que o filme é infinitamente superior à obra original. Digo isso porque sempre achei o livro do escritor Peter Benchley um saco. Arrastado e melancólico até o final. O que Spielberg conseguiu fazer aqui, tirando leite de pedra, é digno dos maiores mestres do cinema norte-americano. Quem não leu a obra literária, procure e depois volte aqui para me dizer se não estou com razão.
E ainda tem gente que chama o cara de "diretor infantil". Fala sério!
P.S (esse texto tinha que ter, de qualquer jeito): nunca me esqueço de minha dizendo, quando foi ver o longa nos cinemas em 1975, que ela quase saiu correndo do Metro Copacabana com as amigas dos correios - onde trabalhava - quando o tubarão abriu a bocarra para pegar o policial Brody. Ela me disse: "era tão assustador, tão real! Nunca tinha visto nada igual até então". É... A criatura continua assustadora até hoje.
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Luta Por Justiça
4.2 250 Assista AgoraCulpado desde o nascimento
(Luta por justiça, de Destin Daniel Cretton, expõe a nu a face mais obscura dos EUA: o racismo).
Será que algum dia a humanidade tomará vergonha na cara e romperá definitivamente com a crueldade que conhecemos como racismo? Vejam o que está acontecendo nos EUA - exemplo mor do preconceito racial no mundo contemporâneo - por conta do assassinato brutal de George Floyd em Minneapolis. Pior: vendem, através do governo federal, a pecha de serem uma nação sem problemas, a qual as outras nações (a nossa, inclusive) querem copiar como modelo de retidão e ética. Malditos demagogos!
E em tempos de manifestações ao redor da terra do tio Sam e também em outros países ao redor do mundo (sim, pois racismo não é exclusividade da terra de Lincoln, Kennedy, Bush e Trump) há opções cinematográficas para discursar sobre o tema aos montes. E uma extremamente interessante é Luta por justiça, do diretor Destin Daniel Cretton.
O filme de Destin nos traz a história do primeiro homem a reverter uma condenação ao corredor da morte em toda a história jurídica dos EUA. Seu nome: Walter McMillan (Jamie Foxx, em atuação inebriante). O típico caso do homem escolhido por um sistema corrupto para ser o "homem certo na cena do crime exata". E esse mesmo sistema o condena à pena de morte pelo assassinato de Rhonda Morrison, que para os autos da justiça interessa apenas como "moça branca de família".
Quando ele é parado no meio da estrada pelo xerife Tate (Michael Harding) já sabe de antemão o que aquilo significa. Afinal de contas, na América ele pertence a "etnia errada". E por conta disso recebe sua condenação antes mesmo do julgamento acontecer. O que ele não sabe é que foi acusado através de uma trama sórdida que envolve não somente inúmeros interesses escusos, como também uma confissão forjada por um outro presidiário (ele, por sua vez, também ameaçado por esse mesmo sistema).
E ninguém quer meter a mão nessa cumbuca para defendê-lo. Até então. E digo até então pois eis que aparece na cidade de Monroe para elucidar o caso o jovem Bryan Stevenson (Michael B. Jordan, mais conhecido aqui no Brasil por seu personagem na franquia Creed), um jovem advogado idealista, formado em Harvard, e disposto a corrigir esse grave delito. Breve observação: o fato do diretor citar de forma direta e insistente a cidade de Monroe - onde a escritora Harper Lee escreveu o extraordinário romance O sol é para todos - é um aviso ao espectador, quase um prenúncio de que a barra vai pesar para o lado do advogado. Leiam o livro e tirem suas próprias conclusões para entender do que eu estou falando.
E acreditem: ela pesa. De todos os lados. Ninguém quer se envolver nessa história, sob pena de acabar pagando o pato também. Todos querem uma solução fácil, que atenda às necessidades dos moradores brancos do local. A única que acompanha a saga de Bryan - além da família, é claro! - é a jovem assistente dele, Eva Ansley (Brie Larson), que não escapa também de ameaças, bem como sua família.
O que Bryan precisa entender rápido nessa cidade é que não importa o fato de ele ser um advogado formado numa instituição de renome. Ele poderia ser médico, arquiteto, engenheiro... Fosse qual fosse a sua profissão, ainda assim aqueles que querem o caso resolvido como está, só conseguem enxergar a cor da sua pele. E nada mais. Logo, ele receberá o mesmo tratamento que qualquer criminoso.
No meu entender a frase que rege toda a trama, que dá significado à história, é aquela em que o protagonista diz ao seu advogado que, não importa o quanto ele lute, ele já "nasceu culpado". Walter entende perfeitamente o que significa nascer negro num país como os Estados Unidos.
O mais revoltante? Saber que depois de tanta escravidão, tanta luta, tanto sofrimento, nada mudou nessa terra que vive de vender hipocrisias como oportunidades para os outros. Luta por justiça é um longa que flerta bem com filmes de temática negra lançados nos últimos anos. Falo de Corra!, de Jordan Peele; 12 anos de escravidão, de Steve McQueen; Selma, de Ava DuVernay e O nascimento de uma nação, de Nate Parker, entre outros. Vejo todos esses filmes como uma espécie de cartografia da resistência aos mandos e desmandos de um país que se recusa a aceitar quem é diferente (mentalidade essa que nem mesmo o governo Obama conseguiu mudar).
E dessa catarse covarde, injusta, que sequer mostra sinais de mudança no ar (seja nos EUA, seja no restante do mundo) o que podemos perceber na prática é o quanto continuamos adoecendo como sociedade mundial por simplesmente não querermos uma mudança de postura, pois a manutenção da covardia a priori parece ter mais valor.
E enquanto isso persistir outros McMillans e Floyds e Luther Kings e Malcolm Xs continuarão perdendo suas vidas, sejam morrendo ou trancafiados em celas, ad aeternum...
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Eu Te Amo
3.4 75Post mortem
(Eu te amo, de Arnaldo Jabor, é uma alegoria ácida sobre o desânimo e a inércia de uma geração)
"Se você acha que está difícil agora, imagina naquela época!".
A frase, que ouvi de longe proferida por um senhor de mais 80 anos num barzinho aqui perto de casa, era uma resposta dada a um grupo de adolescentes alienados que defendiam a relevância de regimes totalitários e repressores. E os jovens, sem resposta, calaram-se (um silêncio, diria, perturbador).
No mesmo dia que ouço essa frase, muito bem colocada por sinal, o Canal Brasil reexibe na madrugada o sempre interessante Eu te amo, de Arnaldo Jabor (lançado em 1981). E o sentimento que percebo ao fim da exibição é o mesmo: o de estarmos vivendo numa letargia, sem vistas a algo melhor no futuro.
Conheço muito moralista de plantão - de hoje e daquela época - que rotula este filme de "uma reles pornochanchada". Só posso lhes dizer: "assiste de novo, então! vocês não entenderam nada!"
Eu te amo conta a história de Paulo (Paulo César Pereiro, ator praticamente onipresente daquele período do cinema nacional), um empresário falido que apostou todas as suas fichas num empreendimento que não deu em nada e ainda por cima foi largado pela mulher, a médica Bárbara (Vera Fischer) e a sensual Maria (Sônia Braga) que não consegue fazer o grande amor de sua vida, o piloto Ulisses (Tarcísio Meira), abandonar a esposa. Exauridos pelas respectivas derrotas se encontram na cidade e trocam telefones. Paulo decide ligar para Maria - que se esconde sob a alcunha de Mônica, e diz ser garota de programa - e pede que ela venha até seu apartamento, o único patrimônio que lhe restou.
Paulo é praticamente um agorafóbico, quase não sai de casa e não se cansa de assistir os vídeos que gravou de sua ex-mulher. É um homem frustrado, arruinado pela vida e pelo que o Brasil se tornou durante o período militar. Já Maria/Mônica é uma submissa de carteirinha, não tem voz ativa para lutar pelo que quer e nunca conseguiu viver de outra maneira que não fosse à sombra do amante.
Quando suas vidas se esbarram eles meio que pressentem que precisam ser um a muleta do outro. Vivem numa espécie de post mortem (e por mais estranho que pareça aos leitores a minha escolha por esse termo, é dessa forma que vejo as suas existências: são pessoas destruídas, devastadas por uma era de violência e repressão que deixou sequelas nunca apagadas - até hoje, pleno século XXI). Empurram a vida com a barriga e fingem esperar por dias melhores, mas na prática o que se percebe é um inconformismo latente, um sentimento de que a verdade não existe mais, uma vontade de desistir de tudo, mas cadê coragem?
E como consequência dessa inércia ludibriam a vida (ou a rotina, como preferirem) do jeito que podem: tentam entender as razões do outro, transam sempre que podem, brincam, debocham do país, do sistema, de suas próprias vidas ilógicas. E quando raramente falam sério, vê-se claramente o ódio e o ressentimento acumulado por anos. Um retrato ácido sobre a contraditoriedade que reina nesse país desde que eu me entendo por gente.
Quando o desfecho bem humorado, à la musical da Broadway, dá as caras o que percebo é estar diante de uma grande alegoria sobre o desânimo que se abateu por toda uma geração que apostou suas fichas numa revolução que não veio, não passou de autoritarismo e da eterna mania que os seres humanos têm de acreditar nas piores coisas, desde que elas sejam baseadas "na moral e nos bons costumes".
E nesse sentido é impressionante ver que mesmo após quase quatro décadas o longa não só não envelheceu um segundo sequer, como permanece extremamente relevante para entendermos no que o país acabou se transformando com o passar do tempo: uma nação algemada à falsos ideais e correções políticas.
Grande Jabor. Por onde andas, meu caro, que não tenho te visto? O cinema brasileiro anda carente de boas ideias e desabafos. Como os seus.
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Os Miseráveis
4.0 161Ervas daninhas
(Os miseráveis, de Ladj Ly ou "uma nação não se faz só de conquistas e realizações, não importa se ela pertence ao G8 ou não")
Às vezes eu gostaria, confesso, de ter a ingenuidade daqueles que acreditam piamente que competições como a Copa do Mundo e as Olimpíadas são capazes de melhorar os países que as sediaram. Infelizmente, a realidade (sempre triste, no final das contas) é bem outra. O que vemos é um país normalmente inventado para atender as necessidades de um grupo de capitalistas que não dão a mínima para nação nenhuma. Só querem mesmo saber é de show business e acumular contas bancárias fantasmas em paraísos fiscais.
Termino hoje de assistir o interessante Os miseráveis, do diretor Ladj Ly - indicado ao Oscar de filme internacional esse ano - e, ao final dos créditos, penso sozinho sentado no sofá da sala: "É... o mundo sempre consegue piorar, por mais que tentemos consertá-lo ou curá-lo das adversidades".
O filme - que não tem uma relação direta com o romance seminal homônimo do escritor Victor Hugo - é uma grande crônica sobre a estereotipia racial que habita a França nesse século XXI. E achei inteligente da parte do diretor abrir sua película com o dia da final da copa do mundo da Rússia, em 2018, quando a seleção dos azuis (os Le Bleu) venceram a Croácia na final. Digo isso, porque se trata da França que o governo e os tabloides querem que você conheça: a França vencedora, irretocável, sem defeitos, o melhor país do mundo para se viver.
Mas como disse lá no meio do primeiro parágrafo: a realidade (triste) é bem outra. E logo nos deparamos com um caldeirão cultural e ideológico dos mais fortes. Tenho a sensação, a cada fotograma mostrado, de estar diante de indivíduos sentados em cima de galões de gasolina, aptos a explodir a qualquer momento. E acreditem: eles explodirão à menor fissura.
A matéria prima humana vista aqui em nada difere daquela que os cinéfilos já conhecem de cor e salteado quando o assunto em pauta são os imigrantes (e muitas vezes eles se apresentam afrontosamente como mais cidadãos e éticos do que aqueles nascidos no país). Já vi muito dessa postura ofensiva em longas como Kids, de Larry Clark e Paranoid Park, de Gus Van Sant (e eu sei o que vocês vão dizer: "mas nesses filmes eles não eram imigrantes? Mas o contexto, no final das contas, é o mesmo!). Porém, há um adendo aqui: o sentimento legítimo de que essas pessoas não aguentam mais ser escravas de um regime capitalista e uma sistema de ideias que não as enxerga como parte da solução, mas do problema.
Os jovens Issa (Issa Perica), que rouba um filhote de leão do circo, causando uma quizila entre ciganos e senegaleses, e Buzz (Al-Hassan Ly), que com seu drone intrusivo invade privacidades alheias; o truculento Le Maire (Steve Tientcheu), espécie de manda-chuva da região, aquele que decide quem faz o que, quando, onde e como; o trio de policiais que faz a ronda na área, mas está mais interessado mesmo é em explorar a boa fé alheia, pois se escondem atrás do distintivo da corporação e suas leis distorcidas; o religioso, mas misterioso Salah (Almamy Kanouté), que se esconde em seu restaurante e em sua fé contraditória, mas sabe bem tudo o que se passa na área e é sempre procurado para opinar sobre certas questões espinhosas, entre outras figuras, têm algo em comum: são ervas daninhas.
Não. É isso mesmo que vocês leram: tratam-se de ervas daninhas, pois estão ali - na visão dos verdadeiros e conservadores franceses - para estragar toda a pureza e a dignidade que o país conquistou a duras penas da Revolução Francesa para cá. Eles são, para os nascidos na terra, os ingratos, os que deveriam voltar para sua terra natal e "deixar os cidadãos de bem em paz". (Sim, pois não é somente nos EUA que essa xenofobia acontece, não!).
Quando o final se aproxima, as rivalidades não conseguem ser arrefecidas e o nível de tensão aumenta, num crescendo assustador (pois, cá entre nós, é meramente impossível que um barril de pólvora desses não acabe em revolução ou guerra civil, para dizer o mínimo) o que nossos olhos vislumbram é algo que nossa sociedade já conhece e não aguenta mais rever: o desespero, a fúria, o direito a não permanecer mais calado diante de tanta injustiça. O que eles, os jovens, a nova geração, querem é respeito. E lutar pelo que acreditam. Quando isso não é possível, pois o Estado quer vê-los sempre como subservientes, bum! o caos se instaura.
Vi em alguns sites comentários que diziam que o diretor havia se inspirado em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, para realizar tal desfecho. E a referência se faz presente, não pela exatidão, mas pela intenção de promover uma reflexão forte.
Moral da história (se é possível uma moral nesse caso obscuro): o século XXI vê a promessa do capitalismo como solução para todos os problemas se dissolver de forma amarga e o que sobrou é um sentimento dúbio de impotência e hipocrisia. As nações do G8 - grupo do qual a França faz parte - querem se vender para o mundo através de suas conquistas e realizações, mas na prática o que vemos é preconceito e um abismo econômico e cultural atroz. Procurem saber sobre os refugiados que vagam pelo mundo e me corrijam se eu estiver errado.
E só me resta gritar : pobres de nós, habitantes desse mundo controverso!
P.S (eu vou me arrepender de ter escrito essa crítica se não falar isso): alguns jornais e tabloides disseram que o filme A vida invisível, de Karim Ainouz, perdeu a vaga no Oscar de melhor filme internacional na reta final para este filme por conta de uma distribuição melhor do longa francês. Caso isso seja verdade, espero que nossa sétima arte - quando todo esse clima ruim atual passar - aprenda a se vender melhor no exterior, pois a película de Karim é infinitamente superior a esta aqui em narrativa. Ou seja: continuamos sendo os vira-latas para a indústria cinematográfica americana, o que é uma pena.
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Pink Floyd - Pulse
4.8 80Não é só música, não senhor!
(Pulse, de Pink Floyd, é uma despedida de luxo, mas também um evento único, desses que dificilmente se repete na vida)
Eu e as minhas viagens interiores que só a música é capaz de proporcionar...
Podem me chamar de louco quem quiser, mas eu sempre imaginei a banda Pink Floyd como uma grande experiência sensorial. Dizer que eles são só rock é não entender (a meu ver, pelo menos) o que é realmente a banda.
Detalhe: toda vez que eu reassisto filmes de ficção-científica antigos, como Laranja mecânica, THX 1138, Fahrenheit 451, Blade Runner: o caçador de androides, dentre outros, eu fico pensando que eles seriam o grupo ideal para realizar a trilha sonora da película. Ouvir Pink Floyd, para mim, é como ouvir um grande cântico, com viés reflexivo.
Pois bem: em tempos de quarentena (e esse vem virando um mantra que acompanha meus últimos tempos), me deparo com a presença do show Pulse -de 1995 - dando sopa 0800 no youtube e decido, é claro!, me sentar para apreciar a apresentação.
E que apresentação!
Pulse é a despedida do Pink Floyd dos palcos e está chegando à sua bodas de prata, sem envelhecer um ano sequer. Trata-se de uma das experiências sonoras mais inebriantes que eu (re)assisti nos últimos anos.
E isso graças a uma conjunção de fatores: para começar, a guitarra mágica e sempre bem-vinda de David Gilmour, afiadíssimo em todos os sentidos. O trio de backing vocals, Sam Brown, Claudia Fontaine e Durga McBroom, me deixou imaginando o que eu poderia esperar de um álbum solo das três, caso este álbum um dia existisse. Que vozes! Como complemento de luxo aos solos de Gilmour os teclados não menos magistrais de Jon Carin. O resultado dessa tríade, mais baixista, saxofonista, etc? Uma viagem pelo mundo mágico de uma das bandas mais originais que já passaram pelo mercado fonográfico até hoje.
E olha que quase me esqueço de falar da puxada de orelha que os caras deram na classe política com "brain damage" - sim, os caras alfinetam o errado também quando querem e do final apoteótico, deixando o público enlouquecido, com a dobradinha "wish you were here" e "confortably numb"!
Eu lembro de, décadas atrás, me deparar com esse álbum moscando num saldão das Lojas Americanas no centro da cidade e esnobá-lo, acreditando: "se ninguém quer isso, não deve ser grande coisa!". Queimei a língua. Também eu tinha meus 19 anos... E como todo adolescente que se preze, minha formação (ainda deficitária) incluía péssimos julgamentos e escolhas.
Valeu a pena dar uma segunda chance ao show cinco anos depois e agora, de novo.
Vivendo num mundo tão carente de boas ideias como esse contemporâneo, qualquer experiência válida merece ser vista, revista e comentada. Pois bem: vi, revi e agora comentei. Agora é com vocês. Dêem uma chance! E se você já conhece, está esperando o quê para ver de novo?
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Sexta-Feira 13
3.4 779 Assista AgoraJason, o maior slasher de hollywood
(40 anos de Sexta-feira 13, um marco do terror no cinema)
Os anos 1980 eram foda! E quem não os viveu, nunca irá entender isso completamente. Apenas imaginará e nada mais.
Minha televisão foi refém de meu delírio paranoico adolescente nessa década por conta das sessões de madrugada nos fins de semana (mais especificamente de sexta para sábado e de sábado para domingo, pois este que vos escreve não precisava acordar cedo no dia seguinte para ir à escola). Duas emissoras de tv dividiam minha atenção: o SBT - muito por conta da famigerada Sessão das Dez, que nunca começava às dez da noite e sim depois de meia-noite - e a Globo (leia-se: Corujão, Sessão de Gala, etc). E parte do atrativo gerado por essa faixa de horário relacionava-se diretamente com os filmes de terror.
E sendo ainda mais específico: os chamados slashers (em outras palavras: Freddy Krueger, Michael Meyers e, claro, Jason Voorhees).
Pois bem: eis que o filme que tornou Jason famoso, o hoje cult Sexta-feira 13, completou no último dia 9 de maio 40 anos de existência. O tempo passou, a franquia Jason ganhou nove continuações, um derivado (no qual enfrenta Freddy), uma série de tv, um remake, e ele continua vivo na mente fértil de adolescentes os mais diversos ao redor do mundo. E com toda justiça, é bom que se diga...
Detalhe: no longa de estreia não é nem ele o responsável pelos assassinatos que movem a trama, e sim sua mãe (interpretada pela atriz Betsy Palmer). A matança irrefreável de Jason - que é trabalhado por seu diretor, Sean S. Cunningham, sob a ótica do "whodunnit", em que os assassinatos são cometidos em primeira pessoa e nunca vemos o rosto do vilão - só viria a acontecer de fato nos longas posteriores. Ou seja: sua fama é anterior aos próprios crimes cometidos.
A produção, que custou míseros 550 mil doláres e arrecadou mais de 40 milhões, se pensou como negócio lucrativo desde o início. E mais: a Paramount, que faturou o título do longa - antes mesmo de existir um roteiro - num leilão, queria que o diretor bebesse na fonte de Halloween: a noite do terror, de John Carpenter, lançado dois anos antes. Ou seja: não se pensavam em inovações, mas em investir no certo, no que gerava receita.
E não é que Sexta-feira 13 superou sua referência e seu design de produção primário e se tornou um fenômeno global do gênero horror até hoje? A crítica especializada, logicamente, detonou o longa, acusando-o inclusive de misoginia, por conta da violência praticada contra as mulheres na história. Desavenças à parte, o filme de Sean não era mesmo feito para eles, mas sim para adolescentes à procura de aventuras (como as praticadas no acampamento em Cristal Lake) e, claro, sustos e mais sustos.
Aliás, Cristal Lake (assim como Amity, em Tubarão) virou referência de cinéfilos e pesquisadores da sétima arte, ponto turístico a ser passado de geração em geração.
Uma pena que com o passar dos anos - só na década de 1980 foram realizados oito filmes da franquia - o personagem tenha perdido o fôlego e virado meio que "veneno de bilheteria".
Digo isso porque há em curso um novo reboot do personagem, envolvendo entre os produtores até o jogador de basquete da NBA LeBron James, que não anda nem desanda faz tempo, bem como uma novo seriado televisivo, que está completamente parado. Dizer que se encontra "em pré-produção" seria até um elogio. Não, está engavetado mesmo.
Talvez os EUA venham enfrentando nas últimas décadas vilões tão aterradores, como os do terrorismo internacional, o Oriente Médio, etc, que Jason tenha virado peixe pequeno em suas intenções culturais ou de entretenimento. Vai saber. O que importa mesmo agora para hollywood são heróis e personagens estereotipados ao extremo.
Já para os fãs originais sempre haverá um lugarzinho especial guardado para esse grande assassino da sétima arte, responsável por muitas mutilações, facadas, flechadas, decapitações, machadadas e o que mais os fãs pudessem imaginar de tenebroso.
P.S: no atual momento puritano em que vivemos no mundo vai ter muito conservador babaca dizendo, após ler este texto, "ainda bem que não fizeram mais nada dele; as famílias de bem agradecem". Honestamente... Acompanhei a franquia durante anos, ainda revejo os filmes quando posso, e nunca me tornei um assassino, uma pessoa do mal. Não acredito que filmes transformem pessoas em seres piores.
P.S 2: eu sempre quis conhecer pessoalmente o ator que interpretou Jason Voorhees no cinema. Mais: queria ver o rosto dele. Sem maquiagem. Eu sei o que vocês vão dizer, mas eu avisei lá no segundo parágrafo que eu era paranoico, não avisei?
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Ema
3.5 80 Assista AgoraManipuladora
(Ema, de Pablo Larraín, é uma interessante reflexão sobre mulheres empoderadas e a dificuldade de lidarmos com escolhas infelizes feitas ao longo da vida)
Nunca imaginei que fosse me deparar com tanta coisa boa em termos de entretenimento, sem nem ao menos precisar sair de casa para isso... O que não faz uma epidemia!
Antes de qualquer outra coisa que se diga ao longo dessa crítica, é preciso agradecer ao site Mubi, por também disponibilizar conteúdo audiovisual gratuito durante a quarentena da covid-19. Os cinéfilos mais apaixonados agradecem!
Agora vamos aos fatos: conheço muitas feministas e mulheres empoderadas que vão se identificar - e muito! - com Ema, filme mais recente de Pablo Larraín (dos ótimos No e O clube). E por um motivo óbvio: a protagonista é forte, não leva desaforo pra casa e muito menos desiste do que quer (mesmo quando aquilo que ela quer contraria as regras do que conhecemos como ética ou senso comum). E em tempos tão inescrupulosos como esses em que vivemos no século XXI, isso não é pouca coisa, não.
Ema (a exótica Mariana Di Girolamo) é uma mulher que chegou aquele ponto da vida em que o mais sensato a fazer seria tirar o time de campo e aceitar a derrota de forma digna pelos delitos que cometeu. Uma tragédia fez com que ela perdesse a guarda do seu filho adotivo, bem como arruinou o seu casamento pra lá de complexo com o tempestuoso Gaston (Gael García Bernal). O único resquício de humanidade que lhe resta é a paixão pela dança. E ela a exercita de forma digna, quase aflita, como quem se agarra a um cilindro de oxigênio.
Porém, ela decide não entregar os pontos e ir à luta, mesmo que para isso ela precise enfrentar essa jornada sozinha. Até mesmo a assistente social que cuida de seu caso já a alertou para os problemas que ela causará, caso insista em recuperar o filho. Mas ela, Ema, não vê razões realmente lúcidas para ouvir quem quer que seja.
Resultado: trama um plano sórdido que faça com que ela se aproxime novamente da criança, enquanto vive diariamente o seu estilo "living la vida loca" de ser. E digo mais: acredito piamente que mulheres como ela, insubordinadas, indomáveis, são aquelas que vêm ganhando o rótulo de avant-garde nos últimos anos. Em outras palavras: Ema é pura ousadia em forma de mulher e se orgulha disso. Mesmo.
Vi na sua persona quase indestrutível, confesso, um pouco da Erin Brockovich que Julia Roberts interpretou no filme homônimo do diretor Steven Soderbegh. E quando digo "vi um pouco", refiro-me à postura "eu vou vencer essa parada custe o que custar, e ninguém conseguirá me impedir por mais que tente". Só falta, em seu desejo de dar a volta por cima a qualquer preço, ela se transformar numa mulher-bomba e explodir tudo ao seu redor. De resto, ela simplesmente ultrapassou todos os limites do bom senso.
Embora não curta o gênero escolhido na trilha sonora (o reggaeton nunca fez o meu estilo), é de fácil compreensão a escolha dele para compor essa personagem turbulenta e decidida que Ema transpassa durante toda a projeção. E vejo essa música funcionando quase como um ruído. Tudo ao redor da protagonista vende essa ideia ruidosa, como se fossem paredes tentando sufocá-la, mantê-la presa de qualquer jeito. No entanto, é praticamente impossível colocar freios numa mulher como essa.
E como consequência de toda essa paranoia em forma de narrativa cinematográfica o que temos no final das contas é uma interessante reflexão sobre a mulher nesse século cheio de dúvidas e nenhuma resposta à vista. Mas uma mulher extremamente manipuladora, que não entende minimamente a dificuldade de lidar com a própria vida e com as escolhas infelizes que cometeu no passado.
Perdida, ela apela para o baixo nível - algo que anda muito em voga no mundo contemporâneo - e passará por cima de qualquer um como um rolo compressor, toda vez que o sistema ou a sociedade ousarem desafiá-la.
P.S: uma pena que o longa seja mais um exemplo, dentre tantos que já resenhei por aqui, do tipo de cinema que não vem interessando aos nossos cinemas, mais afeitos à comédias bobocas, franquias sem sentido e heróis estereotipados. Ainda bem que o streaming e sites como o Mubi existem para suprir a carência dos espectadores mais corajosos, que buscam fugir do tédio e da mesmice promovida pelos blockbusters.
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Sérgio
3.2 222O Sr. conserta tudo
(Sérgio, de Greg Barker, é a biografia sobre um homem que escolheu enfrentar um mundo consumido pelo poder e a eterna mania de fazer guerras)
É difícil ser mediador num mundo onde a sociedade decidiu se apaixonar por conflitos, guerras, terrorismo e a eterna ânsia pelo poder. À primeira vista, a sensação que me fica, é a de que essas pessoas se limitam a aceitar a derrota, pois não há quem consiga detê-los (e quando digo eles, refiro-me aos donos do poder, que não se cansam de tramar suas artimanhas, que por sua vez só fazem mesmo é piorar o mundo cada vez mais).
Contudo, existem aqueles que aceitaram o desafio de confrontar a guerra de frente, por acreditar que ainda é possível manter o diálogo, mesmo em tempos de matança e ódio exacerbado. O embaixador da ONU Sérgio Vieira de Mello foi uma dessas pessoas.
Timor Leste, Indonésia, Cambodja, Iraque... Sérgio esteve na parte do mundo onde a guerra, mais do que um enfrentamento, é um estilo de vida. Vive-se por ela, acredita-se piamente - em alguns casos - que não se pode ser respeitado ou mesmo feliz sem estar envolvido com ela. E o resultado disso tudo é catastrófico.
O diretor Greg Barker realizou, em 2009, um documentário sobre Sérgio, mas acreditou que não era o suficiente para explicar a importância desse homem para as novas gerações. Consequência: decidiu transpor essa história para um projeto ficcional junto à Netflix. E ei-lo aqui.
Primeiramente é preciso um aparte: vi muitas críticas na internet associando a maneira como Sérgio (que é vivido no longa pelo ator Wagner Moura, que por sinal está ótimo, uma das melhores coisas do filme) é ficcionalizado ao agente secreto James Bond. E desde já adianto que não concordo. Para mim, me pareceu uma maneira de diminuir ou o projeto ou a figura de Wagner, que vem se mostrando contrário ao que hoje está sendo chamado no país de "o novo Brasil". Em outras palavras: as pessoas não conseguem mais dissociar o artista do indivíduo.
O filme pega emprestado um estrutura narrativa parecida com a do filme As torres gêmeas, de Oliver Stone. Abre a história com o atentado sofrido na Embaixada de Bagdá, onde Sérgio ficou soterrado por horas até seu falecimento, e depois vão intercalando essas cenas dos destroços com flashbacks de sua vida política, seus embates junto à adversários e o romance com Carolina Larriera (a lindíssima Ana de Armas). Honestamente, não sei se a escolha agradará a todos. Confesso que preferia uma cronologia mais tradicional, principalmente depois de ter visto o excelente documentário. Mas entendo a necessidade de sofisticar a história com um certo requinte.
Sensacionalismos e distorções à parte, vemos a luta de Sérgio contra o governo norte-americano que quer impor sua política ao Iraque logo após a queda do ditador Saddam Hussein. E o assunto, todos sabem, não poderia ser outro (embora o longa não mencione isso): o petróleo.
As músicas, embora poucas, são pontuais e muito bem-vindas (é sempre bom ouvir Cartola e Caetano Veloso em qualquer projeto que seja!). A maneira como o diretor intercala o material de arquivo, as notícias dos telejornais, com a trama, também é muito bem construída e ajuda a estabelecer o contexto e diminuir possíveis pontas soltas. E no geral, achei que ele não errou tanto assim. Desde que você, lógico, guarde as devidas proporções entre vida real e filme de cinema.
A grande mensagem por trás de Sérgio está bem explicada nas palavras do general de Timor Leste que, em determinado momento da trama, o chama de "sr. conserta tudo" (eu assisti o filme em versão dublada, então não sei se na versão original, com legendas, eles usam uma expressão parecida). Sérgio era exatamente isso. Ele acreditava em debates e não em armas, e fez de tudo pela independência do Timor Leste bem como pelo fim das imposições norte-americanas com o Iraque (detalhe: prestem atenção em suas conversas com Paul Brenner, representante da Casa Branca no país; elas são fundamentais para entendermos o clima que pairava por lá naquele período).
Ao final de quase duas horas de projeção, um sentimento amargo, de derrota. De que o mundo perdeu um grande homem que, infelizmente, sabia onde estava se metendo e pagou o preço. Não é à toa que a sociedade prefere se esconder atrás de frases como "o mundo não é simples" (proferida pelo presidente da Indonésia), pois elas justificam o eterno desejo de destruir, de conquistar, de desrespeitar o próximo. Viramos um mundo consumido pelo poder (político e também de fogo). E enquanto tratarmos tudo sob a ótica da guerra, continuarei descrente, acreditando que a tão sonhada paz não passa de um enorme delírio.
Logo, como consertar o que prefere permanecer quebrado? Me digam vocês, se souberem...
P.S: se tiverem tempo, após assistirem Sérgio procurem pelo longa-metragem Ao vivo em Bagdá, de Mick Jackson. Acho que ele dialoga de forma interessantíssima com esse filme aqui!
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O Poço
3.7 2,1K Assista AgoraA seleção natural
(O poço, de Galder Gaztelu-Urrutia, é uma alegoria doentia sobre a luta por um direito básico universal: o de sobreviver)
É... Não tá fácil, não! Na verdade está piorando...
Na tv, senadores confabulam (leia-se: guerreiam com unhas e dentes), sem chegar a um acordo, pelo chamado contrato verde-e-amarelo que, na prática, exclui diversos direitos trabalhistas outrora adquiridos. É uma terra de lobos comendo lobos a política partidária. Enquanto isso, a sociedade definha entre um aviso de morte por covid-19 e outro. É o agora, atingindo nossos olhos e consciências como um dardo envenenado.
E mediante toda essa insensatez e falta de escrúpulos achei extremamente enriquecedor - há quem certamente me chamará de maluco - assistir ao longa-metragem da Netflix O poço, do diretor Galder Gaztelu-Urrutia. E digo isso porque, mais do que nunca, precisamos entender (mesmo que vendo na marra) o mundo caótico que ajudamos a construir.
O poço traz uma plataforma (e nesse sentido, o título em inglês mostrado no IMDb faz bem mais sentido para mim) onde diferentes seres humanos, que se cadastraram para participar dessa suposta experiência, se intercalam, uma dupla por andar. Detalhe: o período em que cada dupla permanece no mesmo andar é de um mês. Após isso, eles vão para um outro, escolhido pelos administradores aleatoriamente. Parece simples de entender, mas o que realmente interessa não é o local, mas a mentalidade de seus moradores.
E é difícil classificar o novato Goreng (Ivan Massagué) como um protagonista desta trama. Pelo contrário. Ele me parece mais uma engrenagem de um indústria que trabalha com produção em série, como em Tempos Modernos, do sempre genial Charles Chaplin.
Aliás, qualquer correlação feita aqui com o mercado de trabalho de forma geral é muito bem-vinda. O filme expõe de forma lúcida (sem perder o seu percentual de enigmático) o eterno regime de castas no qual estamos amordaçados desde que o mundo é mundo.
Há de tudo no poço: homens e mulheres desesperançados por natureza, reféns de seu próprio niilismo; uma mãe desesperada que procura seu filho perdido no meio dos moradores; um fanático religioso que acredita piamente que somente Deus poderá tirá-lo daquele lugar miserável; canibais contemporâneos à espera de que qualquer pessoa morra a qualquer momento para que ele(a) não morra de fome; etc...
Quase ia me esquecendo: o elevador que traz a comida diária para os moradores do poço é o retrato do que existe de mais vil (e não menos verdadeiro) no que conhecemos como sociedade contemporânea. Ali se vê claramente a mentalidade egoísta do homem, incapaz de enxergar além de seu próprio umbigo e convicções. Quem comeu, comeu; quem não comeu, que reze, peça a Deus por dias melhores.
Neste momento a trama ganha uma conotação quase darwiniana, pois a seleção natural que se constrói diante de nossos olhos é sórdida, diria mesmo macabra (entendo perfeitamente os espectadores que classificam o longa dentro do gênero terror). Trata-se de uma luta inumana por aquele que deveria ser um direito básico universal garantido ao homem: o de sobreviver. E, no entanto, percebemos que nossa existência aqui não tem nada de garantido. Não há certezas no mundo dos homens. Apenas possibilidades e a maioria delas injustas.
Enquanto a sociedade procura por heróis de plástico e líderes tendenciosos a quem possam seguir inutilmente, como cachorrinhos de madame, o mundo real - aquele que nunca quisemos encarar de fato, frente a frente, pois é mais fácil ser covarde ou demagogo - nos coloca uns contra os outros e ainda disponibiliza as armas, para que nos matemos mais rápidos.
Eu já prevejo alguns leitores entediantes e repetitivos dizendo: "que crítico maquiavélico esse rapaz! não apresentou nenhuma notícia feliz ou sinal de esperança para o futuro" e eles podem se manifestar à vontade. Mas me parece à primeira vista impossível uma solução para o mundo enquanto empurrarmos o lado duro da vida para debaixo do tapete. O contrário disso sempre me soou como hipocrisia e dela, que conheço de cor e salteado, eu já ando cheio. Mesmo.
P.S: desde Mãe!, de Darren Aronofsky, um filme não mexia tanto com a minha cabeça como esse aqui. E a minha cabeça precisava de uma sacudida forte.
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Medo e Delírio
3.7 552 Assista AgoraCatarse alucinógena
(Medo e delírio em Las Vegas, Terry Gilliam e uma viagem psicodélica ao mundo perturbador das drogas)
Gosto de Hunther S.Thompson. Mesmo. Lembro-me da primeira vez que eu li um livro de sua autoria, comprado num sebo no Largo do Machado. O nome da obra em questão era Screw Jack e me deparei com um dos relatos literários mais alucinados que eu tinha lido até então. O tempo passou e eu corri atrás de outros exemplares de sua bibliografia. E acreditem: aqui no Rio de Janeiro, assim como o poeta americano Charles Bukowski, Thompson não é um autor fácil de ser encontrado. Mas achei outros. A duras penas, mas achei. Dentre eles, o mítico Medo e delírio em Las Vegas.
No ano seguinte à minha leitura do livro - era uma versão pocket da LPM - fico sabendo da existência da adaptação cinematográfica realizada pelo diretor Terry Gilliam (de quem sou fá há anos, desde os tempos do Monty Python!). E começa então uma nova corrida, desta vez para assistir o fatídico filme. E o tempo passou, passou, passou, e o filme entrou para minha lista sempre cheia de "filmes a serem assistidos um dia".
Passaram-se quase 12 anos e eis que, finalmente, e graças à quarentena do coronavírus, eu encontro o filme no catalógo do Now disponibilizado gratuitamente entre um montante de longas-metragens os mais diversos. E desde já adianto: valeu a pena esperar.
Medo e delírio em Las Vegas traz Raoul Duke (Johnny Depp, num dos muitos alter-egos de Thompson) acompanhado de seu advogado, o Dr. Gonzo (Benicio del Toro), numa viagem rumo à terra dos cassinos e da perdição para cobrir uma corrida de motocross. Mas essa, meus caros leitores, é a última coisa que Raoul e seu amigo farão nessa terra onde "o que acontece por ali, fica por ali mesmo".
O que Raoul e Gonzo apresentam para os espectadores - de preferência, os de mente mais aberta - é um dos retratos mais surreais que eu já vi até hoje da dependência química. E ambos são viciados no que quer que seja, da cocaína ao éter, passando por comprimidos e o que mais você puder imaginar. Eles enlouquecem literalmente, têm visões de todo tipo, volta e meia se dizem perseguidos por forças obscuras e por inimigos imaginários, na melhor faceta Gilliam de ser (afinal de contas, se trata de um mago das imagens - e quem quiser se inteirar mais pela carreira do diretor, procure por O mundo imaginário do Doutor Parnassus e 12 macacos).
E dessa grande catarse alucinógena, repleta de reviravoltas as mais inverossímeis, vemos como pano de fundo a verdadeira América. Aquela que gosta de se vender para o resto do mundo através de seus heróis - Lincoln, Kennedy, etc - e seu discurso de vencedora, mas que adora varrer para o tapete suas desilusões, seus vícios e seu verdadeiro modo de vida.
A dupla Depp/Del Toro funciona bem durante toda a jornada, e me peguei a todo momento perguntando o que foi que aconteceu com o ator de Edward mãos de tesoura e Piratas do Caribe nos últimos anos. Onde foi parar toda essa ousadia e coragem para interpretar personagens alucinados? Engraçado. E tem fãs que dizem que artistas não desaprendem a atuar. Às vezes, eu sinceramente tenho as minhas dúvidas.
A mistura Thompson + Gilliam + Depp não só fundiu a minha cabeça de forma permanente, à procura de referências as mais loucas e diversas, como também me deixou com saudades dessa velha hollywood (o filme é de 1998, logo do século passado).
Estamos tão viciados em tecnologias de última geração, óculos 3D enfiados na cara o tempo todo, o vício exorbitante por franquias excessivas e remakes e spinoffs vazios, que perdemos completamente a noção do que significa ser original nos dias de hoje. E até quando o quesito em questão é adaptação, perdemos o gosto por boas histórias, cheias de nuances e tramas rebuscadas, e nos rendemos ao gratuito dos quadrinhos e ao vazio da cultura pop superficial. Uma pena!
Em outras palavras: Medo e delírio em Las Vegas é cinema que vem desaparecendo com o tempo e ninguém dá a mínima, pois a alienação e a barbárie ditam as regras do mercado cinematográfico atual. Mas se você, como eu, cansou desse óbvio ululante, dessa zona de conforto incômoda e repetitiva, então, meu amigo e minha amiga, essa sétima arte aqui é pra você. E mais não digo.
Pois a decisão de descobri-la é sua, e somente sua...
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Enraivecida na Fúria do Sexo
3.2 95Meio que um precursor dos filmes de zumbi que andam tão em voga atualmente em hollywood. . Cronenberg destila todo o seu nonsense, marca registrada que o consagrou no início da carreira, levando-o posteriormente à obras-primas B como A mosca e Gêmeos - mórbida semelhança. Vale a conferida para que os cinéfilos conheçam o mestre ainda em formação!
Faça a Coisa Certa
4.2 398Territorialismos
(Faça a coisa certa, de Spike Lee, e a América dos excluídos que competem entre si com unhas e dentes pelo mínimo necessário)
Todas as vezes que me perguntaram o que é mais extraordinário na história da sétima arte eu sempre respondi: "a capacidade de certos cineastas fazerem o seu trabalho repercutir além da geração para quem o seu cinema foi realizado". E há sempre uma lista imensa de filmes que cabem como uma luva nessa categoria. E dentre os filmes que vêm à minha cabeça toda vez que eu penso na lista desses filmes que foram além de sua própria época, é impossível não me lembrar de Faça a coisa certa, do diretor Spike Lee.
Lá se foram mais de três décadas e o longa de Spike não envelheceu um segundo sequer. Pelo contrário. Parece até que foi realizado no mês passado, na semana passada, tamanha a atualidade de seu discurso. E antes que os espectadores mais tradicionais e viciados num resuminho básico me aporrinhem, é preciso adiantar: Faça a coisa certa é um filme sobre territorialismos, sobre disputar espaço, qualquer espaço, o mínimo que seja, como quem luta pela própria vida. E isso, meus caros leitores e fãs de cinema, é muito maior do que qualquer sinopse que eu vá narrar aqui.
Seus personagens buscam razões para lutar por sua própria identidade, mesmo quando tudo parece conspirar contra eles. E o pano de fundo para essas discussões e disputas de território, além da música forte e precisa do Public Enemy, é a câmera subjetiva do diretor que nos proporciona um grande passeio pela vizinhança numa América à anos-luz daquela que vemos todo dia nos tabloides e na programação da CNN ou da Fox News.
E a estereotipia do lugar, é claro, chama a atenção com gigantesca facilidade. Se é possível falar em protagonistas, fiquemos então - na superfície - com o duelo entre Sal (Danny Aiello, fantástico!), o dono da pizzaria, point de grande parte dos moradores do bairro, e Mookie (o próprio Spike Lee), seu entregador, que vive reclamando do pagamento atrasado. Mas como disse no início do parágrafo é um protagonismo superficial, pois eles dividem a atenção com uma série de figuras que flertam com tipos sociais, embora tenham revolta e atitude própria para dar e vender.
Radio Raheem (Bill Nunn), como diz o próprio nome, anda para cima e para baixo carregando seu rádio no mais alto volume e incomodando os outros moradores da região. E ai de quem mandá-lo abaixar o som! Da Mayor (Ossie Davis) é praticamente um zorba, o grego da rua, sempre sugerindo soluções para os outros e tentando manter a paz a qualquer custo. Mother Sister (Ruby Dee) vê a vida passar da janela de sua casa, mas não perde a chance - quando a oportunidade lhe aparece - de palpitar sobre o que quer que seja. Buggin (Giacarlo Esposito) é aquele revoltado que existe em qualquer subúrbio do mundo. Deseja boicotar a pizzaria do Sal simplesmente porque ele não possui em seu hall da fama - a parede onde constam fotografias de clientes famosos - um homem negro sequer. Smiley (Roger Guenveur Smith) é o gago que perambula pelas ruas vendendo seus folhetos e lutando contra o preconceito daqueles que acreditam que ele deveria parar de encher o saco ou simplesmente desaparecer de uma vez por todas. E Love Daddy (Samuel L. Jackson), com suas tiradas no programa de rádio que apresenta, faz as vezes de cronista do cotidiano daquelas ruas sofridas.
E isso porque eu fiquei somente nos moradores mais influentes. Mas uma dica aqui: prestem atenção no contexto geral.
Digo isso porque, lógico, há sempre espaço para discussões entre vizinhos, crianças quase sendo atropeladas porque decidiram atravessar a rua na hora errada, brigas entre irmãos, a eterna guerra entre os policiais brancos que rondam a área e os moradores (detalhe: há uma sequência em que são exibidos os mais diferentes tipos de insultos que, por si só, vale pelo filme todo!) e a convivência difícil entre a comunidade negra e os donos de estabelecimentos comerciais de outras etnias.
Embora Spike Lee tenha se consagrado por uma carreira cheia de sucessos, acredito piamente que seu estrelato esteja até hoje muito atrelado ao sucesso desse longa. Digo mais: acredito que foi aqui que começou a sua fama de ativista. E os fãs de sua gloriosa carreira têm muito a agradecer...
Até hoje me pergunto onde a Academia de artes e ciências cinematográficas estava com a cabeça quando premiou Conduzindo Miss Daisy com o Oscar e não esta pequena obra-prima, que gera reflexões valiosíssimas até hoje. A América contraditória que virou as costas para New Orleans após o furacão Katrina e que trouxe de volta à cena a Ku Klux Klan em plena era Trump tem aqui o seu embrião (embora muitos demagogos prefiram não enxergar dessa forma).
Em outras palavras: os moradores do Brooklyn de Faça a coisa certa estão, embora prefiram não lembrar e se preocupar com questões mais pertinentes e agradáveis, sentados num enorme barril de pólvora, pronto para explodir a qualquer momento. E o fósforo que promoverá essa tragédia está na intolerância e na incompreensão de certos discursos. Porque o ser humano, infelizmente, nunca perde a mania de se achar mais do que os outros ou contar vantagem de si. Logo, esperar pelo pior não é uma promessa e sim uma realidade a longo prazo.
Tenho (sempre tive) a curiosidade de ver a continuação desse filme com seus personagens mais velhos, digamos, 20 anos depois do incêndio que encerra o longa. Infelizmente o tempo passou e Danny Aiello não está mais entre nós (o que é uma perda irreparável). E não bastasse tudo isso Spike decidiu seguir um novo caminho, não menos denunciatório. Uma pena! Precisávamos - e muito - rediscutir o que foi iniciado aqui, principalmente depois do advento das novas tecnologias e a chegada das redes sociais. Como isso não aconteceu, que bom saber que pelo menos podemos revê-lo e repensarmos a sociedade quantas vezes quisermos!
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O Caso Richard Jewell
3.7 244 Assista AgoraO Cristo da vez
(O caso de Richard Jewell, de Clint Eastwood, na verdade é a América fabricando heróis e vilões ao sabor de seus próprios interesses escusos)
Os Estados Unidos, que certos brasileiros frustrados adoram chamar de "a maior nação do planeta", é um país no mínimo irônico. Vive de fabricar maniqueísmos os mais diversos com o intuito de se promover e, com isso, conseguir mais adeptos alienados, antenados com a sua "causa" aham patriótica. E o maior exemplo disso é a maneira como constrói para a opinião pública seus conceitos de herói e vilão.
Dito isso, confesso que foi uma grata surpresa assistir o último longa de Clint Eastwood, O caso de Richard Jewell. E digo surpresa porque antes mesmo do filme ser lançado em nossas salas de projeção, já aportou por aqui carregado de polêmica por conta da maneira como o diretor expôs o ponto de vista de uma das personagens principais da trama.
Contudo, o protagonista desta história, Richard (vivido de forma exuberante pelo ótimo Paul Walter Hauser) tem seu próprio calvário para enfrentar. Ele é um reles segurança, ex-agente policial, que busca melhorar de vida para poder pagar suas contas e ajudar a mãe, Bobi (Kathy Bates, também excelente!). Mas sua vida muda completamente quando decide trabalhar nas olimpíadas de Atlanta, em 1996.
Uma bomba é colocada no Centennial Park e Richard é o primeiro a localizá-la e informar as autoridades. A explosão causa graves sequelas no público presente, mas a maior delas certamente na vida do próprio segurança. E tudo por causa da personagem que rendeu polêmica (como citado no segundo parágrafo). Kathy Scruggs - vivida por Olivia Wilde - é uma jornalista ambiciosa à procura de um furo de reportagem que tire a sua carreira do tédio. E que vê numa informação tendenciosa obtida através de um agente do FBI razões suficientes para colocar sobre Jewell a culpa pelo atentado.
A razão por trás da suspeita: o passado de Richard advoga contra ele e, nesse momento, surge uma cultura muito comum na sociedade globalizada em que vivemos. A eterna mania de ver o pior nos outros e não acreditarmos que as pessoas mereçam uma segunda chance.
(Detalhe: a polêmica que engoliu as intenções do filme em conseguir indicações para as principais categorias do Oscar e da temporada de prêmios em geral tem a ver com o fato da jornalista, no filme, trocar sexo por informação privilegiada sobre o caso. E é nesse momento - em tempos de feminismo ganhando espaço nas redes sociais e na internet, Me Too, etc - que a coisa começa a feder.
E fazendo aqui um aparte em defesa das mulheres que chegaram a rotular Clint de misógino e cruel, acredito que Eastwood queimou seu filme de graça aqui, pois vende a imagem de Kathy desde o primeiro fotograma como uma mulher promíscua, capaz de qualquer coisa para se dar bem. E só por isso já temos motivo suficiente para tomarmos cuidado ao analisar o projeto.
No final das contas, o que salvou o filme do eterno Dirty Harry de não cair no ostracismo e virar alvo de ativistas é o grande painel que ele construiu sobre os EUA controverso de hoje. Há um pouco de tudo aqui: a eterna mídia sensacionalista, que volta e meia bagunça a vida dos outros e, quando erra, não pede desculpas; a cultura viciante da hierarquia policial, não por estar preocupada em fazer justiça e averiguar os fatos, mas porque quer assumir o caso visando a fama; e a indústria dos ressentidos que adoram pegar volta e meia alguém para Cristo.
E Richard Jewell funciona bem como o Cristo da vez. Ele não se encaixa no padrão do que a sociedade americana gosta de vender como correto, como modelo. É gordo, nunca é levado a sério, mora com a mãe - para muitos, o suficiente para ser rotulado como um perdedor - e está sempre disponível (para o senso comum: disponível em excesso).
O monólogo final do personagem, quando enfrenta cara a cara o agente do FBI que quase destruiu sua vida, é extraordinário e mostra uma realidade nua e crua. Não é à toa que tão poucos ajudam no mundo, e tantos prefiram fugir, se esconder, virar a cara para o outro lado. No final das contas, parece que bandido é "aquele que faz a sua parte, que se preocupa, que toma uma atitude".
Logo, que país é esse que se esconde atrás de super-heróis e presidentes machões, mas adora varrer para debaixo do tapete a verdade sobre certas histórias contadas ao povo? Richard Jewell nada mais é do que um Lee Harvey Oswald aprimorado. Aquele que deve herdar a culpa para que não precisemos ir longe descobrir a verdade.
Mas vai ter gente por aqui dizendo que "não é bem assim", pois não tem recursos para formar uma opinião melhor do que essa.
P.S (e numa era cheia de politicamente correto e demagogos religiosos no Brasil, eu não posso terminar essa crítica sem dizer isso): você, cristão chato e que chama tudo de blasfêmia, que se incomodou com o título do meu texto, na boa... O problema é seu e só seu. Eu tenho mais o que fazer do que esperar a sua benção sobre tudo o que eu penso, digo ou escrevo. Anotou?
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A Casa Que Jack Construiu
3.5 788 Assista AgoraManual prático para entender psicopatas
(A casa que Jack construiu, de Lars von Trier, é o resultado de uma sociedade que acredita na eficácia de guerras, armas e muita violência)
O mundo está cheio de Jacks, mas a humanidade (ah! a humanidade!) prefere o conforto da hipocrisia, e esconder suas mentiras preferidas atrás do discurso de que "fala sério! isso é mais uma invenção da cultura pop!". E por isso, defendo aqui o diretor Lars Von Trier. Ele matou a pau.
A casa que Jack construiu, último longa lançado pelo diretor (e que foi odiado de forma maciça pela crítica; teve até gente que abandonou a sessão no meio num dos festivais de cinema da Europa) é um grande ensaio sobre a hipocrisia latente que reina entre nós.
O Jack - interpretado pelo ator Matt Dillon, que depois de anos perdendo tempo com personagens inúteis, enfim faz uma boa escolha de carreira - proposto por Von Trier é o estereótipo máximo da psicopatia. Mata única e exclusivamente pelo prazer de matar. A ele não interessa nenhum juízo de valor ou moral ilibada. Ele é desse jeito porque decidiu ser assim. E suas vítimas são aquelas que aparecem diante de si quando a oportunidade se mostra. Ele não precisa de um motivo para caçá-las ou perseguí-las. Nada disso. Na prática, ele aprecia o momento e exerce "sua arte".
E é nesse momento que o filme se torna ainda mais interessante como reflexão (e essa, por sinal, deveria ser a principal abordagem dos cinéfilos, e não buscar algum tipo de adoração ou repulsa pela barbárie ou tentar catalogá-lo dentro do universo "filme de terror"). O diretor faz uma inteligente correlação entre os crimes de Jack e as obras de artistas clássicos da pintura.
Me peguei a todo momento pensando nessa geração de hoje que não sabe separar a obra artística de um indivíduo de seus delitos morais e perniciosos. Pior: boicotam suas carreiras, chegam a fazer campanha para que outros a boicotem também. Estão perdendo tempo, coitados! É praticamente impossível encontrar no mundo das artes alguém - e olha que eu já procurei por isso - que tenha uma vida acima de qualquer suspeita.
Parece fazer parte desse mundo a ideia de perversão, de incômodo. E isso é muito bem trabalhado em forma de telas, películas, livros, fotografias, músicas, ou seja lá que plataforma artística eles escolham. Não se trata - sinto muito aos moralistas que estiverem lendo esta crítica - de uma ciência exata, de uma realidade feita apenas de virtudes. Quem dera fosse fácil assim!
E Jack entende isso como poucos. Chega a descer ao seu último grau de indecência para provar às suas vítimas e perseguidores o quanto sua "arte" é pura, e não atrelada aos desejos de outros. Ele é, na melhor (ou pior, dependendo de como você enxergue a situação) expressão do termo, um sobrevivente do caos diário. E por isso não deve justificativas àqueles que nunca irão compreendê-lo como um todo. Porém, um todo fadado a destruir e não a construir o que quer seja.
E nesse sentido a casa que ele "supostamente construiu" é apenas uma dúvida, uma lamento, uma tentativa inglória de permanecer humano, quando na verdade o que ele deseja de fato é destruir o mundo que o rodeia.
Adorei um passagem do filme no qual Von Trier me fez lembrar de O auto da barca do inferno, de Gil Vicente (se a correlação não era essa, peço desculpas! nessas horas, eu sempre enxergo demais e de acordo com meus próprios gostos e referências).
Volta e meia chamam Lars de devasso, de polêmico, de mau caráter e aqui ele deu todos os motivos para que seus detratores bufassem de ódio. Realiza uma espécie de manual prático para entender psicopatas, mas sem cair nas armadilhas dos jargões psicanalíticos. Ele recorre às artes plásticas para nos mostrar o quanto o mundo anda impregnado de morte e violência até o talo, e acha tudo isso um tanto natural, às vezes até necessário.
Digo isso porque nunca falamos tanto em andarmos armados 24 horas por dia. Nunca se pediu tanto como nessa sociedade contemporânea por uma terceira guerra mundial (e tem quem se faça de desentendido, dizendo que "não é bem assim"). E não bastasse todo esse ódio, essa apologia à violência, tem quem exija a volta de muros, regimes totalitários e cultue ditadores e genocidas. Mas, no final, quem não prestam são os artistas. Esses sim precisam sumir do mapa. De vez.
Ó, Deus, perdoai-os! Eles não sabem de nada! Que dirá o que fazem...
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O Vício
3.8 59 Assista AgoraO VÍCIO, de Abel Ferrara, faz um interessante paralelo entre o universo vampiresco (embora seu filme não seja especificamente um projeto do gênero) e o mundo dos dependentes químicos. E talvez se tivesse optado por uma atriz do chamado primeiro escalão para sua protagonista, tivesse até conseguido arrebatar alguns prêmios em festivais independentes. Enfim... Vale a minha recomendação!
The Beach Bum: Levando a Vida Numa Boa
2.9 47THE BEACH BUM me lembra muito a cagada que o Eddie Murphy fez quando, depois de ganhar o Globo de Ouro por DREAMGIRLS, foi fazer aquela porcaria cômica chamada NORBIT. Só que dessa vez quem esculhambou de vez foi o Matthew McCounaghey. Não dá pra entender esses artistas que depois que vencem um grande prêmio se associam a porcarias!
O Bandido da Luz Vermelha
3.9 267 Assista AgoraO marginal popstar
(O bandido da luz vermelha, Rogério Sganzerla e o país que adora cultuar o errado)
O Brasil é um país que não muda porque não tem interesse em mudar, quer que tudo permaneça na mesma (de preferência, de acordo com os seus próprios interesses). Não bastasse isso, adora cultuar o errado, relativizar o que é crime e o que é boa ação. Bota tudo na conta do "veja bem...". E pensar que o diretor Rogério Sganzerla falava disso mais de 50 anos atrás e ninguém deu a menor bola. Nem naquela época, muito menos hoje!
É com uma enorme satisfação que sentei em frente ao meu aparelho de tv esta semana para assistir o dvd de O bandido da luz vermelha, de Sganzerla, clássico do chamado cinema marginal. E é também com uma enorme tristeza e um sentimento de impotência atroz que percebo que nada, absolutamente nada, mudou neste país que não consegue fugir da pecha de república de bananas. "Que país de merda!", dirão sem pestanejar aqueles que hoje migram em massa para Portugal.
O longa, que estreou por aqui às vésperas do ato institucional nº 5, é um marco do nosso cinema (mas vive sendo taxado por quem não conhece nada da sétima arte brasileira e da nossa cultura em geral de "mais um exemplar da apologia à violência"). Coitados deles! Não fazem a menor ideia do que estão falando!
Paulo Villaça (ator que merecia estar em evidência no país até os dias de hoje) entrega um luz vermelha que é a cara do Brasil de ontem, de hoje e provavelmente de amanhã. E Sganzerla, diretor que fez parte do grupo que fundou o cinema novo, mas também quis seguir por outros caminhos mais ácidos, entrega aquele que é, para mim, o filme derradeiro sobre a nossa nação controversa, que adora idolatrar criminosos de todos os tipos.
Luz vermelha é um marginal popstar, figura que volta e meia ganha os holofotes da mídia sensacionalista nessa terra ainda tupiniquinesca que chamamos equivocadamente de "país em desenvolvimento". É tão folgado que não só assalta casas, como dorme com as mulheres que rouba (e volta e meia elas se apaixonam por ele!) e ainda pede, de vez em quando, que elas façam um almoço para ele. Em outras palavras: é um artífice-mor dessa cara de pau que reina no Brasil há séculos.
Talvez a única, de todas as mulheres com quem dormiu, que pudesse entendê-lo na íntegra fosse Janete Jane (Helena Ignez, musa dessa geração cinematográfica). Mas ela estava tão preocupada com o seu próprio oportunismo, sua própria beleza, que preferiu traí-lo. E pagou caro por isso, como tantos outros que atravessaram o caminho dele.
Do outro lado da sede de status de Luz vermelha está o Delegado Cabeção (Luiz Linhares), que sofre do mesmo problema de Luz: ele busca também, a sua maneira, a notoriedade em primeiro lugar. Prender o bandido é apenas um detalhe perto do que representa ser reconhecido nas ruas como "o homem que prendeu Luz vermelha". E nesse momento Sganzerla realça um faceta típica de nossa sociedade que adoramos varrer para debaixo do tapete. Falo da eterna mania de fazermos péssimas escolhas baseadas em interesses escusos. Insira nesse contexto um pontada de fama e projeção e bum! eis aí o nosso exemplar ser humano de baixa categoria.
Contudo, me corrijam vocês, leitores, se eu estiver errado, mas acredito que os grandes protagonistas de O bandido da luz vermelha são os dois locutores de rádio que narram essa saga inglória, fadada logicamente ao insucesso. Digo mais: ambos remetem à uma espécie de consciência, aquela voz incômoda, que nunca queremos ouvir, pois nossa egolatria não permite, mas está sempre apontando os caminhos certos ou, ao menos, aqueles que deveríamos prestar mais atenção.
Mas vai explicar isso a uma nação que idolatra a ignorância desde a chegada de nossos patrícios em 1500?
Com seu filme-denúncia, quase manifesto de uma era que (ainda) não acabou, Sganzerla compõe uma tríade (junto com Terra em transe, de Glauber Rocha e A dama do lotação, de Neville d'Almeida) que optou por esmiuçar o Brasil ao invés de simplesmente deixá-lo para lá e vender belezas, fetiches e estereótipos. Aliás, tudo o que está acabando com o cinema da retomada.
Certa ocasião num vídeo do you tube vi Quentin Tarantino se dizendo fã do longa e é fácil entender o porquê. Sganzerla foi, à sua maneira, na sua época, um Tarantino. Mesclou referências e brincou com formatos do jeito que quis e quando quis. E não à toa ganhou, para mim, ao lado de Glauber, o rótulo de gênio do nosso cinema.
E é uma pena saber que a obra desse homem ande tão esquecida hoje em dia por parte de quem acha que sétima arte é sinônimo unicamente de efeitos especiais, super-heróis, CGI e mulheres masculinizadas interpretando vingadoras, assassinas de elite e caçadoras de recompensa!
Ah, Sganzerla! É sério que você teve de morrer? Que falta você está fazendo aqui embaixo, meu amigo!
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Uma Segunda Chance para Amar
3.5 477 Assista AgoraEu vi o filme só por causa da Emilia Clarke. Mas confesso: não esperava aquela reviravolta na final. Para os casais de namorados que estão procurando aquele filme de fim de noite no domingo é a opção ideal.