Quando a lua cheia chegar (Os 40 anos de Um lobisomem americano em Londres, de John Landis)
Eu não sei exatamente o que aconteceu com o gênero terror em hollywood, mas de uma coisa eu tenho certeza: todas as melhores lembranças que eu tenho sobre o gênero estão comemorando entre três e quatro décadas de existência e sem perder um pingo de sua relevância cultural. No final das contas, acredito que isso se deve ao fato de nós, espectadores daquela época, estarmos interessados num tipo de cinema que, honestamente, não se faz mais nos dias de hoje porque os realizadores atuais muitas vezes preferiram dar mais protagonismo aos efeitos especiais do que a uma boa história.
Fiquei pensando nisso essa semana enquanto assistia a um exemplar ruim do gênero no canal a cabo TNT e me deparo com a notícia de que o clássico eterno Um lobisomem americano em Londres, do diretor John Landis, está completando 40 anos em 2021. E imediatamente a parte nostálgica do meu cérebro começou a trabalhar e me relembrei de todas as vezes que vi o longa.
Um lobisomem americano em Londres é um marco do cinema de terror de todos os tempos (pelo menos, para este que vos escreve) porque não inventa teorias absurdas, não insulta a inteligência de seu espectador - em essência, adolescente - e também não se torna refém de sustos bobos e artimanhas baratas (algo que tenho visto muito nos últimos anos!).
Acompanhamos a história dos dois mochileiros David Kessler (David Naughton) e Jack Goodman (Griffin Dunne) que são deixados por um caminhoneiro numa estrada deserta para continuarem sua jornada. Eles até param numa taverna para um breve intervalo e se deparam com a hostilidade dos frequentadores do local. Resultado: "melhor pegarmos nossas coisas e dar no pé". A noite chega, o ambiente fica soturno e eles são atacados por um lobisomem. Jack morre na hora, mas David sobrevive graças a ajuda dos homens que se encontravam no bar.
Ele é levado para um hospital onde é tratado e interrogado por policiais. Conhece a enfermeira Alex Price (a belíssima Jenny Agutter), por quem se apaixona e logo recebe alta, indo morar com a moça em seu apartamento. Mas com o passar dos dias começa a sentir coisas estranhas. A ter instintos que nunca teve antes. Até que recebe a visita do companheiro morto, que vem lhe avisar que ele se transformará numa criatura igual a que o matou na próxima lua cheia. A consequência disso? Os fãs oitentistas já conhecem de cor e salteado.
O diretor John Landis - realizador dos ótimos Clube dos Cafajestes e Os irmãos cara de pau - fez história com o longa, chamando a atenção da crítica especializada na época e também do rei do pop Michael Jackson, para quem realizou o antológico clipe Thriller dois anos depois (vídeo este que hoje se encontra catalogado na Biblioteca do Congresso nos EUA). Digo mais: junto com O exorcista, de William Friedkin e O bebê de Rosemary, de Roman Polanski, compõe uma trinca insubstituível no quesito "filmes de terror irretocáveis".
A cena de transformação de David em lobisomem, que deu ao mestre Rick Baker o Oscar de maquiagem no ano seguinte, é das sequências mais fenomenais que eu vi até hoje. E olha que eu já vi foi coisa marcante nesses mais de 30 anos assistindo cinema! Passei anos da minha vida querendo saber como a cena foi realizada e só tive o meu desejo atendido quando comprei o DVD edição de colecionador do filme e sentei para ver os extras. E continuei impressionado. Imaginem isso sendo feito com a tecnologia de última geração de hoje em dia (e não me refiro a CGI, não!).
Outro ponto que sempre achei um toque de mestre do diretor é o desfecho do longa, com a morte da criatura num beco, ao som de "Blue Moon", da banda The Marcels. Normalmente se esperaria um final com uma trilha sonora melancólica, quiçá fúnebre, e ele engata num sensacional rock n' roll clássico, como que dizendo para os espectadores de seu projeto: "gente, a vida continua...".
Entro no site do IMDb para obter algumas informações sobre o filme e me deparo com a informação de que anunciaram um remake dessa obra-prima. Confesso: temi pelo pior na hora. Já não bastasse o detestável Um lobisomem americano em Paris, de Anthony Waller, realizado 16 anos depois, ainda por cima teremos de aturar mais essa infâmia. Enfim... Hollywood é a eterna fábrica de remakes que ela se tornou nos últimos anos.
Agora, para quem não está interessado em releituras e versões novas "feitas para uma nova geração de cinéfilos", assistam o original. Procurem o DVD com os extras e se divirta. É entretenimento como há anos o cinema americano vem deixando de fazer, para perder tempo com heróis rebuscados e tramas insossas.
P.S: ah que saudade da Sessão das Dez, no SBT, nos anos 80 e 90, que passava relíquias como essa pequena e notória obra prima!!!
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Fábula contemporânea (Ruas de Fogo, de Walter Hill, é praticamente um conto de fadas para adultos, sem todos aqueles clichês e moralismos óbvios do gênero)
Contos de fadas e fábulas sempre me entediaram, desde moleque, por conta de seu formato repetitivo, refém de premissas que eu considerava óbvias, cansativas. E muito por causa disso naquela época - refiro-me aos meus 10, 11, 12 anos - eu escolhi as tirinhas de jornal e os comics. Eles possuíam o nível de sarcasmo e deboche que eu procurava já naquele tempo. O resultado disso: tornei-me um leitor de outsiders, de autores fora do padrão, do corriqueiro.
Contudo, o cinema anos mais tarde me fez acreditar que era possível encontrar artistas que transformassem esse tipo de linguagem monótona (pelo menos para mim) em algo mais palatável aos meus interesses, digamos, excêntricos. E um deles que se mostrou logo de cara foi o diretor Walter Hill. Quando assisti The Warriors - os selvagens da noite numa madrugada fria no início dos anos 1990 eu simplesmente alucinei. Era provocador, reacionário e corajoso em demasia. E eu pensei comigo: esse cara entende do metiê.
Mas eu não vim aqui para falar de The Warriors (crítica que, aliás, estou devendo aos meus leitores) e sim de Ruas de fogo, de 1984. Para mim um conto de fadas para adultos, sem toda a baboseira que acompanhava o gênero desde que o mundo é mundo.
Acompanhamos o sequestro da jovem estrela do rock Ellen Aim (Diane Lane) pelas mãos da gangue de Raven (Willem Dafoe) durante um dos seus concertos e não há como não pensar na princesa sendo capturada por seu algoz, que certamente - se aqui fosse um livro - teria inveja de sua beleza ou do fato dela não amá-lo. E o único capaz de resgatá-la, para uma de suas fãs e irmã do herói, é o rebelde Tom Cady (Michael Paré), ex-namorado de Ellen e também ex-militar. Entretanto, ele não é um príncipe que se encaixe no estereótipo do que estamos acostumados a ver nesse segmento.
Pelo contrário. Tom não leva desaforo pra casa, não se esconde atrás de discursos bonitos e chega a aceitar dinheiro para resgatar a moça. Ousado, eu sei... Mas como eu disse antes: é uma mudança no formato. Trata-se de um fábula contemporânea. Algo, por sinal, que consta logo no início dos créditos ("uma fábula rock n' roll").
Dito isto, esqueçam dragões cuspidores de fogo, casas de doces, espelhos mágicos e toda essa bobajada. O que encontraremos aqui é muito som alto, tiroteiro, pancadaria pra dar e vender, uma ajudante do príncipe meio lésbica e veterana de guerra e um produtor, Billy Fish (o atualmente sumido Rick Moranis), completamente almofadinha e viciado em sucesso.
Querem mais? Então vão ter que ver (ou rever) esse clássico oitentista!
Dois destaques que eu não posso deixar de mencionar do longa: as caracterizações (figurinos e cenários escolhidos) e, claro, a música - sob a alcunha do mestre eterno Ry Cooder. Espera, espera... Um confissão inevitável: ouvir de novo "I can dream about you", de Dan Hartman, depois de tantos anos, é não somente um bálsamo para os ouvidos como já vale por metade do filme.
É verdade que o roteiro, escrito a quatro mãos por Hill e Larry Gross, é bobinho toda vida se levarmos em consideração o que hollywood era capaz de fazer naquela época (que o diga o de Laços de ternura, vencedor do Oscar de melhor filme, diretor e roteiro adaptado naquele ano!). Mas ao mesmo tempo ele não era para ser, de fato, o grande centro das atenções. Em outras palavras: o público daquela época direcionava seus olhares para outras direções, digamos, mais joviais.
Ruas de fogo é, em uma palavra simples, estiloso. Isso é que o ele está interessado em vender e, cá entre nós, fez bem. Tanto que eu estou aqui, 36 anos depois, falando dele ainda. Não, meus caros leitores, embora pareça isso não é pouco!
E pensar que hoje em dia filmes para jovens precisam ter, quase que obrigatoriamente, efeitos especiais de última geração e personagens cheios de superpoderes. Pois é... o cinema americano mudou e nem sempre a palavra mudança é um bom sinal. Mas pelo menos eu posso dizer hoje à minha sobrinha que a minha época valeu (e ainda vale) a pena.
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Escreva muito, espere pouco (Mank, de David Fincher, é não somente uma rediscussão sobre o clássico Cidadão Kane como também expõe a nu hollywood e seus profissionais geniais e controversos)
Quando o diretor Orson Welles lançou o clássico Cidadão Kane em 1941 ele não fazia a menor ideia do grande fenômeno que seu filme se tornaria, mas tinha pelo menos uma certeza: a de que haviam lhe prometido o final cut, ou seja, o direito de que a versão final de seu longa seguiria ipsi litteris suas diretrizes, e as de ninguém mais. O problema dessa frase: estamos falando de hollywood e do fato de que nem sempre as coisas saem exatamente do jeito que os artistas querem.
É muito fácil olhar a obra-prima de Welles pelo prisma de "o maior filme de todos os tempos". E se perguntarmos a, pelo menos, 8 ou 9 de cada dez críticos de cinema eles certamente confirmarão. Contudo, realizar a produção na prática foram outros quinhentos. A história por trás de Cidadão Kane daria um filme por si só e um filme dos bons. Pois bem: o genial David Ficher - mestre por trás de películas extraordinárias como Zodíaco, Clube da luta e Seven - decidiu fazer esse filme com Mank. E conseguiu desenhar de forma precisa a hollywood de antigamente para falar também da hollywood de hoje.
E para contar essa história rebuscada ele se debruça sobre a alucinada vida do roteirista do filme, Herman Mankiewicz (Gary Oldman, em estado de graça!) e a incrível façanha que ele teve de encarar: escrever o roteiro de Cidadão Kane em míseros 60 dias. Você pode até dizer "mas para esses caras, que escrevem o tempo todo, é moleza!". Pois é... Você não conhece Mank.
Mank é aquilo que eu costumo chamar de um velho tubarão da indústria cinematográfica. Um homem capaz de entender o sistema com extrema facilidade, jogar com ele se necessário e entregar o que for preciso dentro do prazo estabelecido. Porém, é também um homem que luta constantemente contra seus demônios internos e sua própria extinção. Cada dia é um degrau a ser suplantado em busca de sobrevivência. E eu até poderia dizer aos leitores dessa crítica que seu maior problema é o vício em álcool, mas eu não estaria fazendo jus a complexidade que envolve a rotina desse personagem.
Do outro lado desta equação turbulenta chamada sétima arte, encontra-se um plêiade de seres irracionais e trapaceiros os mais diversos, mas não menos brilhantes. Vocês sabem tanto quanto eu (e se não sabem, deveriam saber): hollywood sempre esteve repleta de empresários antiéticos, predadores sexuais e cafajestes os mais sofisticados. E sempre foram eles que fizeram da meca do cinema o que ela é. Então, imaginem a situação de Mank tendo que conviver diariamente com homens da laia de Louis B. Mayer, David O. Selznick e, é claro, o magnata das comunicações, William Randolph Hearst. Resultado: uma labuta sem fim rumo ao paraíso (no caso, aos projetos bem sucedidos).
Esse homem, partido moralmente e fisicamente, isola-se numa casa distante acompanhado da jovem e impulsiva Rita Alexander (Lilly Collins), capaz de escrever cada linha de pensamento que ele porventura tenha apta a ser filmada, e promete escrever um sucesso de bilheteria como nunca houve antes. Tudo que a hollywood, que ainda vive as consequências da chamada grande depressão, precisa e urgentemente. E então? Como você reagiria a toda essa pressão? Honestamente, eu já imagino até a resposta.
Entre flashbacks que revivem a trajetória de Mankiewicz, diálogos ácidos sobre o presente e o futuro do cinema, brigas recorrentes com os empregados escalados para vigiá-lo e conversas picantes com a bela Marion Davies (Amanda Seyfried), amante de Hearst, Fincher compõe um belíssimo trabalho técnico e narrativo. Tudo no longa remete ao passado com um brilhantismo que, atualmente, somente a netflix é capaz de nos oferecer. Som, cenários, fotografia, o preto-e-branco escandaloso de tão autêntico... Mank é simplesmente um aula de cinema para aqueles cinéfilos que andavam com saudade da verdadeira sétima arte e cansados de heróis e seus superpoderes.
E não pensem os espectadores mais incautos que o longa foge de polêmicas. Acredito que a produção, durante toda a temporada de prêmios, dará muito o que falar por seu aspecto controverso. Embora o roteiro de Jack Fincher, pai do diretor, não toque no assunto de forma direta, muitos membros da academia irão levar em consideração o livro Criando Kane, de Pauline Kael, no qual a famosa crítica de cinema detona Orson Welles, dizendo que ele nunca escreveu uma linha do roteiro do filme. Sou capaz de apostar um braço que ainda vai haver muito bate-boca daqui até a entrega do Oscar sobre esse assunto.
Mas a principal contribuição dada pelo diretor, a meu ver, é a maneira como ele expõe a nu a hollywood dos tempos passados. Um terra de lobos competindo selvagemente e constantemente pelo último pedaço de carne disponível. E mais: é possível entender aqui, com clareza, a indústria do cinema americano que idolatrou figuras como Harvey Weinstein nos últimos anos. Em outras palavras: hollywood gosta de pilantras e eles sabem ser extremamente bem-sucedidos. Difícil mesmo é permanecer ético e coerente dentro de uma estrutura sórdida dessas...
E como bem disse um amigo de Mank, aconselhando-o durante o processo criativo: "escreva muito, espere pouco". Realmente, não é um lugar para se viver de expectativas, mas sim cumprir agendas.
P.S: um rápido conselho (ou dica): se puder, antes de ver o filme, assista o clássico de Orson Welles. Acreditem: vai fazer uma diferença gigantesca ao final da experiência!
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O futuro não é realmente o problema (Tenet, de Christopher Nolan, recorre às viagens no tempo para falar de um problema que, na verdade, está entre nós hoje, agora, neste exato momento: a ganância)
O tempo e essa eterna mania que temos de rotulá-lo, classificá-lo, retê-lo, dar a ele uma dimensão maior do que a suposta. Queremos mudar o tempo que as coisas - e até mesmo os seres humanos - duram. E não podemos. E isso nos entristece. Vejo nisso uma espécie de "complexo de Deus" que vive perseguindo a humanidade desde Adão e Eva. E nada fazemos para corrigir este aspecto, essa mania, essa eterna mania de querermos ser mais do que realmente podemos.
Esta semana enfim consegui assistir o famigerado Tenet, de Christopher Nolan. O filme escolhido para a reabertura dos cinemas nos EUA pós-pandemia. Infelizmente a Covid-19 insistiu e o longa não conseguiu a projeção que ambicionava, mas deixou em minha mente uma interessante reflexão sobre o tempo e as decisões equivocadas que nós, seres humanos, volta e meia tomamos.
Após um missão mal sucedida para conter um atentado terrorista durante um concerto, um agente é apagado dos quadros funcionais da organização para a qual trabalha e é dado a ele uma nova missão. Contudo, de concreto mesmo, as únicas coisas que esse homem precisa saber são que ele irá evitar uma terceira guerra mundial e que nada do que ele viu até então permanecerá o mesmo. Suas expectativas pessoais e profissionais serão completamente alteradas nesse novo trabalho.
Parece simples, não é mesmo? Pois é... O problema é que o diretor é justamente o Christopher Nolan. Então preparem-se para surpresas e reviravoltas.
Enquanto nos deparamos com uma nova tecnologia capaz de alterar completamente a percepção que temos do tempo, um Oligarca Russo disposto a rebootar o mundo e falsificações de obras de arte, o diretor nos impressiona com extraordinárias cenas de ação (que, honestamente, eu - se fosse vocês - abriria o olho, pois podem ser meras distrações para que não vejamos o real objetivo da história).
Aliás, o próprio protagonista da história (o interessante ator John David Washington, que já havia chamado a minha atenção no ótimo Infiltrado na Klan, dirigido por Spike Lee) não tem um nome para chamar de seu. É identificado junto ao público exatamente desta forma: como o protagonista. E seus únicos reais "aliados" - é, eu sei... até esta palavra precisa estar entre aspas, pois no mundo que eles vivem, todos podem trair todos a qualquer momento - são Kat (Elizabeth Debicki), esposa chantageada do oligarca Sator (vivido por Kenneth Branagh) e Neil (Robert Pattinson), seu contato na nova organização para a qual trabalha.
Contudo, mesmo com todas as tentativas do diretor para mostrar ao público espectador as implicâncias de tais atos inescrupulosos para o futuro da humanidade, fiquei a todo momento pensando no quanto o hoje e o que estamos fazendo de errado com o mundo atualmente é colocado em segundo plano, quando não deveria estar nessa posição.
Vejo nisso, no problema da ganância desenfreada (e esse, para mim, é o real mote do longa-metragem) e a violência gratuita que nos atingiu em cheio nas últimas décadas e que grande parte da humanidade prefere varrer para debaixo do tapete um mal-estar recorrente da nossa civilização. Viramos criaturas melancólicas e repetitivas que adoram adiar os problemas e colocar a culpa no amanhã, no que virá. E ao mesmo tempo não fazemos nada de efetivo para melhorar o hoje. Logo, ele permanece refém das mesmas atrocidades e perigos. E eu me pergunto até quando assim será.
Acredito piamente que Nolan teria sido mais feliz em seu projeto se direcionasse a discussão para os dias de hoje. O futuro não é realmente o problema. Pelo menos não se continuarmos de braços cruzados ad infinitum. Vivemos numa pandemia e tem gente festejando, se aglomerando, enchendo a cara. Não sabemos se estaremos vivos semana que vem e tem gente planejando as próximas cinco, seis décadas. Honestamente: parece-me uma contradição. E nesse quesito o filme tropeça.
Mas não fiquem chateados. Há muito a se admirar em Tenet. O aprumo estético e visual que o consagrou junto aos fãs continua lá. Aproveitem. Entretanto, não consigo deixar de pensar que se trata de um filme menor e por vezes vazio dentro de sua filmografia. E isso aconteceu por um mero deslize. Nolan consegue fazer melhor do que isso.
E antes que me apedrejem nos comentários abaixo, paro por aqui. Quero que vocês, leitores, tirem suas próprias conclusões. Mas um aviso para os iniciados na obra do diretor: não acreditem em tudo que vêem e fiquem atentos a cada take. A qualquer momento sua interpretação sobre a trama pode ser desmentida ou reavaliada.
P.S: lembrei de uma coisa agora, talvez seja viagem minha, mas... Quem assistiu a saga de James Cole em Os 12 macacos, de Terry Gilliam, vai se identificar imediatamente com este filme aqui. Caso não seja o seu caso, peço antecipadamente desculpas. É que às vezes eu devaneio mesmo.
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Isto é hollywood (Zeroville, de James Franco, é soturno, em alguns momentos depressivo, mas nem por isso deixa de ser um panorama interessante da meca do cinema mundial)
Vemos o filme somente quando ele já está pronto, finalizado, montado e na maioria das vezes não nos damos conta do real trabalho que dá realizá-lo, captar verba, encontrar elenco, locações, filmá-lo, inserir trilha sonora e efeitos especiais, pós-produzí-lo, etc etc etc. E com a chegada do mercado de dvds eu passei a correr atrás dos making offs e entrevistas embutidos no menu para saber mais a respeito das produções cinematográficas. Para mim passou a ser o grande barato dentro da indústria do home video.
E o que aprendi com ela? Que precisamos, como cinéfilos, dar mais valor aqueles profissionais pau pra toda obra, os chamados "faz-tudo" dentro do set filmagem. Não fossem eles a sétima arte - e principalmente hollywood - jamais teria produzido obras-primas como Apocalipse now, Contatos imediatos do terceiro grau, Crepúsculo dos Deuses, Tubarão, Todos os homens do presidente, dentre tantos outros.
Em Zeroville, projeto do ator e diretor James Franco, essa função é desempenhada por Vikar (interpretado pelo próprio Franco), um construtor de cenários que se muda para Nova York para ficar mais perto da meca do cinema, sua grande paixão. Ele é aquele tipo de profissional dentro da equipe de filmagem que precisa "entregar o milagre pronto" na hora que os produtores disserem que é a hora. E nem sempre isso é possível. E quando é chamado por Viking (Seth Rogen), um abutre da indústria, para editar um longa, ele percebe definitivamente o quanto que prazos são realmente datas complicadas para serem seguidas à risca.
Não bastasse a rotina e as cobranças do instável e prepotente produtor Rondell (Will Ferrell), ele ainda por cima se apaixona pela instável Soledad (Megan Fox), uma atriz do segundo escalão que luta para criar a filha adolescente e rebelde. Moral da história: em seu íntimo, Vikar sabe que está metido numa roubada desde o início, mas é tarde demais para abandonar o barco.
Talvez a única coisa que exerça uma paixão igual a que sente por Soledad é a devoção que ele tem pelo filme Um lugar ao sol, do diretor George Stevens e seu protagonista, o ator e galã Montgomery Clift. E é dessa mistura de sentimentos que nasce o grande conflito que irá perseguir Vikar por toda a trama, que ganha contornos sobrenaturais (em alguns momentos, confesso, desnecessários).
O importante mesmo para o espectador é levar em consideração que Zeroville tem uma narrativa que segue a premissa "isto é hollywood", com todas as distorções e mau caratismos que a terra mais famosa do cinema é capaz de carregar em seu bojo. E desde já adianto: fiquei curioso para ler o romance homônimo do escritor Steve Erickson, que serviu de base para a realização deste projeto. O filme conseguiu plantar em mim uma semente da dúvida sobre as intenções do original.
Para quem curte produções sobre bastidores da indústria, como A noite americana, de François Truffaut e Ed Wood, de Tim Burton - só para citar dois dos meus inúmeros favoritos - terá nesse aqui um prato cheio e alucinógeno.
Contudo, é preciso avisar de antemão que Franco inseriu uma espécie de segunda trama um tanto confusa para mexer com os brios dos espectadores (ou talvez seja a trama principal, mas eu tenha preferido o lado backstage da história, pois adoro referências ao passado e homenagens à era de ouro de hollywood). Enfim... Estejam preparados!
Mesmo assim, embora não concorde com todas as suas escolhas criativas, reconheço uma evolução na carreira de Franco como diretor. Já havia gostado bastante de O artista do desastre, sobre a inusitada figura do cineasta Tommy Wiseau e o seu "pior filme de todos os tempos, The Room" - que ganhou até Globo de Ouro - e embarquei também neste. Pena que seus projetos pessoais sejam tão difíceis de encontrar, mesmo na internet. O rapaz já enveredou até por William Faulkner e Charles Bukowski...
No geral, fica como opção alternativa para aqueles espectadores que volta e meia cansam da mesmice exibida no circuito comercial e desejam um plano B para quando os serviços de streaming estão na entressafra. Procurem! Vale, pelo menos, um domingo à tarde.
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Aquela decisão que ninguém quer tomar (Nunca, raramente, às vezes, sempre, de Eliza Hittman, se debruça de forma gentil e inteligente sobre a questão do aborto e suas consequências posteriores)
O aborto. Não importa quantos séculos passem e o quanto a sociedade evolua, ele sempre será um tema tabu. E digo isso não por conformismo, mas pelo desejo que a própria sociedade tem de permanecer conservadora diante dos assuntos mais espinhosos e contraditórios. Parece, na maioria dos casos, um mecanismo de defesa ou um porto seguro. Seguir a maioria acomodada à ter sua própria opinião. Entretanto, nem sempre aqueles que seguem a manada fazem na prática o que dizem no conforto de seus grupos sociais.
Em outras palavras: conheço muita gente que é contra o aborto, mas se fosse a sua vida, seu corpo, tiraria a criança na mesma hora. E mesmo assim adora criticar a decisão dos demais. Ver Nunca, raramente, às vezes, sempre, da diretora Eliza Hittman, me deixou pensando nisso durante toda a sessão. O quanto somos hipócritas ao condenar decisões alheias, mas quando tomamos as nossas o buraco é sempre mais embaixo.
O longa de Eliza segue a jornada de Autumn (Sidney Flanigan, em seu primeiro trabalho de atuação) que descobre estar grávida de quase quatro meses, fruto de um relacionamento abusivo, e decide fazer um aborto. Seus pais não sabem de nada e ela pede ajuda à sua prima Skylar (Talia Ryder) com quem viaja para outra cidade para interromper a gravidez.
Antes mesmo da possível chegada de um bebê a vida de Autumn não se enquadra na categoria de "fácil" ou "bem sucedida". Ela não se sente incentivada dentro de casa, não é respeitada por nenhum dos homens com quem se relacionou e tem como chefe no trabalho um homem cafajeste, que a assedia descaradamente. Logo, como a chegada de uma criança poderia melhorar a sua vida em algum aspecto?
Resultado: tomar aquela decisão que nenhuma mulher gostaria de tomar, mas às vezes se torna a única viável. E o caminho será espinhoso, cheio de perguntas a serem respondidas, pois há um sistema que existe para que voltemos atrás em nossas decisões. Para que não seguimos em frente, que sejamos condescendentes (como todo bom pagador de impostos!). E Autumn precisará ter muita força de vontade para chegar ao final dessa saga.
Detalhe importantíssimo: mesmo terminada a intervenção não há garantias de que arrependimentos não surgirão a longo prazo, pois a vida não é uma ciência exata e está sempre nos colocando contra o muro, testando nossas escolhas.
Houve um momento da história de Autumn em que me peguei pensando em Ramón Sampedro, personagem de Javier Bardem no filme Mar Adentro, de Alejandro Amenábar. A diferença é que Ramon lutava pelo direito à eutanásia e se deparou com um sistema ainda mais covarde do que o hospitalar que fez o aborto da jovem, pois precisou ir aos tribunais para ver reconhecido o seu direito à morte, na linha "meu corpo, minhas regras".
E embora a diretora não tenha preferido um caminho ácido ou mesmo embrutecido, Nunca, raramente, às vezes, sempre se mostrou, pelo menos para mim, uma narrativa incômoda a todo momento. E me peguei pensando no quanto é difícil ser mulher em qualquer sociedade, não importa se você vive na África ou num país de primeiro mundo.
Autumn é o retrato vivo da sociedade maculada pelo machismo extremo, que protege homens cafajestes, às vezes crias de famílias abastadas e se vê numa posição de fazer o que for necessário - mesmo que o necessário lhe custe um rótulo de miserável ou assassina por parte dessa mesma sociedade deturpada - para chegar ao dia seguinte. Nesse momento sua vida se torna um amontoado de "infelizes dias seguintes" sem a menor perspectiva de dias melhores por vir.
E ainda tem gente hipócrita, no conforto de suas mansões, que prefere chamar essas mulheres de ressentidas, mal amadas ou vulgares...
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Clã dos imorais (Crash: estranhos prazeres, de David Cronenberg, passeia pelo caos urbano e o fanatismo para nos mostrar o quanto o povo norte-americano idolatra suas próprias obsessões)
Com o passar dos anos e o convívio com o cinema do mundo todo (e não somente Hollywood, como acontecia na minha adolescência) aprendi a enxergar a sétima arte sob a ótica de dois grupos de diretores. Os primeiros são aqueles que buscam a glória, a projeção, que não titubeiam diante da obtenção do sucesso. E os do segundo grupo, meus favoritos, são os provocadores por natureza. Aqueles que não se rebaixam diante do star system ou das convenções morais de sua terra natal. Se têm que escandalizar, escandalizam; se é pra debochar, debocham sem dó. E principalmente: estão sempre um passo à frente do politicamente correto.
Dentre os meus diretores preferidos desse grupo encontram-se figuras como John Waters (que anda sumido das telas, por sinal), Terry Gilliam, Glauber Rocha, Brian de Palma, Oliver Stone, Fernando Meirelles, Wong Kar-Wai, Quentin Tarantino, Tom Tykwer, Pedro Almodóvar, Bong Joon Ho, Alejandro González Iñárritú, Beto Brant, Roberto Rossellini, David Lynch e, claro, desde sempre, David Cronenberg.
E no caso de Cronenberg em particular cabe ainda um adendo por toda a sua contribuição artística junto ao departamento de maquiagem (como esquecer de Scanners: sua mente pode destruir e A mosca?) e a enorme habilidade que tinha, no passado, para trabalhar com efeitos práticos, muito antes dos efeitos especiais e o CGI ditarem os rumos da indústria cinematográfica americana.
A obra cinematográfica de Cronenberg está repleta de projetos inusitados, que me deixaram de cabelo em pé. De Videodrome - a síndrome do vídeo até Gêmeos - mórbida semelhança, não teve uma só película desse gênio sórdido que não mexeu profundamente comigo. Contudo, nenhum outro projeto dele me colocou de ponta a cabeça como Crash: estranhos prazeres. E talvez por isso nunca tenha tomado coragem de fazer uma crítica a respeito. Até agora.
Crash pega um diretor de tv que acaba de sofrer um acidente de carro, James Ballard (James Spader, do clássico eterno Tuff Turf - o rebelde), para usá-lo como fio condutor numa jornada de autoconhecimento rumo aos EUA dos dias de hoje. Só que essa história foi contada em 1996.
Após o acidente e a consequente internação, James - acompanhado de sua esposa Catherine (Deborah Kara Unger) - conhece Helen (Holly Hunter), Vaughan (Elias Koteas) e Gabrielle (Rosanna Arquette), uma trupe de desajustados que frequentam um grupo fascinado por acidentes automotivos. Eles se reúnem em plena madrugada para assistir à réplica de famosos acidentes que levaram à morte grandes celebridades, como o astro hollywoodiano James Dean. Mais do que isso: vivem tão intensamente a cena que parecem estar presentes no momento exato em que elas aconteceram.
Em outras palavras: James, Catherine, Helen, Vaughan e Gabrielle compõem, na verdade, um clã dos imorais, pessoas que subvertem a própria ética com o único interesse de satisfazer seus prazeres nefandos. E nesse sentido tanto o livro homônimo de J. G. Ballard - que serviu de base para o roteiro - como a adaptação para as telas de Cronenberg são um deleite para os olhos depravados mais apaixonados. Com seu sarcasmo e ironia únicos, o diretor constrói uma mise-en-scene caótica e desesperada, um contraponto à ideia que os Estados Unidos adora fazer de si mesmo para o restante do mundo.
Enquanto testemunhamos a destruição e o esfacelamento social diante de nossos olhos, Cronenberg ainda tem tempo de nos perturbar um pouco mais com uma trilha sonora incômoda, dessas que só serve para nos acompanhar (e confundir) quando terminamos a sessão. Podem ter certeza: a música vai ficar ecoando na sua cabeça um bom tempo depois que o filme terminar, pois o objetivo dela é exatamente este.
Logo, o resultado final dessa equação macabra não poderia ser outro: o espectador se vê invadido por uma crônica do caos, onde os seres humanos não passam de mercadorias frágeis e fúteis, implorando por migalhas de atenção. E não se esqueçam da sexualidade de cada um dos membros do clã. Sim, aqui ela é um personagem coadjuvante importantíssimo na hora de entendermos a carência e o desespero de suas vidas. Eles parecem, a todo momento, se segurar a boias salva-vidas invisíveis, na esperança de dias melhores que nunca vêm.
Após terminar o filme, corro para o site IMDb e me deparo com a informação de que o último longa de Cronenberg, Mapas para as estrelas, é de seis anos atrás. E fico triste. Espero sinceramente que ele não tenha se aposentado. Ainda não. Um artista brilhante desses não pode ficar sumido dos cinemas tanto tempo. Volta, David! Só mais um pouco... Os fãs imploram.
P.S: não confundir esse filme com Crash: no limite, do diretor Paul Haggis, vencedor de 3 Oscars em 2006 e que roubou descaradamente o grande prêmio da noite do extraordinário O segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee. A confusão seria, no mínimo, injusta.
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Cadeia alimentar (A hq Sin City - a cidade do pecado, de Frank Miller, é uma graphic novel, uma police story e, principalmente, uma radiografia cruel sobre uma metrópole esfacelada pelo tempo e pela ganância humana).
Toda vez que eu leio (e releio) o quadrinista Frank Miller - mestre por trás de álbuns seminais da nona arte como Ronin, O cavaleiro das trevas e Elektra assassina - eu chego à conclusão de que aquelas pessoas que gostam de chamar as histórias em quadrinhos de "arte marginal" não entendem absolutamente nada desse universo. Mais: querem, no fundo no fundo, diminuí-la isso sim.
E recentemente eu decidi reler Sin city: a cidade do pecado com a intenção de aparar algumas arestas que, porventura, tenham ficado de minha leitura original, e ainda ficou mais nítida essa minha impressão. O cara é definitivamente um mestre e não tem nada de marginal. Não vejo suas histórias à margem da sociedade. Pelo contrário. Ele desnuda o mundo cruel no qual vivemos como poucos.
E em Sin City isso ainda ganha o requinte luxuoso de sua habilidade ímpar para trabalhar com luz e sombras (algo que sempre foi a marca registrada do artista).
Acompanhamos de forma angustiante a saga de Marv, um retrato vivo dessa metrópole cinza e destruída pela ausência de valores morais dignos. Ele está dormindo quando a mulher que mudou a sua vida, a única que foi capaz de lhe entender, Goldie, é assassinada, e decide pegar o desgraçado que fez isso com ela. Mas trata-se de uma missão inglória e ele terá de enfrentar muitos percalços além do sarcasmo e a ironia habituais de uma cidade que simplesmente não facilita para ninguém, ainda mais quando se está na rabeira da chamada cadeia alimentar.
E quem manda nesse lugar é Roark. Mais do que um político, um empresário de sucesso, um midas, etc etc etc, ele é o sintoma vivo da hierarquização social doentia e tendenciosa dos novos tempos. Em outras palavras: ele representa a doença social que o mundo precisa fabricar para justificar o desnível social e a incapacidade de vivermos juntos em harmonia.
Mas acham que Marv desistiu por causa disso? Nem pensar! Sempre rodeado por belas mulheres (a dançarina Nancy; sua agente de condicional, Lucille; e até mesmo sua pistola, que ele chama amorosamente de Gladys) e com um faro indestrutível para a violência, ele vai deixando um rastro de sangue por onde passa. É como um trem desgovernado de encontro a um muro de concreto. Não se sabe o que vai acontecer ao final da história até que aconteça...
No quesito visual, Sin City é um escândalo. Se existe uma razão para eu nunca ter me aventurado nesse mundo das graphic novels (e já disse em outros textos sobre quadrinhos que uma das maiores frustrações que eu tenho na vida é não saber desenhar) é o fato de que jamais conseguiria criar o mundo que Miller criou aqui. É simplesmente magnífico e único, impossível de replicar. E a ausência de cores engrandece ainda mais o seu estilo. O álbum é seco, lírico, brutal, cafajeste como somente as boas police stories conseguem ser.
E por incrível que pareça (podem até me chamar de maluco por escrever isso aqui), mas senti de certa forma a presença espiritual da narrativa de autores como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, gênios da Black Mask, nessa obra-prima. Fora, logicamente, a influência eterna que Will Eisner e o seu extraordinário Spirit têm sobre o autor.
Ao final da leitura minhas mãos coçam e eu leio tudo de novo, desta vez fazendo anotações num bloco. Procuro na minha coleção de dvds a adaptação para o cinema feita pelo próprio Miller e o diretor Robert Rodriguez, mas só assisto ao primeiro segmento (o que condiz com a trama do álbum e na qual Marv é interpretado pelo ator Mickey Rourke). E finalmente me dou conta de que estou em êxtase, diante de tamanho brilhantismo.
Sin city é uma derradeira radiografia sobre as metrópoles esfaceladas deste século XXI, que se preocupam mais com relações comerciais e poder absoluto do que com vidas humanas. E dentro deste universo sujo Frank Miller insere uma fauna de personagens os mais vis e estereotipados possíveis (como, aliás, não poderia deixar de ser!). Logo, o resultado dessa equação amoral e sórdida é um espetáculo visual de proporções gigantescas e aterradoras. Portanto, tudo o que um bom leitor de quadrinhos poderia desejar.
E se quiserem saber mais, vão - pelo amor de Deus! - ler e tirar suas próprias conclusões vocês mesmo. Trata-se de uma viagem pessoal e intransferível. E uma viagem ao inferno com passagem só de ida.
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American vertigo (À prova de morte, de Quentin Tarantino, fez parte de um projeto que não foi entendido da maneira como merecia quando foi lançado e acabou por se notabilizar como um grande painel sobre o caos americano de ontem, hoje e quiçá amanhã)
A sétima arte realmente é insana e cruel, às vezes... Vejam por exemplo o caso abaixo:
Juntem um filme-homenagem aos cinemas de segundo escalão que forneciam como único entretenimento produções baratas, arranhadas, com atuações viscerais, ruídos em excessos, falhas na trilha sonora e na coloração da tela e um diretor cuja mente tresloucada e seu lado pesquisador fanático por temáticas as mais inusitadas é capaz de qualquer coisa.
Resultado: Um projeto autoral animalesco (Peraí... autoral? Feito em plena era de crise dos estúdios hollywoodianos quando a expressão risco zero - ou o que quer que isso significasse - virava clichê barato na língua de produtores, diretores e outros chefões das principais companhias?).
Assim é Grindhouse, um projeto a quatro mãos realizado pela dupla Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, a quem poucos realmente assistiram juntos no mesmo rolo nos cinemas, seja por incompetência da empresa distribuidora, seja por preconceito puro. Passados dois anos de seu lançamento na versão integral, À prova de morte, a metade tarantinesca, deu as caras mostrando a face cínica de seu realizador, um profissional que nunca escondeu ao longo da carreira o apetite pelo diferente e o chocante.
A grande marca pessoal de Tarantino está lá: a capacidade de transformar seus protagonistas em alter egos de sua própria - e irracional, que fique bem claro! - psique. E no caso de Stuntman Mike (Kurt Russell), o dublê fracassado que sai às ruas, furioso (mas sem perder o sorriso sedutor e aberto), atrás de suas vítimas inocentes, isso ainda fica mais evidente. Provavelmente é uma de suas criações mais autobiográficas, mostrando abertamente reflexos de suas influências construídas ao longo da carreira, como os debochados e subversivos Enzo Castellari e Russ Meyer, pais de uma - podemos assim chamar - sétima arte provocadora, insultante.
Como pano de fundo a toda essa agressividade visual, e eis o mais interessante de toda essa viagem tarantiniana, o cineasta constrói uma exuberante enciclopédia da falta de moral do mundo americano - algo já mostrado anteriormente em Pulp fiction -, onde todas as obsessões (o fascínio erótico pelas cheerleaders, eternas e rebolativas líderes de torcida; a lap dance, versão minimalista dos shows de striptease que alucinam os becos mais inóspitos das principais cidades americanas; a sensual apresentadora do programa de rádio a quem todos querem saber se o corpo, a silhueta, é tão sensacional quanto a voz que ouvem diariamente...) estão escancaradas.
E que não venham os leitores desta crítica me dizer que nunca se pegaram pensando sobre a dona de certa voz sensual de alguma rádio carioca! "Como será que ela é ao vivo e a cores?", numa hora dessas é uma pergunta mais do que óbvia, isso fora os desejos de consumo (a bolsa da Prada, o carro dos sonhos, etc) e fanatismos que fazem parte da ordem do dia para servir de "inspiração" à saga contumaz desse road killer.
À prova de morte é amoral, sim, e em nenhum momento nega isso. E Tarantino não alivia o espectador em momento algum quando o assunto é exacerbar a sua (ou do personagem, como preferir interpretar!) carnificina rodoviária.
Se havia espaço, naquela época, para cinema como esse em tempos de globalização e de investimentos no óbvio, fadado a quebra de recordes e bilheterias? Não faço a menor ideia. O que sei de fato, passadas as quase duas horas de projeção, é que se trata de um filme mais do que necessário para entendermos o ser humano da contemporaneidade e suas distorções comportamentais. Disso não há a menor dúvida.
Se por um lado você pensa "Putz! Esse filme é nojento, é atroz, é misógino até a medula", por outro fica clara a noção de que a humanidade realmente passou dos limites em muitas das decisões que tomou nas últimas décadas. E não há nada de cafajeste em deixar isso claro para o público. Não vejo essa abordagem como politicamente incorreta, pois certas vísceras e deslizes precisam ser mostradas, doa a quem doer.
Em suma: estamos diante da vertigem americana, aquilo que nossos irmãos da terra do Tio Sam sempre adoraram varrer para debaixo do tapete (e continuam varrendo até hoje, na maior cara de pau!). E ver toda essa morbidez iluminada pelo sarcasmo e o deboche de Mr. Tarantino não tem preço.
Eu sei, eu sei... Se você nunca viu À prova de morte, deve estar pensando: onde é que eu encontro essa relíquia? E caso já tenha visto, talvez tenha se pego dizendo a si próprio: eu deixei passar alguma coisa quando vi anteriormente. Preciso ver de novo, agora! Então aproveite a pandemia e o tempo livre. Você não vai se arrepender.
P.S (há tempos eu não escrevia um desses): eu nunca mais vi nada, nem no cinema nem em casa, com a atriz Rose McGowan. Por onde anda essa moça?
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Diz o senso comum que todo mundo tem um dom. Uns cantam, outros escrevem, a outros foi dado o dom de jogar futebol de forma sublime, fora os que atuam, desenham, dirigem cinema. compõem músicas, etc etc etc. E às vezes achamos o dom de certas pessoas menor, pois nossa petulância não nos permite enxergar o talento alheio nas mínimas coisas. Estamos enganados quando pensamos assim!
Ontem a cidade do Rio de Janeiro perdeu um de seus grandes talentos. E, no entanto, para muitos, ele era apenas alguém (mais um) que sabia desenhar. Não entendem que além de ele desenhar como poucos, fez de sua obra gráfica uma radiografia da cidade maravilhosa.
Falo do chargista e caricaturista Lan, mestre do traço, que faleceu em Petrópolis aos 95 anos, em decorrência de uma pneumonia.
Lan pode se considerar um privilegiado a depender de mim, porque desde moleque uma das primeiras coisas que eu vejo no jornal - em qualquer jornal - são as tirinhas e charges. Sempre me considerei um frustrado por não saber desenhar. E era fácil gostar do traço dele, de suas intenções gráficas. Poucos representaram a cidade do RJ e o Brasil como ele!
Portelense convicto, flamenguista apaixonado, mulherólogo por natureza (expressão, aliás, que ele utilizou se referindo a si próprio durante uma entrevista na TV) e um artista de visão única, que sabia ironizar, denunciar e encantar com o mesmo peso e medida.
O italiano de nascimento que viveu na Argentina, no Uruguai e na França encontrou aqui, na terra de Machado de Assis, do samba e do futebol, a sua verdadeira pátria. E dividiu sua carreira entre trabalhos para o Última Hora, jornal de Samuel Wainer que revolucionou a imprensa, o Jornal do Brasil e O Globo.
Detalhe importante: no jornal O Globo criou a coluna Cariocaturas, um de seus maiores sucessos. Aqui, denunciou a truculência policial, falou das distorções dessa metrópole controversa e nos impressionou com mulheres lindíssimas, de curvas descomunais. Sempre vou me lembrar das mulheres que desenhou e digo mais: além dele, acredito que somente Guido Crepax, autor da saudosa Valentina, tenha feito também um trabalho impressionante nesse quesito.
E quase ia me esquecendo: não bastasse tudo o que desenhou, sentiu, pensou, ainda arranjava tempo para assinar capas de discos, como as que fez para o cantor Zeca Pagodinho e vinhetas para os intervalos comerciais da programação televisiva.
O país e o mundo perdem mais um artista visual extraordinário - assim como aconteceu recentemente com Quino, criador da eterna Mafalda - e herdam um legado único, praticamente uma ensaio sociológico em formato visual.
E ainda assim vai ter gente dizendo que "era só mais um desenhista talentoso". Não, me desculpem a franqueza, mas não era só isso não!
E como eu sempre faço ao final desses obituários: fica com Deus, mestre!
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Palavras podem causar danos permanentes (Talk radio: verdades que matam, de Oliver Stone ou apenas a vida se transformando num entretenimento sujo e sórdido)
Embora eu seja formado em comunicação social sempre fui naturalmente desconfiado sobre certo tipo de profissional que trabalha nessa área. Trata-se de um mercado repleto de aspones, deformadores de opinião e gente que se acha a quintessência do universo simplesmente porque comanda um programa de auditório ou de rádio, chefia uma redação de jornal ou mesmo a bancada de um telejornal.
Em outras palavras: alguns profissionais se consideram indispensáveis dentro desse universo, chegando a se autointitular "a única versão relevante dos fatos".
Entretanto, há um lado meu também eternamente curioso sobre essas pessoas e como elas fazem o mundo girar ao seu redor até que uma catástrofe ocorra ou a lucidez prevaleça sobre seus argumentos. E a sétima arte está repleta de grandes exemplares dessa categoria (desde já indico aqui dois dos meus favoritos: Um sonho sem limites, de Gus Van Sant e O abutre, de Dan Gilroy).
Oliver Stone, um de meus cineastas-fetiche, sempre dedicou parte do seu tempo e sua obra cinematográfica a esmiuçar a podridão e a contraditoriedade que há por trás desse mundo midiático sórdido. E nos entregou longas que entraram para a história - seja pelo mérito pessoal deles, seja pela controvérsia embutida na história. E um deles eu vinha perseguindo durante anos em lojas de dvds usados, sites de streaming e cópias piratas, sem sucesso. Até anteontem.
Refiro-me à Talk Radio: verdades que matam, de 1988. E desde já adianto: valeu a pena esperar tanto tempo. É não somente ácido do início ao fim como diz muito sobre o que a sociedade americana acabou se tornando com o passar dos anos.
O filme nos apresenta o âncora do programa de rádio Night talk - em tradução rasteira: conversa noturna -, Barry Champlain (Eric Bogosian, fantástico!). Apesar do sucesso de sua faixa de programação ele é uma figura vista como execrável por grande parte da sociedade norte-americana e sua vida pessoal é uma verdadeira bagunça. Divorciado e tendo um caso com a produtora do show, chegou naquele ponto da própria existência em que o único motivo que o faz sair da cama todo dia são as noites de segunda, na qual apresenta seu polêmico programa.
Um novo patrocinador surge na rádio oferecendo-lhe a possibilidade de uma transmissão mais ampla e isso não o satisfaz totalmente, pois Barry exige manter o seu controle criativo. E qualquer interferência de fora, para ele, é uma ofensa. O que vale mesmo, o que tem importância na hora H, é como ele comanda o show. E é nesse quesito que se encontra o grande mérito do longa.
Digo isso porque a maneira como Barry conduz seu espetáculo é o retrato vivo e amargo dessa América que não se cansa de vender-se como "a maior nação de todos os tempos", mas na prática não passa de um país cheio de subterfúgios e contradições. E olha que, como disse num parágrafo acima, a película já tem mais de três décadas!
Barry xinga, insulta, esnoba ouvintes, só ouve e dá papo àquilo que o interessa, recebe um pacote-surpresa de um interlocutor revoltado, dá corda a tipos exóticos e nonsenses, pede pausas fora de hora, ausenta-se (irritando até mesmo o seu empregador), e ainda dá atenção à ex-esposa, que ele convida para dar uma força a ele nesse momento de reviravolta na carreira.
Porém, é preciso enxergar as entrelinhas de toda essa discórdia. Oliver Stone está, na verdade, jogando o seu holofote sobre a vida e como nós, seres humanos, decidimos transformá-la num "entretenimento sórdido" (expressão, por sinal, da qual ele se utiliza quando chega ao apogeu da sua impaciência, num monólogo que por si só já vale pelo filme todo).
Ao final da sessão e completamente sem fala diante do desfecho aterrador, o que percebo é que Talk Radio meio que profetizou a sociedade contemporânea (que o diga os EUA). Viramos reféns da indústria falaciosa criada pela mídia e as corporações que vendem entretenimento óbvio e evasivo. E pior: nos orgulhamos de nossa acomodação, porque lutar contra é tão duro, cansativo e pouco recompensador que não vale o esforço. Pelo menos, não para a grande maioria que se diz "antenada com essa tal de globalização".
E o mais triste disso tudo é pensar que até mesmo hollywood já foi mais interessante e denunciatória quando o assunto era roteiro, boa história, etc. Agora precisamos nos contentar com literatura fantástica e homens e mulheres com superpoderes.
É... O mundo - e a indústria cinematográfica - não são mais os mesmos! E palavras, agora mais do que nunca, podem causar danos permanentes e irreversíveis.
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No confessionário (Os rapazes da banda, de Joe Mantello, expõe a nu o ser humano - principalmente a sua versão homossexual - e nos fala da eterna dificuldade de deixar o passado exatamente onde ele está)
Durante a graduação na faculdade, uma década atrás, estudei na mesma sala com um rapaz adepto dos movimentos LGBTQIA e ele escrevia sua monografia de final de curso acerca de figuras públicas deste mesmo segmento. Mais do que isso: ele queria também saber a opinião de pessoas heterossexuais sobre esses movimentos e certa vez perguntou-me o que eu pensava a respeito do assunto. E eu me lembro exatamente do que lhe respondi:
"Eu espero que essas pessoas tenham lucidez e muita paciência para lidar com o que ainda vêm por aí, de encontro a elas e de forma furiosa. Vejo o país se tornando cada vez mais conservador e covarde nos últimos anos e quem não se adequar ao sistema certamente será caçado por esses moralistas. Se eles (os homossexuais) não tomarem cuidado ou não souberem lidar com a situação, podem vir a se tornar os judeus do século XXI".
A reação do rapaz foi de apreensão, mas ao mesmo tempo de entendimento. Ele próprio já percebia o retrocesso do país e vinha tomando cuidado com o que falava em certos segmentos.
Pois é... Quem diria que eu me pegaria pensando nisso tudo de novo ao assistir a versão da Netflix para Os rapazes da banda, remake do diretor Joe Mantello para um clássico dirigido cinco décadas atrás pelo extraordinário William Friedkin!
Inspirado na peça homônima de Mart Crowley e construído de forma visível para transparecer a ideia de um teatro filmado, Os rapazes da banda conta a história de um grupo de amigos homossexuais que se reúne num apartamento para comemorar uma festa de aniversário quando se deparam com a chegada de um visitante inusitado que vira o clima do lugar de ponta-a-cabeça.
Michael (Jim Parson, o eterno Sheldon de Big Bang Theory), Harold (Zachary Quinto), Donald (Matt Bomer), Larry (Andrew Rannelis), Cowboy (Charlie Carver), Emory (Robin de Jesus), Bernard (Michael Benjamim Washington) e Hank (Tuc Watkins) se reencontram para relembrar histórias, dividir experiências e festejar ao som de boa música e muita bebida.
Contudo, todo esse planejamento ruirá com a chegada de Alan (Brian Hutchison), um antigo colega de faculdade de Michael que ele sempre considerou gay, "mas nunca teve coragem de se assumir" e que agora vive uma crise no casamento. Alan pergunta se pode dar uma passadinha rápida na festa para falar com Michael e ele topa. Pronto. Está iniciado o embrião do caos.
Michael pede que os demais convidados não fiquem tão eufóricos ou desmunhequem em excesso, pois o amigo pode não entender tamanho liberalismo. Entretanto, a ruptura e as divergências surgem, o álcool corre solto e Michael decide propor um jogo sórdido: cada uma das pessoas na festa deve ligar para alguém que já amou na vida e fazer uma declaração aberta.
Nesse momento a narrativa proposta por Crowley ganha um tom de confessionário e o que vemos na tela é o lado B do ser humano, aquele que ele sempre prefere esconder do convívio com os demais. Cicatrizes são expostas, arrependimentos são evidenciados e uma enorme lacuna onde despeito, rivalidade e ressentimento ditam as regras de forma cruel e ambígua aparece.
Ponto vital a ser vislumbrado pelos espectadores: prestem atenção nos poucos diálogos e nos muitos silêncios incômodos envolvendo Michael e Harold. Para mim, de todo o grupo são os dois agentes de maior rivalidade presentes na casa. E detalhe: houve um momento de tensão antecipatória providencial para que eu percebesse que o desfecho daquela situação seria catastrófico (mas não menos avassalador, pelo menos para os fãs de bom cinema).
Mantello e, logicamente, Crowley criam juntos um clima claustrofóbico, quase um oráculo onde sentimentos afloram quando mais deveriam ser represados. Sim, pois há desabafos na vida que ficariam melhor engavetados (principalmente quando a vida decidiu seguir um caminho diferente daquele que planejávamos a priori).
Moral da história (se é possível acreditar numa moral nesse caso): os seres humanos estão sempre à procura de suas piores escolhas, quando o silêncio deveria ser visto com lucidez, e simplesmente não conseguem se desapegar do passado. Não importa o quanto tentem.
E voltando ao parágrafo inicial: imaginem toda essa repressão sendo posta para fora em tempos de fake news, sensacionalismo e uma sociedade que busca a fama e o holofote a qualquer custo. Lógico que vai dar merda. Em algum momento, vai dar merda. Só não sabemos quando nem quanto.
Mas não dá para antecipar o tamanho da tragédia. Nós (ainda) vamos ter de esperar o epílogo de todo esse ressentimento...
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Desaprendemos a viver (A rede social, de David Fincher, completa 10 anos e, ao contrário do que acreditavam os descrentes e alienados, virou um retrato vivo de nossa incapacidade para vivemos coletivamente)
Eu pensei que a tecnologia, de uma forma geral, havia sido inventada para facilitar a vida das pessoas, quebrar barreiras e preconceitos, expandir horizontes, equivaler a sociedade como um todo. Infelizmente, mais uma vez estava enganado. Fui ingênuo, confesso. No final das contas o que se vê é que trincheiras foram ampliadas, visões de mundo contraditórias e gananciosas foram transformadas em redomas, até mesmo em bolhas ideológicas. E o resultado final dessa equação torpe é o exacerbamento doentio e artificial do que chamamos de vida online (como se vida isso, de fato, fosse!).
E o extraordinário diretor de cinema David Fincher nos avisou de tudo isso não faz muito tempo e não demos a mínima bola. Pior: uma grande parte da população mundial debochou, escarneceu, desdenhou, relativizou a questão...
Dito isto, vamos aos fatos que realmente importam.
Leio uma matéria no jornal O Globo que me informa que o longa-metragem de David Fincher, A rede social, completou uma década de existência e se tornou um ato premonitório da vida que estamos levando hoje em dia. E logo de cara eu penso: "cara, isso é triste! pacas!". Contudo, embora a premissa da matéria tenha seu caráter fúnebre e amargo, ela é exata em suas intenções. Nós (leia-se: a sociedade) realmente desaprendemos a viver.
O filme se debruça sobre a saga do quarteto Mark Zukerberg (Jesse Eisenberg, ótimo!), os irmãos Cameron e Tyler Winklevoss (Armie Hammer) e do brasileiro Eduardo Saverin (Andrew Garfield) para criar o facebook, hoje tão popularizado, milionário e alvo de inúmeras polêmicas, principalmente envolvendo questões de privacidade e ética. E desde já é preciso adiantar que eles tiveram a ajuda "luxuosa" do também midiático - e inescrupuloso - Sean Parker (Justin Timberlake), criador do Napster, polêmico serviço de compartilhamento de música que deu o que falar anos atrás. Logo, dá para imaginar por alto o legado dessa parceria incomum.
Esqueçam as rivalidades babacas óbvias e as discussões por conta de questões frívolas como "nós estamos namorando, mas você não mudou o seu status de solteiro do perfil" ou "eu pensei que nós fôssemos sócios igualitários nessa parada aqui!", a raiz do problema é ainda mais ampla. Trata-se de uma produção visionária sobre o fim de uma era. No caso, a era dos relacionamentos interpessoais.
E se acham que eu estou exagerando deem uma boa olhada ao redor nas festas de 15 anos e casamentos e formaturas ou qualquer outra celebração e percebam a quantidade de pessoas que não se comunicam mais. Todos preferem permanecer antenados em suas redes sociais, grudados a seus iphones de última geração. Nenhuma conversa ao vivo e a cores parece tão interessante quanto o mundo mágico do facebook (detalhe: ainda não existiam o instagram e o twitter, pelo menos com a força que eles têm hoje!).
Em outras palavras: robotizamos as relações humanas e nos orgulhamos disso, chamamos de um "passo natural rumo ao futuro". Resta saber que futuro é esse.
Na época de seu lançamento nos cinemas muitos críticos foram adversos à ideia da película ter sido indicada à 8 oscars (e venceu três na ocasião: roteiro adaptado, edição e canção original). Diziam muitos deles que a história não estava à altura dos Academy Awards. Que ela seria facilmente esquecida com o passar dos anos, pois tratava-se de uma temática vazia, quase fútil. Ledo engano, meus caros! O tema não somente se atualizou, se expandiu, como expôs nossa própria fragilidade para lidar com a situação.
Tornamo-nos avatares de nós mesmos, reles engrenagens de uma sociedade cada vez mais mecânica e repetitiva em seus atos. Sofisticamos o personagem de Charles Chaplin no clássico eterno Tempos modernos. E o problema agora não é mais a fábrica opressora e sim o fato de que não queremos mais o convívio humano da maneira como ele sempre existiu. Agora precisamos de uma interface, um computador, um reles aparelho entre nós. São eles que ditam como devemos nos portar, sentir, falar. Como disse antes: "cara, isso é triste!".
Não possuo respostas positivas ou soluções a longo prazo, mas espero sinceramente que consigamos virar essa página opaca para trilhar um novo caminho, um caminho mais honesto e coerente do que esse festival de solitários no qual estamos imersos e sequer nos damos conta. Pois, do contrário, a Alegoria da Caverna, do filósofo Platão, voltará numa versão ainda pior do que a original. E caso isso aconteça, o elo perdido que tanto deveríamos evitar ditará as cartas do jogo para todo o sempre.
P.S (na verdade, um pedido): pelo amor de Deus, não deixemos isso acontecer!!!
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Nunca é pacífico (Os 7 de Chicago, de Aaron Sorkin, volta no passado mas não deixa de falar do hoje repressor, mostrando o quanto é difícil ter uma opinião própria num mundo que não permite discursos diferentes dos da elite dominante)
Sejam os caras-pintadas em pleno Impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello, seja o movimento norte-americano Black lives matter que tomou as ruas dos EUA nos últimos meses, a minha opinião continua a mesma: não existem manifestações pacíficas. Quem quiser que se engane com isso, com essa definição. Parece-me (na verdade sempre me pareceu) um enorme contrassenso. É como a ideia de guerra santa. Como posso eu acreditar numa guerra feita em nome de Deus? É preciso ser muito tolo - ou fanático ao extremo - para acreditar nisso. E acreditem: o mundo anda cheio de tolos e fanáticos.
Entretanto, elas - as manifestações - continuam acontecendo ao redor do mundo de maneira, claro, nada pacíficas. E pior: gerando tragédias e injustiças de formas as mais assustadoras possíveis. E haja bala de borracha, coquetel molotov, gás lacrimogêneo e vocês sabem o que mais, para dar conta de toda essa guerra disfarçada de denúncia e busca por direitos civis.
Dentre as mais famosas já ocorridas os estudantes de história e interessados em conhecimento cultural sempre se lembrarão da Convenção de 1968 em Chicago. E ainda existem aqueles que preferirão se lembrar do julgamento que aquela manifestação causou, chamado por alguns de o "Oscar dos julgamentos", tamanho o impacto midiático que teve.
Porém, antes é preciso delimitar um rápido registro histórico para leigos no assunto: era uma América assolada pela Guerra do Vietnã e as mentiras contadas pela Casa Branca ao povo, Martin Luther King e Bobby Kennedy haviam sido assassinados e os movimentos pelos direitos civis inundavam as ruas a todo momento. Logo, como esperar um desfecho agradável para qualquer conflito que acontecesse naqueles dias?
O resultado não poderia ser outro e você pode conferir um pouco dele no interessantíssimo Os 7 de Chicago, do diretor Aaron Sorkin, que ficou famoso em hollywood por seu roteiro de A rede social, de David Fincher.
O filme entra de sola no processo que se seguiu a tal manifestação e que, na visão das autoridades tendenciosas, tinham como culpado sete homens: Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen, extraordinário!), Tom Hayden (Eddie Redmayne), Jerry Rubin (Jeremy Strong), David Dellinger (John Carroll Lynch), Rennie Davis (Alex Sharp), Lee Weiner (Noah Robbins) e John Froines (Danny Flaherty). E cabe aqui um adendo importante: ainda tentaram envolver na questão o líder do partido dos Panteras Negras, Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II). Todos eles eram vistos pelo governo como vagabundos e párias da sociedade, logo as vítimas ideais.
E a primeira barreira que eles terão de encarar logo de cara é o preconceituoso e pedante Juiz Julius Hoffman (Frank Langella, em atuação digna de Oscar). Vê-se, logo no primeiro instante do julgamento, que o juiz se comporta em cena como se os réus já fossem culpados simplesmente por pertencerem a uma determinada classe social dentro do país. Mas acreditem: a coisa piora e muito!
Entre os dois advogados que se digladiam dia-a-dia, semanas, meses a fio, o jovem promotor Richard Schultz (Joseph Gordon-Levitt), que a todo momento parece meio em dúvida sobre a lisura do processo, mas precisa seguir o protocolo, e o advogado de defesa William Kunstler (Mark Rylance), o que percebemos é que o verdadeiro motivo daquele julgamento encontra-se, de fato, fora do tribunal. Como o próprio Abbie Hoffman diz volta e meia: trata-se de um julgamento político. Eles, o Estado, precisam encontrar culpados que justifiquem toda aquela baderna. E eles, obviamente, nunca serão a polícia de Chicago, que incitou a violência sob ordens do prefeito Richard J. Daley (cabe aqui comentar, aliás, o único deslize do projeto: a ausência de um ator que interpretasse o prefeito).
E como não podia deixar de ser em todo julgamento dessa magnitude, provas são inventadas e ocultadas, testemunhas vitais para o desfecho do caso são impedidas de comparecer ou falar (e, dependendo do caso, têm seus testemunhos retirados dos autos do processo por uma simples deliberação arbitrária do juiz), membros do júri são ameaçados e substituídos por outros nada idôneos, agentes do FBI infiltrados na manifestação comparecem para dar suas visões contraditórias do que aconteceu, etc etc e hajam etc... Pois não se esqueçam: todo processo jurídico tem o seu quê de teatro. E um teatro profundamente sensacionalista.
E com o desfecho do longa - que é arrasador! - fica clara e ratificada a minha opinião proferida no parágrafo inicial: nada é pacífico, principalmente quando há a presença do poder constituído do Estado na questão. Não passamos, no final das contas, de reles marionetes que precisam atender às demandas das chamadas "autoridades". Se nos comportamos bem, somos modelos de sociedade; se questionamos o status quo, somos inimigos de alta periculosidade e precisamos ser trancafiados em celas. E não se esqueçam: isso aconteceu em 1968. Mais 2020 do que isso, impossível!
E ainda tem gente por aqui, em pleno século XXI das fake news e do fascismo nas ruas, que acredita em passeata, greve, petição online, abaixo-assinado e chegar a um acordo...
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Uma nova cartilha para os filmes de terror (Os 40 anos de O Iluminado, de Stanley Kubrick)
Uma semana antes antes de assistir pela primeira vez O Iluminado, épico sobrenatural do diretor Stanley Kubrick, em VHS (sim, eu sei... Faz tempo isso!) um colega que morava na mesma rua que eu me emprestou o exemplar que tinha do romance homônimo, escrito por Stephen King. E eu praticamente surtei diante daquelas páginas. Não era a primeira obra de King que eu lia, mas certamente aquela que me tornou depois fanático pelo autor. Moral da história: nunca mais parei de acompanhar o trabalho dele.
Termino de ler a á última página do romance, corro para a vídeo locadora e alugo a adaptação de Kubrick. E após quase duas horas e meia de puro estilo, glamour e técnica cinematográfica, penso comigo: "esse cara é foda". Porém, eu não sabia mais ao certo se o cara que era foda tratava-se de King, Kubrick ou Jack Nicholson (que interpreta o protagonista). No final das contas, e passados mais de 25 anos, chego à conclusão de que os três representavam um mesmo núcleo. E a minha vida como cinéfilo mudaria depois daquele dia para todo o sempre.
Pois bem: O Iluminado, obra seminal do gênero terror no cinema americano, completa quatro décadas sem perder um milímetro de sua relevância e impacto no mercado cinematográfico. Mais: ainda é idolatrada - e, de certa maneira, copiada em alguns aspectos - por gerações e gerações de cineastas a procura de prestígio e renome. E isso acreditem! não é pouco. Longe disso...
A saga da família Torrance, cujo patriarca Jack (Nicholson, simplesmente brilhante), é contratado para trabalhar como zelador no Hotel Overlook durante o período de inverno, quando o estabelecimento permanece fechado, é das experiências mais surreais e também inusitadas da história de hollywood.
E quando uso a palavra inusitada para me referir ao projeto estou falando das escolhas de direção e de narrativa feitas por Kubrick. O Iluminado simplesmente não se encaixa, em nenhum momento, em qualquer tipo de padrão proposto para o gênero até então. E esse é justamente o seu maior legado para a posteridade.
Não esperem por um clima gore, cheio de cenas violentas e banhadas a sangue na linha de Quadrilha de sádicos, de Wes Craven, realizado três anos antes. Muito menos o artifício mais do que repetitivo do jumpscare (que, aliás, eu sempre detestei e o considero um recurso típico dos "sem originalidade" alguma, por isso precisam assustar o público o tempo todo). Nada disso. Aqui o sangue quando jorra da tela busca um reação mais emocional da plateia e os tais "sustinhos" rápidos dão lugar a silêncios incômodos e provocadores. Algo bem mais apropriado ao estilo do diretor de clássicos como Laranja mecânica e 2001: uma odisseia no espaço.
Detalhe também imprescindível: o longa é todo rodado em sets onde a claridade dita o tom da trama. Nada de escuridão aqui, permitindo que personagens furtivos apareçam escondidos atrás de alguma porta. Quando vemos, por exemplo, as irmãs Grady que assombram Danny, filho de Jack, eles são mostradas em toda a sua exuberância visual e não como meros espectros. E há todo um clima de antecipação por trás daquele silêncio avassalador e daquelas luzes excessivas, como se a família soubesse de antemão quando a tragédia irá de fato acontecer.
Em suma, o longa de Kubrick propôs, à sua maneira, uma nova cartilha para os filmes de terror. Cartilha essa seguida no cinema contemporâneo por longas recentes como Um lugar silencioso e Hereditário, o que prova o quanto suas ideias não envelheceram até hoje, tamanha a ousadia com a qual foram realizadas na época.
Reza a lenda urbana sobre o projeto que Stephen King não apreciou tanto assim a adaptação de Kubrick, que o incomodaram as chamadas "liberdades criativas" propostas pelo diretor. Contudo, acho-as bem vindas no sentido de relerem um clássico sem a necessidade de realizar uma mera cópia do livro. E é inegável - pelo menos para mim - que o trabalho de Kubrick foi digno de um mestre da sétima arte. Acredito que pouquíssimos teriam feito um trabalho melhor. E nesse sentido, vejam o longa-metragem Doutor Sono, de Mike Flanagan, que se propõe em alguns momentos uma "continuação" para este projeto. O desnível, meus caros leitores, é visível e gigantesco.
E o que eu poderia dizer mais, além do que foi dito? Que o filme recebeu críticas mistas quando foi lançado nos cinemas? Até parece que isso afetou sua longevidade e proposta narrativa! Que ele merecia pelo menos um Oscar, mas não levou? Isso qualquer fã de terror sabe. Que existem teorias e mais teorias da conspiração sobre o Hotel Overlook e há inclusive um documentário de nome Room 237: O labirinto de Kubrick sobre isso? Procure o IMDb e saiba mais sobre o assunto. Honestamente... Chega de desculpas.
O que interessa mesmo é que se trata de um filme à frente do seu tempo e do seu próprio gênero, que mudou completamente a maneira como hollywood passou a enxergar o que chamamos de terror.
E isso, meus amigos, não se vê todo dia (que dirá numa hollywood repetitiva e presa numa bolha mercadológica como a atual!).
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O homem que viveu no passado (Santiago, de João Moreira Salles, é cinema, é experimento, é o filme dentro do próprio filme; em suma: é a sétima arte estreitando as relações entre ficção e realidade).
Adoro cineastas que fujam do convencional, que experimentem, que na sua obra dialoguem com seus demônios interiores, que reconstruam a todo momento o seu processo criativo, que fujam de si mesmos à procura do, às vezes, inatingível. Isso sim é a verdadeira sétima arte.
E dentre os nomes que mais chamam a minha atenção nesse sentido há um documentarista nacional que eu trato como um verdadeiro fetiche: João Moreira Salles. Há anos quero assistir à Santiago, seu projeto mais pessoal, e não consigo encontrá-lo em lugar nenhum. Para minha felicidade o canal curta esta semana atendeu minhas preces e o exibiu. Desde já adianto minha impressão: sublime!
Salles vai de encontro às memórias do mordomo de sua família, um homem de extraordinária memória e sabedoria. Procura-o, já aposentado, em seu apartamento, e começa a gravar uma série de depoimentos mágicos. Ele próprio se intitula "um homem que viveu no passado". Roda seu filme. Mas, infelizmente, não consegue montá-lo. Algo o impede de realizar a decupagem. Bloqueio criativo? Quem dera fosse fácil assim explicar a mente dos diretores de cinema!
Passam-se 13 anos que as filmagens foram realizadas e só restam ao diretor 9 horas de registro audiovisual bruto e 30 mil páginas transcritas pelo próprio Santiago onde estão reunidas histórias sobre a aristocracia mundial, uma paixão eterna deste homem. E ele, Salles, tenta mais uma vez montar o filme. Mais do que isso: ele precisa recomeçar do zero. E é justamente esse aspecto o legado mais importante do documentário.
Enquanto Santiago narra suas façanhas, relembra as festas, o período que conviveu de perto com presidentes (JK e João Goulart o tratavam como um igual, segundo diz), reza em latim - um dos momentos mais poderosos do longa -, toca castanholas, confessa seu fascínio pelo boxe e o amor pelas flores e madonas, o diretor luta consigo mesmo para dar sentido e coerência a todo este material extraordinário.
A voz de Salles pontua toda a trama e realça seus dilemas, explica seus erros e escolhas passadas que o levaram a não concretizar o filme 13 anos antes. E é interessante e reflexivo - para mim então, cinéfilo de carteirinha desde os 10 anos, nem se fala! - acompanhar o trabalho do documentarista, que tenta entender onde falhou, porque escolheu o caminho A e não o B. Recomendo de olhos fechados esta pequena jóia para estudantes de cinema. Trata-se, em suas entrelinhas, de um making of poderosíssimo.
Ao final da exibição na tv a cabo chego a duas conclusões distintas: 1) é o primeiro filme de João Moreira Salles que eu vejo que não mantém uma relação, digamos, direta com questões pertinentes ao Estado ou a política partidária. Como eu disse antes: seu projeto mais pessoal, que o fez lembrar a todo momento de sua infância e de seus pais, ambos já falecidos. E 2) o documentarista estreita de vez as relações entre ficção e realidade sem tornar a experiência fílmica caricatural ou falsa.
É daquelas produções que me fazem pensar o quanto o povo brasileiro é completamente louco por não valorizar a sua própria produção audiovisual. Como assim não admirar tamanha beleza estética ou apuro narrativo? Só mesmo um ignorante relegaria tal projeto à condição de esquecimento ou deboche.
Indico Santiago com toda a devoção que somente os fãs mais apaixonados do cinema são capazes de reconhecer para os cidadãos brasileiros sobreviventes que ainda acreditam na força da nossa sétima arte (ao contrário daqueles que torcem doentiamente pelo fim das leis de incentivo e de órgãos como a Ancine).
É de mais reflexões e exercícios de estilo como esse que nossa indústria cultural anda precisando. Urgentemente.
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Yin e Yang no Vaticano (Dois papas, de Fernando Meirelles, é muito mais do que simplesmente um filme sobre fé e as consequências dela. Ele fala das eternas distorções e comportamentos que precisamos carregar ao longo da vida, como quem carrega uma mochila pesada)
Quando eu era mais novo meus pais volta e meia me perguntavam quais os países ao redor do mundo que eu gostaria de conhecer, se eu pudesse. E depois que eu respondia a pergunta eu sempre me dava conta de que haviam duas regiões do mundo que eu não fazia a menor questão de conhecer. A primeira é o Oriente Médio, por conta da eterna mania que eles têm de transformar a violência em demagogia religiosa. E a segunda é o Vaticano.
E quando eu disse isso ao meu pai certa vez e ele me perguntou o porquê eu lhe respondi: "é porque eu tenho a sensação de que a verdade não existe naquele lugar; tudo é tão bonito em excesso, escondido em excesso, inverossímil em excesso e dizem que é a casa de Deus, um homem simples, filho de um carpinteiro. Mais parece o templo da mentira, isso sim".
Anteontem, depois de me deparar com mais de cinco cópias defeituosas em DVD do longa Dois papas, do brasileiro Fernando Meirelles - cheguei até a pensar que fosse alguma espécie de maldição ou trama sórdida para que eu não visse o filme -, enfim consegui assisti-lo e confesso: consegui diminuir um pouco meu preconceito sobre a terra dos pontífices.
A trama gira em torno da relação conturbada mas de respeito entre o recém empossado Papa Bento XVI, após o falecimento do Papa João Paulo II e o então cardeal Jorge Bergoglio, que anos depois assumiria o papado como Francisco (interpretados de forma sublime pelos atores Anthony Hopkins e Jonathan Pryce). E mais importante do que isso: desde o primeiro fotograma a película se propõe um interessante debate sobre fé e a jornada do homem no mundo contemporâneo.
Bento XVI parece, à primeira vista, um homem do passado, de um ontem cada vez mais distante, sentado sobre um livro de regras impreciso, mas que precisa ser seguido à risca. Culpa a própria civilização ocidental por ter se tornado o que se tornou e chama todas as modernidades do século XXI de "aberrações contra a moral cristã". E justamente por isso é visto por muitos fiéis católicos como um mero nazista que não merece a batina que veste. Contudo, por baixo de sua figura carrancuda, reside um homem cansado de enfrentar tantos demônios pessoais. Em suma: ele anda duvidando dos planos de Deus para a sua pessoa.
Já Jorge é o retrato vivo da modernidade, do que a sociedade está querendo mas ao mesmo tempo tem medo de se transformar. Não acredita em luxos e pomposidade, se assusta de vez em quando com a grandiosidade do Vaticano, chama a igreja de narcisista e prefere suas dúvidas a essa eterna mania dos conservadores de dizerem "eu tenho certeza" sobre tudo. E mesmo assim carrega em seu íntimo sequelas terríveis do passado na Argentina.
E a priori pensamos: esse debate nunca dará certo, pois eles são yin e yang. Contudo, yin e yang também são complementares em suas intenções e precisam chegar a um denominador comum. O catolicismo precisa disso. A humanidade, então, nem se fala. E o mundo, cada vez mais autodestrutivo e intolerante, implora que eles se façam entender. E eu disse entender, não concordar em tudo.
A trilha sonora do longa vai de Abba à Mercedes Sosa sem esquecer dos Beatles e achei curioso que o diretor não apelasse para óperas, música clássica ou algo mais tradicional ou sisudo. Mas quer saber? Que bom que ele assim o fez. Do contrário só legitimaria o cansaço do mundo - e da sociedade - em continuar acreditando que homens religiosos não descontraem ou mesmo se divertem. Jorge (e mesmo depois, já como Francisco) provou que eles, os passadistas, estão errados. Dança tango, come pizza e torce fervorosamente pelo seu time do coração, o San Lorenzo.
Ou em outras palavras: é um ser humano, como eu e vocês que estão lendo esta crítica. Logo, está sujeito às mesmas falhas e pecados como qualquer um.
Há um momento do filme em que um dos papas fala sobre a globalização da indiferença vigente nos dias de hoje e nesse momento o diretor não só me ganha de vez como deixa claro suas intenções. Precisamos urgentemente deixarmos nossas convicções ferrenhas de lado e voltarmos a conversar. Falta diálogo no mundo e a humanidade passou a achar isso extremamente natural. Não é. Enquanto continuarmos habitando numa sociedade onde o eu prevalece só daremos força ao fascismo e a ignorância reinante neste século. E isso eu pelo menos não aguento mais.
Muita gente vai me perguntar ao fim deste texto: "e aí, você iria ao Vaticano agora, depois de ter visto o filme?". Como acredito mais na dúvida do Papa Francisco do que na certeza inicial do Papa Bento XVI prefiro responder: "é um caso a se pensar".
E só por isso já valeu - e muito! - a pena ver este belíssimo exemplar da sétima arte.
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Sob máxima pressão (Ver O farol, de Robert Eggers, me fez pensar de forma crítica no quanto o ser humano é responsável por sua própria caixa de pandora - e nem se dá conta disso).
Trabalhei durante dois anos numa rede de cinemas na zona sul do Rio de Janeiro e convivi de perto com os operadores projecionistas. Na verdade, eram as pessoas da empresa com quem mais criei laços de afetividade. Adorava, nos meus horários de intervalo, subir para a cabine e conversar com esses profissionais, aprender um pouco de sua profissão, e principalmente entender um pouco de seus temores. Sim, eu disse temores.
Digo isso porque de todo o quórum que trabalhava na empresa naquela época ninguém pedia mais licenças médicas ou afastamentos temporários do que eles. Convivi com dois, inclusive, que chegaram a pensar em suicídio e pediram demissão antes que a coisa ficasse mais séria e com o tempo entendi a dificuldade de trabalhar sozinho, isolado dos demais funcionários. Acreditem: não é para qualquer um. E não se iludam com a ideia apaixonante de que esses homens trabalham diretamente com a sétima arte, oferecendo entretenimento às pessoas. Pelo contrário...
Esta semana enfim consegui assistir ao longa O farol, do diretor Robert Eggers - que ganhou certa notoriedade aqui no Brasil com seu filme anterior, A bruxa - e ao final da sessão me peguei mais uma vez relembrando desses homens de coragem. E também do desafio que é trabalhar sob pressão, isolados de tudo e de todos.
O farol conta a história de dois faroleiros que precisam tomar conta de seu posto por exatas quatro semanas, até serem resgatados por um barco da firma para a qual prestam serviço. São eles Winslow (Robert Pattinson) e Wake (Willem Dafoe, como sempre ótimo!).
O primeiro é o novato regular, facilmente encontrável em qualquer empresa que se preze. Segue o regulamento à risca e prefere não falar muito sobre sua vida pregressa. Já o segundo, mais velho, acredita mesmo é que as regras que devem ser de fato seguidas são as suas. Ou seja, é o estereótipo vivo do líder, do homem que veio ao mundo para mandar e não gosta de ser questionado ou interrompido.
Enquanto Winslow faz o trabalho sujo ao qual lhe cabe - limpa cisternas, pinta paredes, realiza pequenos consertos -, Wake é o dono da casa e responsável pela luz do farol (algo que logo de cara contraria Winslow, que prefere dividir turnos). E sim, eu já sei o que vocês, leitores, devem estar pensando: a história se resume a isso? A priori é o que o diretor quer que pensemos. Mas lógico que ele não conseguiria tal feito por muito tempo (vide o que fez em A bruxa).
Pescaram pelo menos a essência do que foi dito nos dois primeiros parágrafos? Pois bem: essa realidade cai como uma luva para explicar a transformação que acometerá Winslow com o passar dos dias. Trata-se de um homem solitário, sem o menor apoio de seu superior (que só consegue lhe dirigir a palavra para criticá-lo) e sob forte pressão psicológica. E o resultado dessa equação será catastrófico. Quase como abrir uma caixa de pandora pessoal.
A fotografia em preto-e-branco de Jarin Blaschke é um show à parte e ajuda a construir o perfil atormentado de Wislow. E o surgimento de arquétipos isolados - a gaivota, a sereia, a tempestade que impede o resgate de chegar etc -, sempre antecipando o surgimento de algo ainda pior na vida do jovem faroleiro, faz com que a trama ganhe um certo caráter psicanalítico. E desde já deixo uma salva de palmas para a produtora A24 que vem chamando a minha atenção nos últimos anos com grandes realizações.
Há, é claro, o momento Um dia de fúria (sim, aquele filme hoje cult do diretor Joel Schumacher com o ator Michael Douglas na pele de um cidadão comum que surta após ficar horas preso num engarrafamento) em que o jovem Winslow, mesmo tentando a todo custo enfrentar seus demônios pessoais e suas condições de trabalho adversas, não resiste e sucumbe ao ódio no que ele possui de mais viril e visceral. E confesso que Pattinson, que sempre achei um ator mediano, me surpreendeu.
E é nesse exato momento que eu chego à minha reflexão principal sobre a obra cinematográfica em questão: O farol fala de forma soturna e nada convencional do eterno embate entre o homem e os obstáculos que ele cria durante sua jornada pela terra. E às vezes ele cria seus próprios fantasmas do armário, pois precisa de uma justificativa ou mecanismo de defesa que o leve até o dia seguinte e ao próximo e ao depois deste, tornando sua rotina um desafio praticamente interminável.
Assim na arte, assim na vida. Eu vi isso de perto, diante de meus olhos, em muitos indivíduos com quem trabalhei e sou grato por não ter sucumbido da mesma forma que eles, já que era um trabalho extremamente estressante e repetitivo.
P.S: (um pequeno detalhe que eu não pude deixar passar). O filme tem produção do brasileiro Rodrigo Teixeira. Interessante a carreira que esse moço vem fazendo no cinema internacional. Longa vida e sucesso a ele!
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O inimigo está dentro de você (Cisne negro, de Darren Aronofsky, é devastador e extremamente coeso ao mostrar do que o ser humano é capaz para atingir a fama)
Até que ponto a palavra superação pode ser administrada? E a partir de quando perdemos o controle de tudo e nos damos conta de que nosso único desejo é o de ser o número 1 no que quer que façamos? Honestamente... Às vezes tenho a impressão de que certas pessoas são, na verdade, seus próprios inimigos.
Não é de hoje que os tabloides e os programas televisivos mostram o que artistas e desportistas são capazes de fazer para se manter no lugar mais alto do pódio ou em evidência na carreira, sempre conquistando novos papéis de destaque. O problema é justamente quando todos os limites do ético e do saudável são ultrapassados em nome de uma suposta fama ou prestígio.
E é aqui que reside o grande dilema da jovem bailarina Nina Sayers (vivida de forma intensa pela atriz Natalie Portman, vencedora do Oscar de melhor atriz por esse trabalho) no drama Cisne Negro, dirigido pelo cineasta Darren Aronofsky.
Escolhida como protagonista para a próxima montagem do balé Lago dos Cisnes, a promissora bailarina, ainda novata e não totalmente conhecedora das armadilhas que envolvem a sua profissão (e o mundo da dança de uma forma geral), tropeça em suas próprias dúvidas, divergências, na falta de coragem para assumir certos posicionamentos diante de uma mudança tão radical em sua vida, sem contar as sucessivas exigências vindas de dois focos distintos: a primeira dentro de casa, pela mãe, Erica (Barbara Hershey), uma relação extremamente possessiva, e a segunda profissional, enredada pela sedução e a cobrança excessiva de seu diretor, Thomas Leroy (Vincent Cassell, em atuação brilhante).
Com o aparecimento da misteriosa rival Lily (a belíssima Mila Kunis), seus questionamentos internos chegam à um patamar que beira à loucura total. E somente com muita força de vontade e determinação ela será capaz de combater tantos "adversários".
Aronofsky mistura estilos que em muito lembram o cinema psicológico do início da carreira de Brian de Palma (principalmente pela condição claustrofóbica em que se encontra a personagem principal) e o estilo narrativo de Roman Polanski (com lembranças que remetem a Repulsa ao sexo).
E dessa mistura de sobrenaturalidade com drama existencial ele cria uma metáfora para pensarmos o papel do ser humano numa sociedade tão exigente e que cobra tanto das pessoas, dividindo-as em dois grupos desiguais: os melhores e o restante da população.
Com uma câmera na mão que surpreende ao focalizar a dor, o desespero e o sacrifício que envolve uma das formas de arte mais genuínas e fantásticas da história da humanidade, o diretor realiza mais uma película audaz - o que vindo dele é praticamente clichê, vide produções fortes em seu currículo tais como Réquiem para um Sonho, O Lutador e o visceral Mãe! -, compondo assim uma cinematografia de enfrentamentos, algo que parece agradá-lo profundamente.
Em poucas palavras (se é possível resumir uma película dessas), Cisne Negro é subversivo ao mostrar o balé além do espetáculo, das luzes e dos aplausos de agradecimento vindos do público. É forte, indigesto em alguns momentos - o cineasta não tem medo de pesar a mão ao retratar certas psicoses e desejos da artista que desce às profundezas de sua própria alma rumo ao estrelato -, e profundamente brilhante.
E, provavelmente, acredito que é isso que está faltando no cinema contemporâneo: um pouco de ousadia. E não apenas meros efeitos especiais, tecnologias de captação de imagem e elencos esbeltos que mais funcionam como belas paisagens, porém sem conteúdo algum.
A grandeza do filme está justamente em se expor, algo que o cinema mundial contemporânea parece estar desaprendendo nos últimos anos, salvo um grupo restrito de grandes realizadores.
E pensar que eu vi essa pequena joia a primeira vez uma década atrás no cinema (e parece que foi ontem)...
P.S: eu conheço um grupo de pessoas que cataloga esse filme dentro do gênero terror. E quer saber? Eles não estão totalmente errados!
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Um novo visível (O filho do homem, de René Magritte, é um intrigamento em forma de pintura e não à toa povoa a curiosidade de milhões de fãs das artes plásticas ao redor do mundo)
Eu vejo as artes plásticas desde garoto sob a ótica de dois grandes grupos: os promovedores de beleza e êxtase (o que não significa que eles tenham a única intenção de produzir o belo) e os provocadores. E este segundo grupo, confesso, sempre me atraiu mais. É o caso, por exemplo, de Andy Wahrol, Damien Hirst, Ai Weiwei... Todos eles têm algo em comum: conseguem me perturbar, me tirar do eixo desde o primeiro momento em que vislumbro seus trabalhos.
Entenderam até aqui? Pois bem: incluam também nessa lista o surrealista René Magritte. Desde o famoso quadro "Isto não é um cachimbo" esse senhor me incomoda (no bom sentido, é claro!). Trata-se de um artista de grandes e intrigantes ideias, que não se basta com o óbvio. E curioso: um homem simples, de vida pacata, que passou mais de quatro décadas casado com a mesma mulher, sem arroubos ou ousadias. Ou seja, uma vida sem graça.
E este mesmo homem criou um dos quadros mais controversos e discutidos de todo o mundo. Falo de O filho do homem.
Os fãs de artes plásticas e pintura em geral certamente sabem de que quadro eu falo. Um homem vestido com sobretudo cinza e chapéu coco - por sinal, uma marca registrada do pintor - e que tem seu rosto encoberto por uma maça verde, embora através dela consigamos ver seus olhos.
A tela foi criada como um autorretrato do próprio Magritte, mas ficar nesse senso comum não me parece o suficiente quando queremos analisar a obra. Detalhe: o próprio artista várias vezes disse que sua obra não tinha o afã de produzir um significado prático. Ela precisava ser vista por aquilo que ela era e nada mais. Contudo, não resisto às minhas viagens pessoais (e quase esquizofrênicas) que visam decifrar os meandros da mente e do trabalho dos grandes artistas.
E o principal aspecto que logo me chama a atenção é a presença da maçã e toda a correlação existente com a história bíblica de Adão e Eva. Mais: já li em vários ensaios sobre simbologia a relação estreita entre o objeto/ a fruta maçã e o conceito de pecado. A própria cidade de Nova York (ou "cidade do pecado", como muitos a conhecem) é chamada por seus próprios habitantes de Big Apple. E ver os olhos do filho do homem aparecendo por trás da maçã me remete à ideia de que ele poderia estar escrutinando os pecados do mundo.
Outro ponto interessante é que o próprio corpo do personagem bem como a silhueta apresentada na tela já aponta para aspectos desconcertantes. Falta um botão no casaco que ele veste, seu cotovelo esquerdo está nitidamente na posição errada... E associe a isso o "problema de consciência" que envolvia o autor - daí a dificuldade dele em pintar seu próprio retrato - e logo nos deparamos com uma figura disforme, meio dissociada da ideia de normalidade. E a mim cabem certas perguntas sem resposta aparente: seria o filho do homem o exato oposto de seu autor? Teria ele, mesmo sem querer, retratado o perfil do homem desse século XXI, um homem confuso, que parece não caber em suas próprias vestes e, no entanto, um curioso, um voyeur?
E nesse momento me repito. Não se esqueçam: é apenas a viagem pessoal de um admirador de arte amador que adora vasculhar as intenções e escolhas de artistas que o deixam intrigado. E nada mais.
Polêmicas à parte, mesmo envolto em mistério (certamente o grande tema da obra dele), Magritte tornou-se um fenômeno à sua maneira e inspirou as gerações posteriores. O próprio Andy Wahrol que citei num parágrafo acima foi extremamente influenciado por seu trabalho. Paul McCartney tirou daqui a ideia do logo da Apple, empresa que negocia os royalties dos Beatles até hoje. E hollywood certamente já satirizou a tela inúmeras vezes, em muitos projetos cinematográficos.
Ao fim, descartados todos os elementos de incompreensão plausíveis, o que se vê é um grande conflito entre o que o autor chamava de "visível oculto" e "visível presente". Enfim... Guardadas as devidas proporções e períodos históricos Magritte também entendia como poucos o quanto a sociedade é curiosa e gosta de bisbilhotar sobre aquilo que não consegue ver nitidamente. E há quem diga que ele, no fundo, criou uma nova forma de visibilidade.
Mais contemporâneo e autoral do que isso, impossível.
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Herdeiros do medo (A opinião pública, de Arnaldo Jabor, é um estudo sociológico sobre um país que sempre adorou flertar com a ignorância e a ilusão)
Como se faz para ter uma opinião num país onde o simples direito de dizer o que pensa é por si só, para muitos, um delito grave? Tem quem me chame de maluco, de teórico da conspiração, mas a verdade nos últimos tempos é que se dependêssemos única e exclusivamente de um certo fragmento de nossa sociedade o mundo seria um lugar muito melhor se todos permanecessem calados, guardassem suas opiniões para si. São os que chamam a democracia de perda de tempo.
Não bastasse a tristeza que é saber dessa informação, ela ainda se agrava mais quando nos damos conta de que, no Brasil, esse é um mal secular, construído a base de décadas e décadas de um analfabetismo coletiva. E para quem acha que eu estou exagerando procurem pelo sucinto e extraordinário A opinião pública, documentário do diretor Arnaldo Jabor realizado em (acreditem!) 1967.
Pouco tempo atrás também assisti a Eu te amo, outro longa do diretor repleto de boas reflexões para entendermos esse hoje confuso no qual estamos inseridos, e fiquei deslumbrado de perceber que seu cinema não envelheceu praticamente nada. Pelo contrário: continua afiadíssimo e sintonizado com nossa realidade. Contudo, com A opinião pública, ele está um passo à frente, pois decide deixar o povo falar. E quando o povo fala, é preciso que tomemos muito cuidado!
O longa é composto de uma série de entrevistas realizadas na cidade do Rio de Janeiro e trabalha bem o conceito de dicotomias, volta e meia opondo pessoas com opiniões contrastantes sobre o mesmo tema. E os temas são os mais diversos: amor, trabalho, futuro, vida, etc.
É possível vermos os mesmos moralistas e demagogos de sempre, indignados com a juventude (na época, os "transviados"); para eles - que adoram ofender e acusar qualquer um que seja diferente deles mesmos e do sistema - os verdadeiros culpados do país ter ruído e não ser hoje uma potência mundial.
E no melhor estilo "a vida é uma guerra" (frase, por sinal, proferida por um dos entrevistados de maneira lúcida) vemos debates e enfrentamentos os mais inusitados. O meu preferido, vou logo dizendo sem rodeios, é o da mulher de meia-idade tentando explicar a duas adolescentes a diferença entre amor e paixão. Lembrou a minha avó dizendo para as meninas mais novas: "minha filha, toma cuidado! a vida não é desse jeito que você está pensando, não!". Divertido e, mesmo assim, de uma verdade inabalável.
Ilusão x realidade, o papel da mulher na sociedade (daquela época, e principalmente de agora), ser famoso x vencer na vida, sobrenatural x ciência, viver o hoje sem expectativas versus imaginar o futuro... São muitos os temas que compõem o enxuto documentário e à medida que ele vai avançando em suas intenções e confrontamentos eu me peguei lembrando do também ótimo O cinema falado, o filme de ensaios do cantor e compositor Caetano Veloso. Ambos estão interessados em provocar uma reação do público, seja ela qual for.
Quando a última parte do filme - aquela que fala dos dogmas, do desespero que a sociedade contemporânea chama de fé - atinge o espectador, quase grito também, mas de raiva. Raiva por perceber a inércia dos tolos, daqueles que adoram a manipulação, não conseguem viver além dela.
O narrador, uma das melhores coisas do filme, chama esse grupo de pessoas (que representam a nossa classe média) de "a classe perplexa", sempre assustados com tudo, temendo pelo amanhã. E dentro do contexto deles, a felicidade não passa de uma forma de poder, um interesse de ascender perante os demais.
E depois de tanto blá blá blá, de tanta incoerência, de tantos sonhos (melhor dizer delírios) ilógicos, chega a sensatez do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade para encerrar essa jornada confusa, pois tem como ferramenta principal a ignorância e a falta de empatia pelo outro. Ele, Drummond, chama essas pessoas de herdeiros do medo. E está coberto de razão.
Já o problema para mim, que aplaudiu o filme emocionado, reclamando apenas da curta duração, está um degrau acima disso: será que um dia tomaremos vergonha na cara e acordaremos para o que realmente interessa? Honestamente... Eu prefiro não arriscar uma resposta minimamente sensata.
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O tamanho da impunidade (O preço da verdade, de Todd Haynes, expõe a nu a ética das corporações - e, ainda assim, tem gente covarde que prefira acreditar que tudo não passa de uma grande mentira)
Nós REALMENTE podemos confiar naquilo que comemos? E no que vestimos? Podemos acreditar no padrão de qualidade e na ética daqueles que produzem os equipamentos que usamos para preparar nossos alimentos? Digo: podemos mesmo? Honestamente... Eu não sei vocês, mas eu nunca pus minha mão no fogo 100% por corporação ou empresa alguma. E se isso faz de mim uma pessoa paranoica, tenho de aprender a lidar com isso e com a sociedade conformada, que acredita em tudo. Contudo, entre desconfiar e dar o braço a torcer sempre preferi a primeira opção, por considerá-la mais íntegra em muitos casos.
Quando eu era mais novo via minha mãe meio desconfiada com certas panelas, frigideiras, até daquelas antigas torradeiras cujo pão de forma saltava no ar quando pronto. E quando eram feitas de teflon, então, ela dizia: "sei lá... quem me garante que isso não é cancerígeno?". E uma ocasião ela raspou a dita cuja com uma faca e ao ver aquele pó preto em suas mãos ficou ainda mais ensimesmada. Hoje eu entendo ela.
Digo que entendo somente agora porque tenho certeza que se ela assistisse ao polêmico e muito bem realizado filme O preço da verdade, do diretor Todd Haynes - realizador de longas antológicos como Velvet Goldmine, Não estou lá e Carol - ela certamente nunca mais compraria uma frigideira dessas!
O preço da verdade nos traz a saga quase inglória do advogado Rob Bilott (Mark Ruffalo, simplesmente ótimo!), que é praticamente intimado por um fazendeiro de West Virginia a investigar a empresa Dupont, que ele acusa de contaminar o riacho perto de suas terras, levando à morte a maior parte do seu gado. E Rob, a priori, é a pessoa menos indicada para assumir um caso desses. E por quê? Porque ele costuma ser advogado de defesa de empresas como a Dupont. Mais do que isso: conhece grande parte de sua diretoria, o que levaria a um conflito de interesses gigantesco.
Porém, após ir à fazenda e conhecer mais sobre os fatos ele decide assumir a causa, mesmo gerando certo desconforto para o escritório onde trabalha (e se tornou sócio recentemente). E é justamente nesse momento que ele descobre que as vacas mortas e a água contaminada é apenas uma reles ponta do iceberg.
Da água contaminada e o gado morto à PFOA ou C8 (a substância cancerígena em questão); e da PFOA à descoberta do uso dela em frigideiras e outros utensílios de cozinha. E dessa descoberta ao... Pois é. É quando nos depararemos com o tamanho da impunidade que rege empresas como a Dupont ao redor do mundo.
Mais do que se expor, complicar sua posição no escritório onde trabalha e ver seu casamento quase ruir, Rob terá de enfrentar o universo maquiavélico das grandes corporações que de tudo farão para vencer a causa na justiça, desde desmentir qualquer versão científica que aponte problemas na linha de produção até mesmo vê-la fazer acordos que ela própria não assumirá caso a verdade venha à tona.
Tratam-se dos velhos tubarões de sempre (e já usei essa expressão recentemente numa outra crítica de cinema que fiz há pouco tempo sobre o filme Piedade, de Cláudio Assis) se utilizando das velhas artimanhas e do fato de que essas empresas têm ramificações no governo muito maiores do que simplesmente profissionais. E é dessa troca de favores entre políticos e empresários - coisa, aliás, que nosso país conhece bem há décadas - que nasce a ruína de milhares de famílias honestas e cidadãos de bem. E mesmo assim, tem trabalhador assalariado (e alienado) que as defenda com unhas e dentes, dizendo: "isso é só intriga da oposição ou perseguição política".
Ao final do filme, ficou-me a sensação de estar diante de um grande estudo sociológico sobre a mentira que reina em nossa sociedade de consumo. E por um momento me peguei pensando no excelente documentário do diretor Michael Moore de nome Roger e eu. Nele, uma cidade norte-americana que praticamente vivia em função de uma empresa - que, por sinal, era idolatrada por seus habitantes - vê o local se tornar uma cidade fantasma assim que ela encerra suas atividades na região, levando a população à total miséria. Aqui, no longa de Haynes, é ainda pior: vidas foram descartadas e o máximo que se conseguiu até hoje foi uma série de "reparações financeiras". Como se isso fosse realmente possível!
Agora uma pequena ironia de minha parte (e eu adoro ironizar): após terminar a sessão, abro meu computador no Google e digito Dupont. O site da empresa aparece e é inegável a intenção da empresa em transparecer o máximo de ética possível. O que vejo enquanto desço a barra de rolagem são frases como "segurança e saúde", "respeito pelas pessoas", "comportamento ético", "proteção do planeta", etc etc etc. E fico pensando comigo: o que um processo que se arrastou na justiça ao longo de décadas e da vontade gananciosa de esconder a verdade do povo não faz!!!
E quando saio, enojado, do site da empresa fica-me preso à garganta um único pensamento: o quanto o mundo é sujo e covarde e como somos coniventes com isso. Mas eles são homens de negócios, ilustres, acima de qualquer suspeita, amados e idolatrados e o mundo continuará girando amanhã, depois de amanhã e no dia seguinte também, não é mesmo? Que seja. Só não me peçam para aplaudi-los, pois aí já é querer demais e o meu compromisso nesse mundo é outro.
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Refém do palco (Judy: muito além do arco-íris, de Rupert Goold, é o ocaso de uma estrela formidável que os estúdios preferem, na maioria das vezes, esconder)
Dentre as muitas coisas encantadoras que presenciei oriundas de hollywood, provavelmente a maior delas foi Judy Garland. Lembro-me da primeira vez que assisti em casa ao clássico O mágico de Oz, de Victor Fleming e George Cukor (e das outras dez seguintes também). Foi arrebatador. Ela era arrebatadora em todos os sentidos. E entrou para o projeto no meio do caminho - sua personagem, Dorothy, havia sido criada para Shirley Temple, que acabou recusando o papel - para transformá-lo num obra seminal.
Havia uma aura mista de brilhantismo e apreensão na interpretação de Judy. E lembro-me que passei anos me perguntando se havia algum fantasma guardado no armário daquela mulher, pois somente isso explicaria tal antítese de sentimentos. Tudo parecia me dizer que sim.
Os anos se passaram e como todo talento que se preze, além de estrela Judy tornou-se difícil, exigente, quase impossível. Mas não foi a única. Fazia parte de sua geração todo esse estrelismo latente. Entretanto, eu continuava me perguntando quais seriam os seus segredos tão bem guardados. Cheguei a fazer figa à espera de que um dia um filme sobre esse aspecto da sua vida fosse feito.
Enfim, esse dia chegou pelas mãos do diretor Rupert Goold. E se chama Judy: muito além do arco-íris.
O recorte dado ao diretor não engloba o auge, a fama, as grandes personagens (embora Dorothy seja citada). Goold está, isso sim, mais interessado nos meses que antecedem sua morte. Nos traz uma Judy Garland falida, devastada, que vê seus filhos terem a guarda tomada dela, e principalmente: aquela na qual os estúdios não conseguem enxergar além de encrenca e confusão. Como último refúgio, para não sucumbir de vez à decadência, ela vai para Londres realizar uma série de shows. Mas as polêmicas, é claro, a acompanham.
Garland precisa lutar contra tudo e contra todos (inclusive seus próprios demônios) para provar sua genialidade e fugir da eterna imagem de artista inventada pelas majors. Contudo, é uma mulher que também acumula amarguras, dentre elas a de precisar estar disponível para todos (leia-se: a indústria) o tempo todo. Ela é o expoente vivo da cultura do "e o show não pode parar!" e isso deixa nela marca indeléveis. Quase nunca dorme e os únicos amigos de fato, aqueles que conhecem a sua verdadeira história, são as pílulas que toma a todo momento para aguentar o rojão daquela vida atribulada.
E nesse momento cabe aqui um aparte para parabenizar a atriz Renée Zellweger, que interpreta a cantora e atriz (e que ganhou merecidíssimamente um Oscar pelo trabalho). Ela capta de forma brilhante a dor, a angústia, o quanto teve de lutar para permanecer relevante dentro daquele meio. E mesmo assim, a todo momento, parece se perguntar: "será que eles nunca ficarão satisfeitos, nunca mesmo?". Em outras palavras: é uma mulher pela metade.
Porém essa metade, a que sobrevive, a que chega ao dia seguinte e ao outro e ao depois desse, é também refém do palco, da glória, dos holofotes. Não consegue absolutamente viver fora daquele mundo célebre, por mais que ele seja capaz de destruí-la num estalar de dedos, à hora que bem desejar. Judy Garland não veio ao mundo para ser Frances Ethel Gumm, uma mera dona de casa, mãe de família, bem casada. Não, meus amigos! Como bem diz no filme Louis B. Mayer, produtor de O mágico de Oz, ela veio ao mundo para brilhar.
E a consequência disso é uma vida de infortúnios, dissabores e sacrifícios os mais diversos e sem prazo de validade.
Quando o longa termina três sentimentos me perseguem: 1) não entendo porque demorei tanto para assistir essa relíquia, que tem a coragem de mostrar o lado humano de Judy sem soar piegas; 2) ele merecia mais destaque no Oscar, além da vitória óbvia de Renée; e 3) eu vou morrer e ainda assim continuarei a admirar o talento e a história dessa mulher brilhante, que fez milhões sonharem tão alto e ainda assim lutou contra a vida para conseguir esboçar um simples sorriso.
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Essa confusão sou eu (Embora pareça em sua superfície apenas uma narrativa sobre o bloqueio criativo de um artista, Oito e meio, de Federico Fellini, se trata na verdade de tudo o que acontece num projeto cinematográfico antes das câmeras serem ligadas e o diretor gritar "ação!")
Eu me tornei cinéfilo e consequentemente um interessado em escrever sobre filmes - embora não me considere um crítico especializado - para poder enxergar além da própria sétima arte. Sempre fui um fascinado pelo set de filmagem e a todo momento procuro no mercado editorial livros contendo histórias sobre os bastidores dos grandes longa-metragens. E nessas procuras me dou conta, às vezes, de que a película, o resultado do projeto, é um reles detalhe. Quero mesmo é conhecer a história desses artistas e o que eles fizeram de suas próprias vidas e carreiras.
Pois bem: volta e meia me pego pensando na reflexão proposta por este parágrafo e chego à conclusão de que o melhor exemplo que eu poderia dar para explicar de forma cinematográfica o que escrevi é a obra-prima Oito e meio, do cineasta italiano Federico Fellini. E digo mais: em se tratando de um filme em que o próprio diretor confessava em entrevistas estar incompleto - daí o título da obra, que é seu nono longa-metragem -, é impressionante a genialidade dele. Fellini era realmente um mestre que deixará saudades eternas, na Itália e no resto do mundo.
Guido Anselmi, protagonista desta jóia rara (e interpretado por Marcello Mastroianni), é um cineasta que foi da glória e o reconhecimento à crise de inspiração - ou, como costumam chamar alguns, o bloqueio criativo - e agora sente-se sugado em todos os sentidos. Contudo, ele promete um novo filme à seus produtores e é justamente nesse momento que os problemas começam.
Sempre envolto por belas mulheres e fazendo a todo momento digressões que remetem à sua infância, uma época em que era mais livre e não precisava dar satisfações sobre cada passo que dava, ele se vê engolido por um mercado exibidor que o enxerga apenas como uma reles engrenagem dentro de um processo criativo. E à medida que o tempo passa e o roteiro ou mesmo uma ideia geral do que seja o projeto não surge sua angústia atinge um nível nunca antes alcançado em toda a sua carreira.
Logo, ele precisa ganhar tempo. E faz isso através de sucessivas mentiras ou evitando contatos e conversas mais longas sobre tudo o que verse a respeito do "novo e genial filme que virá".
Há pontos interessantíssimos a serem evidenciados no longa, que não somente refletem bem a personalidade de Guido, mas também o fato de ele ser um grande alter-ego do diretor. Em primeiro plano destaco a trilha sonora, belíssima, que ilustra bem o clima nonsense, de preocupação constante do diretor em crise (cheguei a acreditar, em alguns momentos, estar diante de uma "ópera do absurdo"). Logo a seguir, cabe aqui o meu elogio à maneira como Fellini flerta com o surrealismo nesta narrativa visual. Ele, que sempre viu sua obra associada ao sonho e ao delírio, aqui - a meu ver, pelo menos - realiza o seu projeto que mais remete ao mestre Salvador Dalí. Talvez muitos que leiam esta crítica achem um exagero da minha parte, mas honestamente tive de fato essa impressão. E finalmente, a presença da figura das musas (são muitas!) de Guido, uma referência clara aos gregos, mas também às paixões do próprio Fellini.
Há um embate claro entre o filme que Guido deseja realizar, um trabalho apaixonante, autobiográfico e sem licenças poéticas, e toda a expectativa gerada por aqueles que o cercam e fazem a máquina da indústria cinematográfica girar. Em outras palavras: Oito e meio é um filme sobre bastidores. sobre aquilo que não vemos, mas acontece em todas as produções do gênero.
Refiro-me às brigas entre a equipe de filmagem; a dificuldade do realizador em manter seu casamento vivo; as difíceis, quase insuportáveis, audições para escolha de elenco; a crítica e a imprensa em geral perseguindo o realizador de forma insistente, à procura de informações sobre o que ele fará a seguir, etc etc etc e hajam incômodos e desnecessários etc que só contribuem para atrasar ainda mais o projeto.
O que vemos antes das câmeras serem ligadas e o diretor gritar "ação!" está tudo ali, de forma nua e crua, sem rodeios ou invencionices. Toda a bagunça da pré-produção, as ideias primárias que não funcionam, não se concretizam nas telas, os atores cheios de pitis e exigências constantes... Tudo aquilo capaz de enlouquecer o mais normal dos mortais e, no entanto, faz parte da rotina de qualquer realizador da sétima arte, pois não fosse assim não iríamos apreciar sua saga nas salas de cinema. Em suma: uma confusão generalizada que visa um espetáculo posterior.
E como o próprio Guido/Fellini diz ao final do longa: "essa confusão sou eu". Esse acúmulo de experiências, memórias e derrotas as mais diversas dão, de certa forma, um caráter quase metalinguístico ao filme. E Fellini, de uma maneira ou outra, sempre perseguiu isso em sua carreira.
E passados 57 anos sem envelhecer uma vírgula sequer e ao final dos mais de 130 minutos de projeção impecável só me resta, orgulhoso, ver meu rosto encher de lágrimas e levantar para aplaudir de pé essa obra-prima do cinema italiano.
P.S: em 2009 o diretor Rob Marshall dirigiu Nine, que se pretendia uma nova visão sobre essa história. Fui ao cinema na época para assisti-lo e saí meio desapontado. Mais uma vez hollywood moralizou uma história consagrada pela sétima arte de um outro país transformando-a naquilo que ela não era (no caso, um musical). Eles adoram fazer esse tipo de coisa. E eu espero sinceramente que um dia eles parem com isso!
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Um Lobisomem Americano em Londres
3.7 612Quando a lua cheia chegar
(Os 40 anos de Um lobisomem americano em Londres, de John Landis)
Eu não sei exatamente o que aconteceu com o gênero terror em hollywood, mas de uma coisa eu tenho certeza: todas as melhores lembranças que eu tenho sobre o gênero estão comemorando entre três e quatro décadas de existência e sem perder um pingo de sua relevância cultural. No final das contas, acredito que isso se deve ao fato de nós, espectadores daquela época, estarmos interessados num tipo de cinema que, honestamente, não se faz mais nos dias de hoje porque os realizadores atuais muitas vezes preferiram dar mais protagonismo aos efeitos especiais do que a uma boa história.
Fiquei pensando nisso essa semana enquanto assistia a um exemplar ruim do gênero no canal a cabo TNT e me deparo com a notícia de que o clássico eterno Um lobisomem americano em Londres, do diretor John Landis, está completando 40 anos em 2021. E imediatamente a parte nostálgica do meu cérebro começou a trabalhar e me relembrei de todas as vezes que vi o longa.
Um lobisomem americano em Londres é um marco do cinema de terror de todos os tempos (pelo menos, para este que vos escreve) porque não inventa teorias absurdas, não insulta a inteligência de seu espectador - em essência, adolescente - e também não se torna refém de sustos bobos e artimanhas baratas (algo que tenho visto muito nos últimos anos!).
Acompanhamos a história dos dois mochileiros David Kessler (David Naughton) e Jack Goodman (Griffin Dunne) que são deixados por um caminhoneiro numa estrada deserta para continuarem sua jornada. Eles até param numa taverna para um breve intervalo e se deparam com a hostilidade dos frequentadores do local. Resultado: "melhor pegarmos nossas coisas e dar no pé". A noite chega, o ambiente fica soturno e eles são atacados por um lobisomem. Jack morre na hora, mas David sobrevive graças a ajuda dos homens que se encontravam no bar.
Ele é levado para um hospital onde é tratado e interrogado por policiais. Conhece a enfermeira Alex Price (a belíssima Jenny Agutter), por quem se apaixona e logo recebe alta, indo morar com a moça em seu apartamento. Mas com o passar dos dias começa a sentir coisas estranhas. A ter instintos que nunca teve antes. Até que recebe a visita do companheiro morto, que vem lhe avisar que ele se transformará numa criatura igual a que o matou na próxima lua cheia. A consequência disso? Os fãs oitentistas já conhecem de cor e salteado.
O diretor John Landis - realizador dos ótimos Clube dos Cafajestes e Os irmãos cara de pau - fez história com o longa, chamando a atenção da crítica especializada na época e também do rei do pop Michael Jackson, para quem realizou o antológico clipe Thriller dois anos depois (vídeo este que hoje se encontra catalogado na Biblioteca do Congresso nos EUA). Digo mais: junto com O exorcista, de William Friedkin e O bebê de Rosemary, de Roman Polanski, compõe uma trinca insubstituível no quesito "filmes de terror irretocáveis".
A cena de transformação de David em lobisomem, que deu ao mestre Rick Baker o Oscar de maquiagem no ano seguinte, é das sequências mais fenomenais que eu vi até hoje. E olha que eu já vi foi coisa marcante nesses mais de 30 anos assistindo cinema! Passei anos da minha vida querendo saber como a cena foi realizada e só tive o meu desejo atendido quando comprei o DVD edição de colecionador do filme e sentei para ver os extras. E continuei impressionado. Imaginem isso sendo feito com a tecnologia de última geração de hoje em dia (e não me refiro a CGI, não!).
Outro ponto que sempre achei um toque de mestre do diretor é o desfecho do longa, com a morte da criatura num beco, ao som de "Blue Moon", da banda The Marcels. Normalmente se esperaria um final com uma trilha sonora melancólica, quiçá fúnebre, e ele engata num sensacional rock n' roll clássico, como que dizendo para os espectadores de seu projeto: "gente, a vida continua...".
Entro no site do IMDb para obter algumas informações sobre o filme e me deparo com a informação de que anunciaram um remake dessa obra-prima. Confesso: temi pelo pior na hora. Já não bastasse o detestável Um lobisomem americano em Paris, de Anthony Waller, realizado 16 anos depois, ainda por cima teremos de aturar mais essa infâmia. Enfim... Hollywood é a eterna fábrica de remakes que ela se tornou nos últimos anos.
Agora, para quem não está interessado em releituras e versões novas "feitas para uma nova geração de cinéfilos", assistam o original. Procurem o DVD com os extras e se divirta. É entretenimento como há anos o cinema americano vem deixando de fazer, para perder tempo com heróis rebuscados e tramas insossas.
P.S: ah que saudade da Sessão das Dez, no SBT, nos anos 80 e 90, que passava relíquias como essa pequena e notória obra prima!!!
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Ruas de Fogo
3.6 239 Assista AgoraFábula contemporânea
(Ruas de Fogo, de Walter Hill, é praticamente um conto de fadas para adultos, sem todos aqueles clichês e moralismos óbvios do gênero)
Contos de fadas e fábulas sempre me entediaram, desde moleque, por conta de seu formato repetitivo, refém de premissas que eu considerava óbvias, cansativas. E muito por causa disso naquela época - refiro-me aos meus 10, 11, 12 anos - eu escolhi as tirinhas de jornal e os comics. Eles possuíam o nível de sarcasmo e deboche que eu procurava já naquele tempo. O resultado disso: tornei-me um leitor de outsiders, de autores fora do padrão, do corriqueiro.
Contudo, o cinema anos mais tarde me fez acreditar que era possível encontrar artistas que transformassem esse tipo de linguagem monótona (pelo menos para mim) em algo mais palatável aos meus interesses, digamos, excêntricos. E um deles que se mostrou logo de cara foi o diretor Walter Hill. Quando assisti The Warriors - os selvagens da noite numa madrugada fria no início dos anos 1990 eu simplesmente alucinei. Era provocador, reacionário e corajoso em demasia. E eu pensei comigo: esse cara entende do metiê.
Mas eu não vim aqui para falar de The Warriors (crítica que, aliás, estou devendo aos meus leitores) e sim de Ruas de fogo, de 1984. Para mim um conto de fadas para adultos, sem toda a baboseira que acompanhava o gênero desde que o mundo é mundo.
Acompanhamos o sequestro da jovem estrela do rock Ellen Aim (Diane Lane) pelas mãos da gangue de Raven (Willem Dafoe) durante um dos seus concertos e não há como não pensar na princesa sendo capturada por seu algoz, que certamente - se aqui fosse um livro - teria inveja de sua beleza ou do fato dela não amá-lo. E o único capaz de resgatá-la, para uma de suas fãs e irmã do herói, é o rebelde Tom Cady (Michael Paré), ex-namorado de Ellen e também ex-militar. Entretanto, ele não é um príncipe que se encaixe no estereótipo do que estamos acostumados a ver nesse segmento.
Pelo contrário. Tom não leva desaforo pra casa, não se esconde atrás de discursos bonitos e chega a aceitar dinheiro para resgatar a moça. Ousado, eu sei... Mas como eu disse antes: é uma mudança no formato. Trata-se de um fábula contemporânea. Algo, por sinal, que consta logo no início dos créditos ("uma fábula rock n' roll").
Dito isto, esqueçam dragões cuspidores de fogo, casas de doces, espelhos mágicos e toda essa bobajada. O que encontraremos aqui é muito som alto, tiroteiro, pancadaria pra dar e vender, uma ajudante do príncipe meio lésbica e veterana de guerra e um produtor, Billy Fish (o atualmente sumido Rick Moranis), completamente almofadinha e viciado em sucesso.
Querem mais? Então vão ter que ver (ou rever) esse clássico oitentista!
Dois destaques que eu não posso deixar de mencionar do longa: as caracterizações (figurinos e cenários escolhidos) e, claro, a música - sob a alcunha do mestre eterno Ry Cooder. Espera, espera... Um confissão inevitável: ouvir de novo "I can dream about you", de Dan Hartman, depois de tantos anos, é não somente um bálsamo para os ouvidos como já vale por metade do filme.
É verdade que o roteiro, escrito a quatro mãos por Hill e Larry Gross, é bobinho toda vida se levarmos em consideração o que hollywood era capaz de fazer naquela época (que o diga o de Laços de ternura, vencedor do Oscar de melhor filme, diretor e roteiro adaptado naquele ano!). Mas ao mesmo tempo ele não era para ser, de fato, o grande centro das atenções. Em outras palavras: o público daquela época direcionava seus olhares para outras direções, digamos, mais joviais.
Ruas de fogo é, em uma palavra simples, estiloso. Isso é que o ele está interessado em vender e, cá entre nós, fez bem. Tanto que eu estou aqui, 36 anos depois, falando dele ainda. Não, meus caros leitores, embora pareça isso não é pouco!
E pensar que hoje em dia filmes para jovens precisam ter, quase que obrigatoriamente, efeitos especiais de última geração e personagens cheios de superpoderes. Pois é... o cinema americano mudou e nem sempre a palavra mudança é um bom sinal. Mas pelo menos eu posso dizer hoje à minha sobrinha que a minha época valeu (e ainda vale) a pena.
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Mank
3.2 462 Assista AgoraEscreva muito, espere pouco
(Mank, de David Fincher, é não somente uma rediscussão sobre o clássico Cidadão Kane como também expõe a nu hollywood e seus profissionais geniais e controversos)
Quando o diretor Orson Welles lançou o clássico Cidadão Kane em 1941 ele não fazia a menor ideia do grande fenômeno que seu filme se tornaria, mas tinha pelo menos uma certeza: a de que haviam lhe prometido o final cut, ou seja, o direito de que a versão final de seu longa seguiria ipsi litteris suas diretrizes, e as de ninguém mais. O problema dessa frase: estamos falando de hollywood e do fato de que nem sempre as coisas saem exatamente do jeito que os artistas querem.
É muito fácil olhar a obra-prima de Welles pelo prisma de "o maior filme de todos os tempos". E se perguntarmos a, pelo menos, 8 ou 9 de cada dez críticos de cinema eles certamente confirmarão. Contudo, realizar a produção na prática foram outros quinhentos. A história por trás de Cidadão Kane daria um filme por si só e um filme dos bons. Pois bem: o genial David Ficher - mestre por trás de películas extraordinárias como Zodíaco, Clube da luta e Seven - decidiu fazer esse filme com Mank. E conseguiu desenhar de forma precisa a hollywood de antigamente para falar também da hollywood de hoje.
E para contar essa história rebuscada ele se debruça sobre a alucinada vida do roteirista do filme, Herman Mankiewicz (Gary Oldman, em estado de graça!) e a incrível façanha que ele teve de encarar: escrever o roteiro de Cidadão Kane em míseros 60 dias. Você pode até dizer "mas para esses caras, que escrevem o tempo todo, é moleza!". Pois é... Você não conhece Mank.
Mank é aquilo que eu costumo chamar de um velho tubarão da indústria cinematográfica. Um homem capaz de entender o sistema com extrema facilidade, jogar com ele se necessário e entregar o que for preciso dentro do prazo estabelecido. Porém, é também um homem que luta constantemente contra seus demônios internos e sua própria extinção. Cada dia é um degrau a ser suplantado em busca de sobrevivência. E eu até poderia dizer aos leitores dessa crítica que seu maior problema é o vício em álcool, mas eu não estaria fazendo jus a complexidade que envolve a rotina desse personagem.
Do outro lado desta equação turbulenta chamada sétima arte, encontra-se um plêiade de seres irracionais e trapaceiros os mais diversos, mas não menos brilhantes. Vocês sabem tanto quanto eu (e se não sabem, deveriam saber): hollywood sempre esteve repleta de empresários antiéticos, predadores sexuais e cafajestes os mais sofisticados. E sempre foram eles que fizeram da meca do cinema o que ela é. Então, imaginem a situação de Mank tendo que conviver diariamente com homens da laia de Louis B. Mayer, David O. Selznick e, é claro, o magnata das comunicações, William Randolph Hearst. Resultado: uma labuta sem fim rumo ao paraíso (no caso, aos projetos bem sucedidos).
Esse homem, partido moralmente e fisicamente, isola-se numa casa distante acompanhado da jovem e impulsiva Rita Alexander (Lilly Collins), capaz de escrever cada linha de pensamento que ele porventura tenha apta a ser filmada, e promete escrever um sucesso de bilheteria como nunca houve antes. Tudo que a hollywood, que ainda vive as consequências da chamada grande depressão, precisa e urgentemente. E então? Como você reagiria a toda essa pressão? Honestamente, eu já imagino até a resposta.
Entre flashbacks que revivem a trajetória de Mankiewicz, diálogos ácidos sobre o presente e o futuro do cinema, brigas recorrentes com os empregados escalados para vigiá-lo e conversas picantes com a bela Marion Davies (Amanda Seyfried), amante de Hearst, Fincher compõe um belíssimo trabalho técnico e narrativo. Tudo no longa remete ao passado com um brilhantismo que, atualmente, somente a netflix é capaz de nos oferecer. Som, cenários, fotografia, o preto-e-branco escandaloso de tão autêntico... Mank é simplesmente um aula de cinema para aqueles cinéfilos que andavam com saudade da verdadeira sétima arte e cansados de heróis e seus superpoderes.
E não pensem os espectadores mais incautos que o longa foge de polêmicas. Acredito que a produção, durante toda a temporada de prêmios, dará muito o que falar por seu aspecto controverso. Embora o roteiro de Jack Fincher, pai do diretor, não toque no assunto de forma direta, muitos membros da academia irão levar em consideração o livro Criando Kane, de Pauline Kael, no qual a famosa crítica de cinema detona Orson Welles, dizendo que ele nunca escreveu uma linha do roteiro do filme. Sou capaz de apostar um braço que ainda vai haver muito bate-boca daqui até a entrega do Oscar sobre esse assunto.
Mas a principal contribuição dada pelo diretor, a meu ver, é a maneira como ele expõe a nu a hollywood dos tempos passados. Um terra de lobos competindo selvagemente e constantemente pelo último pedaço de carne disponível. E mais: é possível entender aqui, com clareza, a indústria do cinema americano que idolatrou figuras como Harvey Weinstein nos últimos anos. Em outras palavras: hollywood gosta de pilantras e eles sabem ser extremamente bem-sucedidos. Difícil mesmo é permanecer ético e coerente dentro de uma estrutura sórdida dessas...
E como bem disse um amigo de Mank, aconselhando-o durante o processo criativo: "escreva muito, espere pouco". Realmente, não é um lugar para se viver de expectativas, mas sim cumprir agendas.
P.S: um rápido conselho (ou dica): se puder, antes de ver o filme, assista o clássico de Orson Welles. Acreditem: vai fazer uma diferença gigantesca ao final da experiência!
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Tenet
3.4 1,3K Assista AgoraO futuro não é realmente o problema
(Tenet, de Christopher Nolan, recorre às viagens no tempo para falar de um problema que, na verdade, está entre nós hoje, agora, neste exato momento: a ganância)
O tempo e essa eterna mania que temos de rotulá-lo, classificá-lo, retê-lo, dar a ele uma dimensão maior do que a suposta. Queremos mudar o tempo que as coisas - e até mesmo os seres humanos - duram. E não podemos. E isso nos entristece. Vejo nisso uma espécie de "complexo de Deus" que vive perseguindo a humanidade desde Adão e Eva. E nada fazemos para corrigir este aspecto, essa mania, essa eterna mania de querermos ser mais do que realmente podemos.
Esta semana enfim consegui assistir o famigerado Tenet, de Christopher Nolan. O filme escolhido para a reabertura dos cinemas nos EUA pós-pandemia. Infelizmente a Covid-19 insistiu e o longa não conseguiu a projeção que ambicionava, mas deixou em minha mente uma interessante reflexão sobre o tempo e as decisões equivocadas que nós, seres humanos, volta e meia tomamos.
Após um missão mal sucedida para conter um atentado terrorista durante um concerto, um agente é apagado dos quadros funcionais da organização para a qual trabalha e é dado a ele uma nova missão. Contudo, de concreto mesmo, as únicas coisas que esse homem precisa saber são que ele irá evitar uma terceira guerra mundial e que nada do que ele viu até então permanecerá o mesmo. Suas expectativas pessoais e profissionais serão completamente alteradas nesse novo trabalho.
Parece simples, não é mesmo? Pois é... O problema é que o diretor é justamente o Christopher Nolan. Então preparem-se para surpresas e reviravoltas.
Enquanto nos deparamos com uma nova tecnologia capaz de alterar completamente a percepção que temos do tempo, um Oligarca Russo disposto a rebootar o mundo e falsificações de obras de arte, o diretor nos impressiona com extraordinárias cenas de ação (que, honestamente, eu - se fosse vocês - abriria o olho, pois podem ser meras distrações para que não vejamos o real objetivo da história).
Aliás, o próprio protagonista da história (o interessante ator John David Washington, que já havia chamado a minha atenção no ótimo Infiltrado na Klan, dirigido por Spike Lee) não tem um nome para chamar de seu. É identificado junto ao público exatamente desta forma: como o protagonista. E seus únicos reais "aliados" - é, eu sei... até esta palavra precisa estar entre aspas, pois no mundo que eles vivem, todos podem trair todos a qualquer momento - são Kat (Elizabeth Debicki), esposa chantageada do oligarca Sator (vivido por Kenneth Branagh) e Neil (Robert Pattinson), seu contato na nova organização para a qual trabalha.
Contudo, mesmo com todas as tentativas do diretor para mostrar ao público espectador as implicâncias de tais atos inescrupulosos para o futuro da humanidade, fiquei a todo momento pensando no quanto o hoje e o que estamos fazendo de errado com o mundo atualmente é colocado em segundo plano, quando não deveria estar nessa posição.
Vejo nisso, no problema da ganância desenfreada (e esse, para mim, é o real mote do longa-metragem) e a violência gratuita que nos atingiu em cheio nas últimas décadas e que grande parte da humanidade prefere varrer para debaixo do tapete um mal-estar recorrente da nossa civilização. Viramos criaturas melancólicas e repetitivas que adoram adiar os problemas e colocar a culpa no amanhã, no que virá. E ao mesmo tempo não fazemos nada de efetivo para melhorar o hoje. Logo, ele permanece refém das mesmas atrocidades e perigos. E eu me pergunto até quando assim será.
Acredito piamente que Nolan teria sido mais feliz em seu projeto se direcionasse a discussão para os dias de hoje. O futuro não é realmente o problema. Pelo menos não se continuarmos de braços cruzados ad infinitum. Vivemos numa pandemia e tem gente festejando, se aglomerando, enchendo a cara. Não sabemos se estaremos vivos semana que vem e tem gente planejando as próximas cinco, seis décadas. Honestamente: parece-me uma contradição. E nesse quesito o filme tropeça.
Mas não fiquem chateados. Há muito a se admirar em Tenet. O aprumo estético e visual que o consagrou junto aos fãs continua lá. Aproveitem. Entretanto, não consigo deixar de pensar que se trata de um filme menor e por vezes vazio dentro de sua filmografia. E isso aconteceu por um mero deslize. Nolan consegue fazer melhor do que isso.
E antes que me apedrejem nos comentários abaixo, paro por aqui. Quero que vocês, leitores, tirem suas próprias conclusões. Mas um aviso para os iniciados na obra do diretor: não acreditem em tudo que vêem e fiquem atentos a cada take. A qualquer momento sua interpretação sobre a trama pode ser desmentida ou reavaliada.
P.S: lembrei de uma coisa agora, talvez seja viagem minha, mas... Quem assistiu a saga de James Cole em Os 12 macacos, de Terry Gilliam, vai se identificar imediatamente com este filme aqui. Caso não seja o seu caso, peço antecipadamente desculpas. É que às vezes eu devaneio mesmo.
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Zeroville - A Vida em Hollywood
2.4 17 Assista AgoraIsto é hollywood
(Zeroville, de James Franco, é soturno, em alguns momentos depressivo, mas nem por isso deixa de ser um panorama interessante da meca do cinema mundial)
Vemos o filme somente quando ele já está pronto, finalizado, montado e na maioria das vezes não nos damos conta do real trabalho que dá realizá-lo, captar verba, encontrar elenco, locações, filmá-lo, inserir trilha sonora e efeitos especiais, pós-produzí-lo, etc etc etc. E com a chegada do mercado de dvds eu passei a correr atrás dos making offs e entrevistas embutidos no menu para saber mais a respeito das produções cinematográficas. Para mim passou a ser o grande barato dentro da indústria do home video.
E o que aprendi com ela? Que precisamos, como cinéfilos, dar mais valor aqueles profissionais pau pra toda obra, os chamados "faz-tudo" dentro do set filmagem. Não fossem eles a sétima arte - e principalmente hollywood - jamais teria produzido obras-primas como Apocalipse now, Contatos imediatos do terceiro grau, Crepúsculo dos Deuses, Tubarão, Todos os homens do presidente, dentre tantos outros.
Em Zeroville, projeto do ator e diretor James Franco, essa função é desempenhada por Vikar (interpretado pelo próprio Franco), um construtor de cenários que se muda para Nova York para ficar mais perto da meca do cinema, sua grande paixão. Ele é aquele tipo de profissional dentro da equipe de filmagem que precisa "entregar o milagre pronto" na hora que os produtores disserem que é a hora. E nem sempre isso é possível. E quando é chamado por Viking (Seth Rogen), um abutre da indústria, para editar um longa, ele percebe definitivamente o quanto que prazos são realmente datas complicadas para serem seguidas à risca.
Não bastasse a rotina e as cobranças do instável e prepotente produtor Rondell (Will Ferrell), ele ainda por cima se apaixona pela instável Soledad (Megan Fox), uma atriz do segundo escalão que luta para criar a filha adolescente e rebelde. Moral da história: em seu íntimo, Vikar sabe que está metido numa roubada desde o início, mas é tarde demais para abandonar o barco.
Talvez a única coisa que exerça uma paixão igual a que sente por Soledad é a devoção que ele tem pelo filme Um lugar ao sol, do diretor George Stevens e seu protagonista, o ator e galã Montgomery Clift. E é dessa mistura de sentimentos que nasce o grande conflito que irá perseguir Vikar por toda a trama, que ganha contornos sobrenaturais (em alguns momentos, confesso, desnecessários).
O importante mesmo para o espectador é levar em consideração que Zeroville tem uma narrativa que segue a premissa "isto é hollywood", com todas as distorções e mau caratismos que a terra mais famosa do cinema é capaz de carregar em seu bojo. E desde já adianto: fiquei curioso para ler o romance homônimo do escritor Steve Erickson, que serviu de base para a realização deste projeto. O filme conseguiu plantar em mim uma semente da dúvida sobre as intenções do original.
Para quem curte produções sobre bastidores da indústria, como A noite americana, de François Truffaut e Ed Wood, de Tim Burton - só para citar dois dos meus inúmeros favoritos - terá nesse aqui um prato cheio e alucinógeno.
Contudo, é preciso avisar de antemão que Franco inseriu uma espécie de segunda trama um tanto confusa para mexer com os brios dos espectadores (ou talvez seja a trama principal, mas eu tenha preferido o lado backstage da história, pois adoro referências ao passado e homenagens à era de ouro de hollywood). Enfim... Estejam preparados!
Mesmo assim, embora não concorde com todas as suas escolhas criativas, reconheço uma evolução na carreira de Franco como diretor. Já havia gostado bastante de O artista do desastre, sobre a inusitada figura do cineasta Tommy Wiseau e o seu "pior filme de todos os tempos, The Room" - que ganhou até Globo de Ouro - e embarquei também neste. Pena que seus projetos pessoais sejam tão difíceis de encontrar, mesmo na internet. O rapaz já enveredou até por William Faulkner e Charles Bukowski...
No geral, fica como opção alternativa para aqueles espectadores que volta e meia cansam da mesmice exibida no circuito comercial e desejam um plano B para quando os serviços de streaming estão na entressafra. Procurem! Vale, pelo menos, um domingo à tarde.
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Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre
4.0 215 Assista AgoraAquela decisão que ninguém quer tomar
(Nunca, raramente, às vezes, sempre, de Eliza Hittman, se debruça de forma gentil e inteligente sobre a questão do aborto e suas consequências posteriores)
O aborto. Não importa quantos séculos passem e o quanto a sociedade evolua, ele sempre será um tema tabu. E digo isso não por conformismo, mas pelo desejo que a própria sociedade tem de permanecer conservadora diante dos assuntos mais espinhosos e contraditórios. Parece, na maioria dos casos, um mecanismo de defesa ou um porto seguro. Seguir a maioria acomodada à ter sua própria opinião. Entretanto, nem sempre aqueles que seguem a manada fazem na prática o que dizem no conforto de seus grupos sociais.
Em outras palavras: conheço muita gente que é contra o aborto, mas se fosse a sua vida, seu corpo, tiraria a criança na mesma hora. E mesmo assim adora criticar a decisão dos demais. Ver Nunca, raramente, às vezes, sempre, da diretora Eliza Hittman, me deixou pensando nisso durante toda a sessão. O quanto somos hipócritas ao condenar decisões alheias, mas quando tomamos as nossas o buraco é sempre mais embaixo.
O longa de Eliza segue a jornada de Autumn (Sidney Flanigan, em seu primeiro trabalho de atuação) que descobre estar grávida de quase quatro meses, fruto de um relacionamento abusivo, e decide fazer um aborto. Seus pais não sabem de nada e ela pede ajuda à sua prima Skylar (Talia Ryder) com quem viaja para outra cidade para interromper a gravidez.
Antes mesmo da possível chegada de um bebê a vida de Autumn não se enquadra na categoria de "fácil" ou "bem sucedida". Ela não se sente incentivada dentro de casa, não é respeitada por nenhum dos homens com quem se relacionou e tem como chefe no trabalho um homem cafajeste, que a assedia descaradamente. Logo, como a chegada de uma criança poderia melhorar a sua vida em algum aspecto?
Resultado: tomar aquela decisão que nenhuma mulher gostaria de tomar, mas às vezes se torna a única viável. E o caminho será espinhoso, cheio de perguntas a serem respondidas, pois há um sistema que existe para que voltemos atrás em nossas decisões. Para que não seguimos em frente, que sejamos condescendentes (como todo bom pagador de impostos!). E Autumn precisará ter muita força de vontade para chegar ao final dessa saga.
Detalhe importantíssimo: mesmo terminada a intervenção não há garantias de que arrependimentos não surgirão a longo prazo, pois a vida não é uma ciência exata e está sempre nos colocando contra o muro, testando nossas escolhas.
Houve um momento da história de Autumn em que me peguei pensando em Ramón Sampedro, personagem de Javier Bardem no filme Mar Adentro, de Alejandro Amenábar. A diferença é que Ramon lutava pelo direito à eutanásia e se deparou com um sistema ainda mais covarde do que o hospitalar que fez o aborto da jovem, pois precisou ir aos tribunais para ver reconhecido o seu direito à morte, na linha "meu corpo, minhas regras".
E embora a diretora não tenha preferido um caminho ácido ou mesmo embrutecido, Nunca, raramente, às vezes, sempre se mostrou, pelo menos para mim, uma narrativa incômoda a todo momento. E me peguei pensando no quanto é difícil ser mulher em qualquer sociedade, não importa se você vive na África ou num país de primeiro mundo.
Autumn é o retrato vivo da sociedade maculada pelo machismo extremo, que protege homens cafajestes, às vezes crias de famílias abastadas e se vê numa posição de fazer o que for necessário - mesmo que o necessário lhe custe um rótulo de miserável ou assassina por parte dessa mesma sociedade deturpada - para chegar ao dia seguinte. Nesse momento sua vida se torna um amontoado de "infelizes dias seguintes" sem a menor perspectiva de dias melhores por vir.
E ainda tem gente hipócrita, no conforto de suas mansões, que prefere chamar essas mulheres de ressentidas, mal amadas ou vulgares...
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Crash: Estranhos Prazeres
3.6 328 Assista AgoraClã dos imorais
(Crash: estranhos prazeres, de David Cronenberg, passeia pelo caos urbano e o fanatismo para nos mostrar o quanto o povo norte-americano idolatra suas próprias obsessões)
Com o passar dos anos e o convívio com o cinema do mundo todo (e não somente Hollywood, como acontecia na minha adolescência) aprendi a enxergar a sétima arte sob a ótica de dois grupos de diretores. Os primeiros são aqueles que buscam a glória, a projeção, que não titubeiam diante da obtenção do sucesso. E os do segundo grupo, meus favoritos, são os provocadores por natureza. Aqueles que não se rebaixam diante do star system ou das convenções morais de sua terra natal. Se têm que escandalizar, escandalizam; se é pra debochar, debocham sem dó. E principalmente: estão sempre um passo à frente do politicamente correto.
Dentre os meus diretores preferidos desse grupo encontram-se figuras como John Waters (que anda sumido das telas, por sinal), Terry Gilliam, Glauber Rocha, Brian de Palma, Oliver Stone, Fernando Meirelles, Wong Kar-Wai, Quentin Tarantino, Tom Tykwer, Pedro Almodóvar, Bong Joon Ho, Alejandro González Iñárritú, Beto Brant, Roberto Rossellini, David Lynch e, claro, desde sempre, David Cronenberg.
E no caso de Cronenberg em particular cabe ainda um adendo por toda a sua contribuição artística junto ao departamento de maquiagem (como esquecer de Scanners: sua mente pode destruir e A mosca?) e a enorme habilidade que tinha, no passado, para trabalhar com efeitos práticos, muito antes dos efeitos especiais e o CGI ditarem os rumos da indústria cinematográfica americana.
A obra cinematográfica de Cronenberg está repleta de projetos inusitados, que me deixaram de cabelo em pé. De Videodrome - a síndrome do vídeo até Gêmeos - mórbida semelhança, não teve uma só película desse gênio sórdido que não mexeu profundamente comigo. Contudo, nenhum outro projeto dele me colocou de ponta a cabeça como Crash: estranhos prazeres. E talvez por isso nunca tenha tomado coragem de fazer uma crítica a respeito. Até agora.
Crash pega um diretor de tv que acaba de sofrer um acidente de carro, James Ballard (James Spader, do clássico eterno Tuff Turf - o rebelde), para usá-lo como fio condutor numa jornada de autoconhecimento rumo aos EUA dos dias de hoje. Só que essa história foi contada em 1996.
Após o acidente e a consequente internação, James - acompanhado de sua esposa Catherine (Deborah Kara Unger) - conhece Helen (Holly Hunter), Vaughan (Elias Koteas) e Gabrielle (Rosanna Arquette), uma trupe de desajustados que frequentam um grupo fascinado por acidentes automotivos. Eles se reúnem em plena madrugada para assistir à réplica de famosos acidentes que levaram à morte grandes celebridades, como o astro hollywoodiano James Dean. Mais do que isso: vivem tão intensamente a cena que parecem estar presentes no momento exato em que elas aconteceram.
Em outras palavras: James, Catherine, Helen, Vaughan e Gabrielle compõem, na verdade, um clã dos imorais, pessoas que subvertem a própria ética com o único interesse de satisfazer seus prazeres nefandos. E nesse sentido tanto o livro homônimo de J. G. Ballard - que serviu de base para o roteiro - como a adaptação para as telas de Cronenberg são um deleite para os olhos depravados mais apaixonados. Com seu sarcasmo e ironia únicos, o diretor constrói uma mise-en-scene caótica e desesperada, um contraponto à ideia que os Estados Unidos adora fazer de si mesmo para o restante do mundo.
Enquanto testemunhamos a destruição e o esfacelamento social diante de nossos olhos, Cronenberg ainda tem tempo de nos perturbar um pouco mais com uma trilha sonora incômoda, dessas que só serve para nos acompanhar (e confundir) quando terminamos a sessão. Podem ter certeza: a música vai ficar ecoando na sua cabeça um bom tempo depois que o filme terminar, pois o objetivo dela é exatamente este.
Logo, o resultado final dessa equação macabra não poderia ser outro: o espectador se vê invadido por uma crônica do caos, onde os seres humanos não passam de mercadorias frágeis e fúteis, implorando por migalhas de atenção. E não se esqueçam da sexualidade de cada um dos membros do clã. Sim, aqui ela é um personagem coadjuvante importantíssimo na hora de entendermos a carência e o desespero de suas vidas. Eles parecem, a todo momento, se segurar a boias salva-vidas invisíveis, na esperança de dias melhores que nunca vêm.
Após terminar o filme, corro para o site IMDb e me deparo com a informação de que o último longa de Cronenberg, Mapas para as estrelas, é de seis anos atrás. E fico triste. Espero sinceramente que ele não tenha se aposentado. Ainda não. Um artista brilhante desses não pode ficar sumido dos cinemas tanto tempo. Volta, David! Só mais um pouco... Os fãs imploram.
P.S: não confundir esse filme com Crash: no limite, do diretor Paul Haggis, vencedor de 3 Oscars em 2006 e que roubou descaradamente o grande prêmio da noite do extraordinário O segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee. A confusão seria, no mínimo, injusta.
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Sin City: A Cidade do Pecado
3.8 1,3K Assista AgoraCadeia alimentar
(A hq Sin City - a cidade do pecado, de Frank Miller, é uma graphic novel, uma police story e, principalmente, uma radiografia cruel sobre uma metrópole esfacelada pelo tempo e pela ganância humana).
Toda vez que eu leio (e releio) o quadrinista Frank Miller - mestre por trás de álbuns seminais da nona arte como Ronin, O cavaleiro das trevas e Elektra assassina - eu chego à conclusão de que aquelas pessoas que gostam de chamar as histórias em quadrinhos de "arte marginal" não entendem absolutamente nada desse universo. Mais: querem, no fundo no fundo, diminuí-la isso sim.
E recentemente eu decidi reler Sin city: a cidade do pecado com a intenção de aparar algumas arestas que, porventura, tenham ficado de minha leitura original, e ainda ficou mais nítida essa minha impressão. O cara é definitivamente um mestre e não tem nada de marginal. Não vejo suas histórias à margem da sociedade. Pelo contrário. Ele desnuda o mundo cruel no qual vivemos como poucos.
E em Sin City isso ainda ganha o requinte luxuoso de sua habilidade ímpar para trabalhar com luz e sombras (algo que sempre foi a marca registrada do artista).
Acompanhamos de forma angustiante a saga de Marv, um retrato vivo dessa metrópole cinza e destruída pela ausência de valores morais dignos. Ele está dormindo quando a mulher que mudou a sua vida, a única que foi capaz de lhe entender, Goldie, é assassinada, e decide pegar o desgraçado que fez isso com ela. Mas trata-se de uma missão inglória e ele terá de enfrentar muitos percalços além do sarcasmo e a ironia habituais de uma cidade que simplesmente não facilita para ninguém, ainda mais quando se está na rabeira da chamada cadeia alimentar.
E quem manda nesse lugar é Roark. Mais do que um político, um empresário de sucesso, um midas, etc etc etc, ele é o sintoma vivo da hierarquização social doentia e tendenciosa dos novos tempos. Em outras palavras: ele representa a doença social que o mundo precisa fabricar para justificar o desnível social e a incapacidade de vivermos juntos em harmonia.
Mas acham que Marv desistiu por causa disso? Nem pensar! Sempre rodeado por belas mulheres (a dançarina Nancy; sua agente de condicional, Lucille; e até mesmo sua pistola, que ele chama amorosamente de Gladys) e com um faro indestrutível para a violência, ele vai deixando um rastro de sangue por onde passa. É como um trem desgovernado de encontro a um muro de concreto. Não se sabe o que vai acontecer ao final da história até que aconteça...
No quesito visual, Sin City é um escândalo. Se existe uma razão para eu nunca ter me aventurado nesse mundo das graphic novels (e já disse em outros textos sobre quadrinhos que uma das maiores frustrações que eu tenho na vida é não saber desenhar) é o fato de que jamais conseguiria criar o mundo que Miller criou aqui. É simplesmente magnífico e único, impossível de replicar. E a ausência de cores engrandece ainda mais o seu estilo. O álbum é seco, lírico, brutal, cafajeste como somente as boas police stories conseguem ser.
E por incrível que pareça (podem até me chamar de maluco por escrever isso aqui), mas senti de certa forma a presença espiritual da narrativa de autores como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, gênios da Black Mask, nessa obra-prima. Fora, logicamente, a influência eterna que Will Eisner e o seu extraordinário Spirit têm sobre o autor.
Ao final da leitura minhas mãos coçam e eu leio tudo de novo, desta vez fazendo anotações num bloco. Procuro na minha coleção de dvds a adaptação para o cinema feita pelo próprio Miller e o diretor Robert Rodriguez, mas só assisto ao primeiro segmento (o que condiz com a trama do álbum e na qual Marv é interpretado pelo ator Mickey Rourke). E finalmente me dou conta de que estou em êxtase, diante de tamanho brilhantismo.
Sin city é uma derradeira radiografia sobre as metrópoles esfaceladas deste século XXI, que se preocupam mais com relações comerciais e poder absoluto do que com vidas humanas. E dentro deste universo sujo Frank Miller insere uma fauna de personagens os mais vis e estereotipados possíveis (como, aliás, não poderia deixar de ser!). Logo, o resultado dessa equação amoral e sórdida é um espetáculo visual de proporções gigantescas e aterradoras. Portanto, tudo o que um bom leitor de quadrinhos poderia desejar.
E se quiserem saber mais, vão - pelo amor de Deus! - ler e tirar suas próprias conclusões vocês mesmo. Trata-se de uma viagem pessoal e intransferível. E uma viagem ao inferno com passagem só de ida.
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À Prova de Morte
3.9 2,0K Assista AgoraAmerican vertigo
(À prova de morte, de Quentin Tarantino, fez parte de um projeto que não foi entendido da maneira como merecia quando foi lançado e acabou por se notabilizar como um grande painel sobre o caos americano de ontem, hoje e quiçá amanhã)
A sétima arte realmente é insana e cruel, às vezes... Vejam por exemplo o caso abaixo:
Juntem um filme-homenagem aos cinemas de segundo escalão que forneciam como único entretenimento produções baratas, arranhadas, com atuações viscerais, ruídos em excessos, falhas na trilha sonora e na coloração da tela e um diretor cuja mente tresloucada e seu lado pesquisador fanático por temáticas as mais inusitadas é capaz de qualquer coisa.
Resultado: Um projeto autoral animalesco (Peraí... autoral? Feito em plena era de crise dos estúdios hollywoodianos quando a expressão risco zero - ou o que quer que isso significasse - virava clichê barato na língua de produtores, diretores e outros chefões das principais companhias?).
Assim é Grindhouse, um projeto a quatro mãos realizado pela dupla Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, a quem poucos realmente assistiram juntos no mesmo rolo nos cinemas, seja por incompetência da empresa distribuidora, seja por preconceito puro. Passados dois anos de seu lançamento na versão integral, À prova de morte, a metade tarantinesca, deu as caras mostrando a face cínica de seu realizador, um profissional que nunca escondeu ao longo da carreira o apetite pelo diferente e o chocante.
A grande marca pessoal de Tarantino está lá: a capacidade de transformar seus protagonistas em alter egos de sua própria - e irracional, que fique bem claro! - psique. E no caso de Stuntman Mike (Kurt Russell), o dublê fracassado que sai às ruas, furioso (mas sem perder o sorriso sedutor e aberto), atrás de suas vítimas inocentes, isso ainda fica mais evidente. Provavelmente é uma de suas criações mais autobiográficas, mostrando abertamente reflexos de suas influências construídas ao longo da carreira, como os debochados e subversivos Enzo Castellari e Russ Meyer, pais de uma - podemos assim chamar - sétima arte provocadora, insultante.
Como pano de fundo a toda essa agressividade visual, e eis o mais interessante de toda essa viagem tarantiniana, o cineasta constrói uma exuberante enciclopédia da falta de moral do mundo americano - algo já mostrado anteriormente em Pulp fiction -, onde todas as obsessões (o fascínio erótico pelas cheerleaders, eternas e rebolativas líderes de torcida; a lap dance, versão minimalista dos shows de striptease que alucinam os becos mais inóspitos das principais cidades americanas; a sensual apresentadora do programa de rádio a quem todos querem saber se o corpo, a silhueta, é tão sensacional quanto a voz que ouvem diariamente...) estão escancaradas.
E que não venham os leitores desta crítica me dizer que nunca se pegaram pensando sobre a dona de certa voz sensual de alguma rádio carioca! "Como será que ela é ao vivo e a cores?", numa hora dessas é uma pergunta mais do que óbvia, isso fora os desejos de consumo (a bolsa da Prada, o carro dos sonhos, etc) e fanatismos que fazem parte da ordem do dia para servir de "inspiração" à saga contumaz desse road killer.
À prova de morte é amoral, sim, e em nenhum momento nega isso. E Tarantino não alivia o espectador em momento algum quando o assunto é exacerbar a sua (ou do personagem, como preferir interpretar!) carnificina rodoviária.
Se havia espaço, naquela época, para cinema como esse em tempos de globalização e de investimentos no óbvio, fadado a quebra de recordes e bilheterias? Não faço a menor ideia. O que sei de fato, passadas as quase duas horas de projeção, é que se trata de um filme mais do que necessário para entendermos o ser humano da contemporaneidade e suas distorções comportamentais. Disso não há a menor dúvida.
Se por um lado você pensa "Putz! Esse filme é nojento, é atroz, é misógino até a medula", por outro fica clara a noção de que a humanidade realmente passou dos limites em muitas das decisões que tomou nas últimas décadas. E não há nada de cafajeste em deixar isso claro para o público. Não vejo essa abordagem como politicamente incorreta, pois certas vísceras e deslizes precisam ser mostradas, doa a quem doer.
Em suma: estamos diante da vertigem americana, aquilo que nossos irmãos da terra do Tio Sam sempre adoraram varrer para debaixo do tapete (e continuam varrendo até hoje, na maior cara de pau!). E ver toda essa morbidez iluminada pelo sarcasmo e o deboche de Mr. Tarantino não tem preço.
Eu sei, eu sei... Se você nunca viu À prova de morte, deve estar pensando: onde é que eu encontro essa relíquia? E caso já tenha visto, talvez tenha se pego dizendo a si próprio: eu deixei passar alguma coisa quando vi anteriormente. Preciso ver de novo, agora! Então aproveite a pandemia e o tempo livre. Você não vai se arrepender.
P.S (há tempos eu não escrevia um desses): eu nunca mais vi nada, nem no cinema nem em casa, com a atriz Rose McGowan. Por onde anda essa moça?
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Cartunistas - Soldados de Infantaria da Democracia
4.5 1O cariocaturista
(R.I.P Lan)
Diz o senso comum que todo mundo tem um dom. Uns cantam, outros escrevem, a outros foi dado o dom de jogar futebol de forma sublime, fora os que atuam, desenham, dirigem cinema. compõem músicas, etc etc etc. E às vezes achamos o dom de certas pessoas menor, pois nossa petulância não nos permite enxergar o talento alheio nas mínimas coisas. Estamos enganados quando pensamos assim!
Ontem a cidade do Rio de Janeiro perdeu um de seus grandes talentos. E, no entanto, para muitos, ele era apenas alguém (mais um) que sabia desenhar. Não entendem que além de ele desenhar como poucos, fez de sua obra gráfica uma radiografia da cidade maravilhosa.
Falo do chargista e caricaturista Lan, mestre do traço, que faleceu em Petrópolis aos 95 anos, em decorrência de uma pneumonia.
Lan pode se considerar um privilegiado a depender de mim, porque desde moleque uma das primeiras coisas que eu vejo no jornal - em qualquer jornal - são as tirinhas e charges. Sempre me considerei um frustrado por não saber desenhar. E era fácil gostar do traço dele, de suas intenções gráficas. Poucos representaram a cidade do RJ e o Brasil como ele!
Portelense convicto, flamenguista apaixonado, mulherólogo por natureza (expressão, aliás, que ele utilizou se referindo a si próprio durante uma entrevista na TV) e um artista de visão única, que sabia ironizar, denunciar e encantar com o mesmo peso e medida.
O italiano de nascimento que viveu na Argentina, no Uruguai e na França encontrou aqui, na terra de Machado de Assis, do samba e do futebol, a sua verdadeira pátria. E dividiu sua carreira entre trabalhos para o Última Hora, jornal de Samuel Wainer que revolucionou a imprensa, o Jornal do Brasil e O Globo.
Detalhe importante: no jornal O Globo criou a coluna Cariocaturas, um de seus maiores sucessos. Aqui, denunciou a truculência policial, falou das distorções dessa metrópole controversa e nos impressionou com mulheres lindíssimas, de curvas descomunais. Sempre vou me lembrar das mulheres que desenhou e digo mais: além dele, acredito que somente Guido Crepax, autor da saudosa Valentina, tenha feito também um trabalho impressionante nesse quesito.
E quase ia me esquecendo: não bastasse tudo o que desenhou, sentiu, pensou, ainda arranjava tempo para assinar capas de discos, como as que fez para o cantor Zeca Pagodinho e vinhetas para os intervalos comerciais da programação televisiva.
O país e o mundo perdem mais um artista visual extraordinário - assim como aconteceu recentemente com Quino, criador da eterna Mafalda - e herdam um legado único, praticamente uma ensaio sociológico em formato visual.
E ainda assim vai ter gente dizendo que "era só mais um desenhista talentoso". Não, me desculpem a franqueza, mas não era só isso não!
E como eu sempre faço ao final desses obituários: fica com Deus, mestre!
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Talk Radio - Verdades Que Matam
3.5 19Palavras podem causar danos permanentes
(Talk radio: verdades que matam, de Oliver Stone ou apenas a vida se transformando num entretenimento sujo e sórdido)
Embora eu seja formado em comunicação social sempre fui naturalmente desconfiado sobre certo tipo de profissional que trabalha nessa área. Trata-se de um mercado repleto de aspones, deformadores de opinião e gente que se acha a quintessência do universo simplesmente porque comanda um programa de auditório ou de rádio, chefia uma redação de jornal ou mesmo a bancada de um telejornal.
Em outras palavras: alguns profissionais se consideram indispensáveis dentro desse universo, chegando a se autointitular "a única versão relevante dos fatos".
Entretanto, há um lado meu também eternamente curioso sobre essas pessoas e como elas fazem o mundo girar ao seu redor até que uma catástrofe ocorra ou a lucidez prevaleça sobre seus argumentos. E a sétima arte está repleta de grandes exemplares dessa categoria (desde já indico aqui dois dos meus favoritos: Um sonho sem limites, de Gus Van Sant e O abutre, de Dan Gilroy).
Oliver Stone, um de meus cineastas-fetiche, sempre dedicou parte do seu tempo e sua obra cinematográfica a esmiuçar a podridão e a contraditoriedade que há por trás desse mundo midiático sórdido. E nos entregou longas que entraram para a história - seja pelo mérito pessoal deles, seja pela controvérsia embutida na história. E um deles eu vinha perseguindo durante anos em lojas de dvds usados, sites de streaming e cópias piratas, sem sucesso. Até anteontem.
Refiro-me à Talk Radio: verdades que matam, de 1988. E desde já adianto: valeu a pena esperar tanto tempo. É não somente ácido do início ao fim como diz muito sobre o que a sociedade americana acabou se tornando com o passar dos anos.
O filme nos apresenta o âncora do programa de rádio Night talk - em tradução rasteira: conversa noturna -, Barry Champlain (Eric Bogosian, fantástico!). Apesar do sucesso de sua faixa de programação ele é uma figura vista como execrável por grande parte da sociedade norte-americana e sua vida pessoal é uma verdadeira bagunça. Divorciado e tendo um caso com a produtora do show, chegou naquele ponto da própria existência em que o único motivo que o faz sair da cama todo dia são as noites de segunda, na qual apresenta seu polêmico programa.
Um novo patrocinador surge na rádio oferecendo-lhe a possibilidade de uma transmissão mais ampla e isso não o satisfaz totalmente, pois Barry exige manter o seu controle criativo. E qualquer interferência de fora, para ele, é uma ofensa. O que vale mesmo, o que tem importância na hora H, é como ele comanda o show. E é nesse quesito que se encontra o grande mérito do longa.
Digo isso porque a maneira como Barry conduz seu espetáculo é o retrato vivo e amargo dessa América que não se cansa de vender-se como "a maior nação de todos os tempos", mas na prática não passa de um país cheio de subterfúgios e contradições. E olha que, como disse num parágrafo acima, a película já tem mais de três décadas!
Barry xinga, insulta, esnoba ouvintes, só ouve e dá papo àquilo que o interessa, recebe um pacote-surpresa de um interlocutor revoltado, dá corda a tipos exóticos e nonsenses, pede pausas fora de hora, ausenta-se (irritando até mesmo o seu empregador), e ainda dá atenção à ex-esposa, que ele convida para dar uma força a ele nesse momento de reviravolta na carreira.
Porém, é preciso enxergar as entrelinhas de toda essa discórdia. Oliver Stone está, na verdade, jogando o seu holofote sobre a vida e como nós, seres humanos, decidimos transformá-la num "entretenimento sórdido" (expressão, por sinal, da qual ele se utiliza quando chega ao apogeu da sua impaciência, num monólogo que por si só já vale pelo filme todo).
Ao final da sessão e completamente sem fala diante do desfecho aterrador, o que percebo é que Talk Radio meio que profetizou a sociedade contemporânea (que o diga os EUA). Viramos reféns da indústria falaciosa criada pela mídia e as corporações que vendem entretenimento óbvio e evasivo. E pior: nos orgulhamos de nossa acomodação, porque lutar contra é tão duro, cansativo e pouco recompensador que não vale o esforço. Pelo menos, não para a grande maioria que se diz "antenada com essa tal de globalização".
E o mais triste disso tudo é pensar que até mesmo hollywood já foi mais interessante e denunciatória quando o assunto era roteiro, boa história, etc. Agora precisamos nos contentar com literatura fantástica e homens e mulheres com superpoderes.
É... O mundo - e a indústria cinematográfica - não são mais os mesmos! E palavras, agora mais do que nunca, podem causar danos permanentes e irreversíveis.
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The Boys in the Band
3.5 210No confessionário
(Os rapazes da banda, de Joe Mantello, expõe a nu o ser humano - principalmente a sua versão homossexual - e nos fala da eterna dificuldade de deixar o passado exatamente onde ele está)
Durante a graduação na faculdade, uma década atrás, estudei na mesma sala com um rapaz adepto dos movimentos LGBTQIA e ele escrevia sua monografia de final de curso acerca de figuras públicas deste mesmo segmento. Mais do que isso: ele queria também saber a opinião de pessoas heterossexuais sobre esses movimentos e certa vez perguntou-me o que eu pensava a respeito do assunto. E eu me lembro exatamente do que lhe respondi:
"Eu espero que essas pessoas tenham lucidez e muita paciência para lidar com o que ainda vêm por aí, de encontro a elas e de forma furiosa. Vejo o país se tornando cada vez mais conservador e covarde nos últimos anos e quem não se adequar ao sistema certamente será caçado por esses moralistas. Se eles (os homossexuais) não tomarem cuidado ou não souberem lidar com a situação, podem vir a se tornar os judeus do século XXI".
A reação do rapaz foi de apreensão, mas ao mesmo tempo de entendimento. Ele próprio já percebia o retrocesso do país e vinha tomando cuidado com o que falava em certos segmentos.
Pois é... Quem diria que eu me pegaria pensando nisso tudo de novo ao assistir a versão da Netflix para Os rapazes da banda, remake do diretor Joe Mantello para um clássico dirigido cinco décadas atrás pelo extraordinário William Friedkin!
Inspirado na peça homônima de Mart Crowley e construído de forma visível para transparecer a ideia de um teatro filmado, Os rapazes da banda conta a história de um grupo de amigos homossexuais que se reúne num apartamento para comemorar uma festa de aniversário quando se deparam com a chegada de um visitante inusitado que vira o clima do lugar de ponta-a-cabeça.
Michael (Jim Parson, o eterno Sheldon de Big Bang Theory), Harold (Zachary Quinto), Donald (Matt Bomer), Larry (Andrew Rannelis), Cowboy (Charlie Carver), Emory (Robin de Jesus), Bernard (Michael Benjamim Washington) e Hank (Tuc Watkins) se reencontram para relembrar histórias, dividir experiências e festejar ao som de boa música e muita bebida.
Contudo, todo esse planejamento ruirá com a chegada de Alan (Brian Hutchison), um antigo colega de faculdade de Michael que ele sempre considerou gay, "mas nunca teve coragem de se assumir" e que agora vive uma crise no casamento. Alan pergunta se pode dar uma passadinha rápida na festa para falar com Michael e ele topa. Pronto. Está iniciado o embrião do caos.
Michael pede que os demais convidados não fiquem tão eufóricos ou desmunhequem em excesso, pois o amigo pode não entender tamanho liberalismo. Entretanto, a ruptura e as divergências surgem, o álcool corre solto e Michael decide propor um jogo sórdido: cada uma das pessoas na festa deve ligar para alguém que já amou na vida e fazer uma declaração aberta.
Nesse momento a narrativa proposta por Crowley ganha um tom de confessionário e o que vemos na tela é o lado B do ser humano, aquele que ele sempre prefere esconder do convívio com os demais. Cicatrizes são expostas, arrependimentos são evidenciados e uma enorme lacuna onde despeito, rivalidade e ressentimento ditam as regras de forma cruel e ambígua aparece.
Ponto vital a ser vislumbrado pelos espectadores: prestem atenção nos poucos diálogos e nos muitos silêncios incômodos envolvendo Michael e Harold. Para mim, de todo o grupo são os dois agentes de maior rivalidade presentes na casa. E detalhe: houve um momento de tensão antecipatória providencial para que eu percebesse que o desfecho daquela situação seria catastrófico (mas não menos avassalador, pelo menos para os fãs de bom cinema).
Mantello e, logicamente, Crowley criam juntos um clima claustrofóbico, quase um oráculo onde sentimentos afloram quando mais deveriam ser represados. Sim, pois há desabafos na vida que ficariam melhor engavetados (principalmente quando a vida decidiu seguir um caminho diferente daquele que planejávamos a priori).
Moral da história (se é possível acreditar numa moral nesse caso): os seres humanos estão sempre à procura de suas piores escolhas, quando o silêncio deveria ser visto com lucidez, e simplesmente não conseguem se desapegar do passado. Não importa o quanto tentem.
E voltando ao parágrafo inicial: imaginem toda essa repressão sendo posta para fora em tempos de fake news, sensacionalismo e uma sociedade que busca a fama e o holofote a qualquer custo. Lógico que vai dar merda. Em algum momento, vai dar merda. Só não sabemos quando nem quanto.
Mas não dá para antecipar o tamanho da tragédia. Nós (ainda) vamos ter de esperar o epílogo de todo esse ressentimento...
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A Rede Social
3.6 3,1K Assista AgoraDesaprendemos a viver
(A rede social, de David Fincher, completa 10 anos e, ao contrário do que acreditavam os descrentes e alienados, virou um retrato vivo de nossa incapacidade para vivemos coletivamente)
Eu pensei que a tecnologia, de uma forma geral, havia sido inventada para facilitar a vida das pessoas, quebrar barreiras e preconceitos, expandir horizontes, equivaler a sociedade como um todo. Infelizmente, mais uma vez estava enganado. Fui ingênuo, confesso. No final das contas o que se vê é que trincheiras foram ampliadas, visões de mundo contraditórias e gananciosas foram transformadas em redomas, até mesmo em bolhas ideológicas. E o resultado final dessa equação torpe é o exacerbamento doentio e artificial do que chamamos de vida online (como se vida isso, de fato, fosse!).
E o extraordinário diretor de cinema David Fincher nos avisou de tudo isso não faz muito tempo e não demos a mínima bola. Pior: uma grande parte da população mundial debochou, escarneceu, desdenhou, relativizou a questão...
Dito isto, vamos aos fatos que realmente importam.
Leio uma matéria no jornal O Globo que me informa que o longa-metragem de David Fincher, A rede social, completou uma década de existência e se tornou um ato premonitório da vida que estamos levando hoje em dia. E logo de cara eu penso: "cara, isso é triste! pacas!". Contudo, embora a premissa da matéria tenha seu caráter fúnebre e amargo, ela é exata em suas intenções. Nós (leia-se: a sociedade) realmente desaprendemos a viver.
O filme se debruça sobre a saga do quarteto Mark Zukerberg (Jesse Eisenberg, ótimo!), os irmãos Cameron e Tyler Winklevoss (Armie Hammer) e do brasileiro Eduardo Saverin (Andrew Garfield) para criar o facebook, hoje tão popularizado, milionário e alvo de inúmeras polêmicas, principalmente envolvendo questões de privacidade e ética. E desde já é preciso adiantar que eles tiveram a ajuda "luxuosa" do também midiático - e inescrupuloso - Sean Parker (Justin Timberlake), criador do Napster, polêmico serviço de compartilhamento de música que deu o que falar anos atrás. Logo, dá para imaginar por alto o legado dessa parceria incomum.
Esqueçam as rivalidades babacas óbvias e as discussões por conta de questões frívolas como "nós estamos namorando, mas você não mudou o seu status de solteiro do perfil" ou "eu pensei que nós fôssemos sócios igualitários nessa parada aqui!", a raiz do problema é ainda mais ampla. Trata-se de uma produção visionária sobre o fim de uma era. No caso, a era dos relacionamentos interpessoais.
E se acham que eu estou exagerando deem uma boa olhada ao redor nas festas de 15 anos e casamentos e formaturas ou qualquer outra celebração e percebam a quantidade de pessoas que não se comunicam mais. Todos preferem permanecer antenados em suas redes sociais, grudados a seus iphones de última geração. Nenhuma conversa ao vivo e a cores parece tão interessante quanto o mundo mágico do facebook (detalhe: ainda não existiam o instagram e o twitter, pelo menos com a força que eles têm hoje!).
Em outras palavras: robotizamos as relações humanas e nos orgulhamos disso, chamamos de um "passo natural rumo ao futuro". Resta saber que futuro é esse.
Na época de seu lançamento nos cinemas muitos críticos foram adversos à ideia da película ter sido indicada à 8 oscars (e venceu três na ocasião: roteiro adaptado, edição e canção original). Diziam muitos deles que a história não estava à altura dos Academy Awards. Que ela seria facilmente esquecida com o passar dos anos, pois tratava-se de uma temática vazia, quase fútil. Ledo engano, meus caros! O tema não somente se atualizou, se expandiu, como expôs nossa própria fragilidade para lidar com a situação.
Tornamo-nos avatares de nós mesmos, reles engrenagens de uma sociedade cada vez mais mecânica e repetitiva em seus atos. Sofisticamos o personagem de Charles Chaplin no clássico eterno Tempos modernos. E o problema agora não é mais a fábrica opressora e sim o fato de que não queremos mais o convívio humano da maneira como ele sempre existiu. Agora precisamos de uma interface, um computador, um reles aparelho entre nós. São eles que ditam como devemos nos portar, sentir, falar. Como disse antes: "cara, isso é triste!".
Não possuo respostas positivas ou soluções a longo prazo, mas espero sinceramente que consigamos virar essa página opaca para trilhar um novo caminho, um caminho mais honesto e coerente do que esse festival de solitários no qual estamos imersos e sequer nos damos conta. Pois, do contrário, a Alegoria da Caverna, do filósofo Platão, voltará numa versão ainda pior do que a original. E caso isso aconteça, o elo perdido que tanto deveríamos evitar ditará as cartas do jogo para todo o sempre.
P.S (na verdade, um pedido): pelo amor de Deus, não deixemos isso acontecer!!!
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Os 7 de Chicago
4.0 581 Assista AgoraNunca é pacífico
(Os 7 de Chicago, de Aaron Sorkin, volta no passado mas não deixa de falar do hoje repressor, mostrando o quanto é difícil ter uma opinião própria num mundo que não permite discursos diferentes dos da elite dominante)
Sejam os caras-pintadas em pleno Impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello, seja o movimento norte-americano Black lives matter que tomou as ruas dos EUA nos últimos meses, a minha opinião continua a mesma: não existem manifestações pacíficas. Quem quiser que se engane com isso, com essa definição. Parece-me (na verdade sempre me pareceu) um enorme contrassenso. É como a ideia de guerra santa. Como posso eu acreditar numa guerra feita em nome de Deus? É preciso ser muito tolo - ou fanático ao extremo - para acreditar nisso. E acreditem: o mundo anda cheio de tolos e fanáticos.
Entretanto, elas - as manifestações - continuam acontecendo ao redor do mundo de maneira, claro, nada pacíficas. E pior: gerando tragédias e injustiças de formas as mais assustadoras possíveis. E haja bala de borracha, coquetel molotov, gás lacrimogêneo e vocês sabem o que mais, para dar conta de toda essa guerra disfarçada de denúncia e busca por direitos civis.
Dentre as mais famosas já ocorridas os estudantes de história e interessados em conhecimento cultural sempre se lembrarão da Convenção de 1968 em Chicago. E ainda existem aqueles que preferirão se lembrar do julgamento que aquela manifestação causou, chamado por alguns de o "Oscar dos julgamentos", tamanho o impacto midiático que teve.
Porém, antes é preciso delimitar um rápido registro histórico para leigos no assunto: era uma América assolada pela Guerra do Vietnã e as mentiras contadas pela Casa Branca ao povo, Martin Luther King e Bobby Kennedy haviam sido assassinados e os movimentos pelos direitos civis inundavam as ruas a todo momento. Logo, como esperar um desfecho agradável para qualquer conflito que acontecesse naqueles dias?
O resultado não poderia ser outro e você pode conferir um pouco dele no interessantíssimo Os 7 de Chicago, do diretor Aaron Sorkin, que ficou famoso em hollywood por seu roteiro de A rede social, de David Fincher.
O filme entra de sola no processo que se seguiu a tal manifestação e que, na visão das autoridades tendenciosas, tinham como culpado sete homens: Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen, extraordinário!), Tom Hayden (Eddie Redmayne), Jerry Rubin (Jeremy Strong), David Dellinger (John Carroll Lynch), Rennie Davis (Alex Sharp), Lee Weiner (Noah Robbins) e John Froines (Danny Flaherty). E cabe aqui um adendo importante: ainda tentaram envolver na questão o líder do partido dos Panteras Negras, Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II). Todos eles eram vistos pelo governo como vagabundos e párias da sociedade, logo as vítimas ideais.
E a primeira barreira que eles terão de encarar logo de cara é o preconceituoso e pedante Juiz Julius Hoffman (Frank Langella, em atuação digna de Oscar). Vê-se, logo no primeiro instante do julgamento, que o juiz se comporta em cena como se os réus já fossem culpados simplesmente por pertencerem a uma determinada classe social dentro do país. Mas acreditem: a coisa piora e muito!
Entre os dois advogados que se digladiam dia-a-dia, semanas, meses a fio, o jovem promotor Richard Schultz (Joseph Gordon-Levitt), que a todo momento parece meio em dúvida sobre a lisura do processo, mas precisa seguir o protocolo, e o advogado de defesa William Kunstler (Mark Rylance), o que percebemos é que o verdadeiro motivo daquele julgamento encontra-se, de fato, fora do tribunal. Como o próprio Abbie Hoffman diz volta e meia: trata-se de um julgamento político. Eles, o Estado, precisam encontrar culpados que justifiquem toda aquela baderna. E eles, obviamente, nunca serão a polícia de Chicago, que incitou a violência sob ordens do prefeito Richard J. Daley (cabe aqui comentar, aliás, o único deslize do projeto: a ausência de um ator que interpretasse o prefeito).
E como não podia deixar de ser em todo julgamento dessa magnitude, provas são inventadas e ocultadas, testemunhas vitais para o desfecho do caso são impedidas de comparecer ou falar (e, dependendo do caso, têm seus testemunhos retirados dos autos do processo por uma simples deliberação arbitrária do juiz), membros do júri são ameaçados e substituídos por outros nada idôneos, agentes do FBI infiltrados na manifestação comparecem para dar suas visões contraditórias do que aconteceu, etc etc e hajam etc... Pois não se esqueçam: todo processo jurídico tem o seu quê de teatro. E um teatro profundamente sensacionalista.
E com o desfecho do longa - que é arrasador! - fica clara e ratificada a minha opinião proferida no parágrafo inicial: nada é pacífico, principalmente quando há a presença do poder constituído do Estado na questão. Não passamos, no final das contas, de reles marionetes que precisam atender às demandas das chamadas "autoridades". Se nos comportamos bem, somos modelos de sociedade; se questionamos o status quo, somos inimigos de alta periculosidade e precisamos ser trancafiados em celas. E não se esqueçam: isso aconteceu em 1968. Mais 2020 do que isso, impossível!
E ainda tem gente por aqui, em pleno século XXI das fake news e do fascismo nas ruas, que acredita em passeata, greve, petição online, abaixo-assinado e chegar a um acordo...
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O Iluminado
4.3 4,0K Assista AgoraUma nova cartilha para os filmes de terror
(Os 40 anos de O Iluminado, de Stanley Kubrick)
Uma semana antes antes de assistir pela primeira vez O Iluminado, épico sobrenatural do diretor Stanley Kubrick, em VHS (sim, eu sei... Faz tempo isso!) um colega que morava na mesma rua que eu me emprestou o exemplar que tinha do romance homônimo, escrito por Stephen King. E eu praticamente surtei diante daquelas páginas. Não era a primeira obra de King que eu lia, mas certamente aquela que me tornou depois fanático pelo autor. Moral da história: nunca mais parei de acompanhar o trabalho dele.
Termino de ler a á última página do romance, corro para a vídeo locadora e alugo a adaptação de Kubrick. E após quase duas horas e meia de puro estilo, glamour e técnica cinematográfica, penso comigo: "esse cara é foda". Porém, eu não sabia mais ao certo se o cara que era foda tratava-se de King, Kubrick ou Jack Nicholson (que interpreta o protagonista). No final das contas, e passados mais de 25 anos, chego à conclusão de que os três representavam um mesmo núcleo. E a minha vida como cinéfilo mudaria depois daquele dia para todo o sempre.
Pois bem: O Iluminado, obra seminal do gênero terror no cinema americano, completa quatro décadas sem perder um milímetro de sua relevância e impacto no mercado cinematográfico. Mais: ainda é idolatrada - e, de certa maneira, copiada em alguns aspectos - por gerações e gerações de cineastas a procura de prestígio e renome. E isso acreditem! não é pouco. Longe disso...
A saga da família Torrance, cujo patriarca Jack (Nicholson, simplesmente brilhante), é contratado para trabalhar como zelador no Hotel Overlook durante o período de inverno, quando o estabelecimento permanece fechado, é das experiências mais surreais e também inusitadas da história de hollywood.
E quando uso a palavra inusitada para me referir ao projeto estou falando das escolhas de direção e de narrativa feitas por Kubrick. O Iluminado simplesmente não se encaixa, em nenhum momento, em qualquer tipo de padrão proposto para o gênero até então. E esse é justamente o seu maior legado para a posteridade.
Não esperem por um clima gore, cheio de cenas violentas e banhadas a sangue na linha de Quadrilha de sádicos, de Wes Craven, realizado três anos antes. Muito menos o artifício mais do que repetitivo do jumpscare (que, aliás, eu sempre detestei e o considero um recurso típico dos "sem originalidade" alguma, por isso precisam assustar o público o tempo todo). Nada disso. Aqui o sangue quando jorra da tela busca um reação mais emocional da plateia e os tais "sustinhos" rápidos dão lugar a silêncios incômodos e provocadores. Algo bem mais apropriado ao estilo do diretor de clássicos como Laranja mecânica e 2001: uma odisseia no espaço.
Detalhe também imprescindível: o longa é todo rodado em sets onde a claridade dita o tom da trama. Nada de escuridão aqui, permitindo que personagens furtivos apareçam escondidos atrás de alguma porta. Quando vemos, por exemplo, as irmãs Grady que assombram Danny, filho de Jack, eles são mostradas em toda a sua exuberância visual e não como meros espectros. E há todo um clima de antecipação por trás daquele silêncio avassalador e daquelas luzes excessivas, como se a família soubesse de antemão quando a tragédia irá de fato acontecer.
Em suma, o longa de Kubrick propôs, à sua maneira, uma nova cartilha para os filmes de terror. Cartilha essa seguida no cinema contemporâneo por longas recentes como Um lugar silencioso e Hereditário, o que prova o quanto suas ideias não envelheceram até hoje, tamanha a ousadia com a qual foram realizadas na época.
Reza a lenda urbana sobre o projeto que Stephen King não apreciou tanto assim a adaptação de Kubrick, que o incomodaram as chamadas "liberdades criativas" propostas pelo diretor. Contudo, acho-as bem vindas no sentido de relerem um clássico sem a necessidade de realizar uma mera cópia do livro. E é inegável - pelo menos para mim - que o trabalho de Kubrick foi digno de um mestre da sétima arte. Acredito que pouquíssimos teriam feito um trabalho melhor. E nesse sentido, vejam o longa-metragem Doutor Sono, de Mike Flanagan, que se propõe em alguns momentos uma "continuação" para este projeto. O desnível, meus caros leitores, é visível e gigantesco.
E o que eu poderia dizer mais, além do que foi dito? Que o filme recebeu críticas mistas quando foi lançado nos cinemas? Até parece que isso afetou sua longevidade e proposta narrativa! Que ele merecia pelo menos um Oscar, mas não levou? Isso qualquer fã de terror sabe. Que existem teorias e mais teorias da conspiração sobre o Hotel Overlook e há inclusive um documentário de nome Room 237: O labirinto de Kubrick sobre isso? Procure o IMDb e saiba mais sobre o assunto. Honestamente... Chega de desculpas.
O que interessa mesmo é que se trata de um filme à frente do seu tempo e do seu próprio gênero, que mudou completamente a maneira como hollywood passou a enxergar o que chamamos de terror.
E isso, meus amigos, não se vê todo dia (que dirá numa hollywood repetitiva e presa numa bolha mercadológica como a atual!).
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Santiago
4.1 134O homem que viveu no passado
(Santiago, de João Moreira Salles, é cinema, é experimento, é o filme dentro do próprio filme; em suma: é a sétima arte estreitando as relações entre ficção e realidade).
Adoro cineastas que fujam do convencional, que experimentem, que na sua obra dialoguem com seus demônios interiores, que reconstruam a todo momento o seu processo criativo, que fujam de si mesmos à procura do, às vezes, inatingível. Isso sim é a verdadeira sétima arte.
E dentre os nomes que mais chamam a minha atenção nesse sentido há um documentarista nacional que eu trato como um verdadeiro fetiche: João Moreira Salles. Há anos quero assistir à Santiago, seu projeto mais pessoal, e não consigo encontrá-lo em lugar nenhum. Para minha felicidade o canal curta esta semana atendeu minhas preces e o exibiu. Desde já adianto minha impressão: sublime!
Salles vai de encontro às memórias do mordomo de sua família, um homem de extraordinária memória e sabedoria. Procura-o, já aposentado, em seu apartamento, e começa a gravar uma série de depoimentos mágicos. Ele próprio se intitula "um homem que viveu no passado". Roda seu filme. Mas, infelizmente, não consegue montá-lo. Algo o impede de realizar a decupagem. Bloqueio criativo? Quem dera fosse fácil assim explicar a mente dos diretores de cinema!
Passam-se 13 anos que as filmagens foram realizadas e só restam ao diretor 9 horas de registro audiovisual bruto e 30 mil páginas transcritas pelo próprio Santiago onde estão reunidas histórias sobre a aristocracia mundial, uma paixão eterna deste homem. E ele, Salles, tenta mais uma vez montar o filme. Mais do que isso: ele precisa recomeçar do zero. E é justamente esse aspecto o legado mais importante do documentário.
Enquanto Santiago narra suas façanhas, relembra as festas, o período que conviveu de perto com presidentes (JK e João Goulart o tratavam como um igual, segundo diz), reza em latim - um dos momentos mais poderosos do longa -, toca castanholas, confessa seu fascínio pelo boxe e o amor pelas flores e madonas, o diretor luta consigo mesmo para dar sentido e coerência a todo este material extraordinário.
A voz de Salles pontua toda a trama e realça seus dilemas, explica seus erros e escolhas passadas que o levaram a não concretizar o filme 13 anos antes. E é interessante e reflexivo - para mim então, cinéfilo de carteirinha desde os 10 anos, nem se fala! - acompanhar o trabalho do documentarista, que tenta entender onde falhou, porque escolheu o caminho A e não o B. Recomendo de olhos fechados esta pequena jóia para estudantes de cinema. Trata-se, em suas entrelinhas, de um making of poderosíssimo.
Ao final da exibição na tv a cabo chego a duas conclusões distintas: 1) é o primeiro filme de João Moreira Salles que eu vejo que não mantém uma relação, digamos, direta com questões pertinentes ao Estado ou a política partidária. Como eu disse antes: seu projeto mais pessoal, que o fez lembrar a todo momento de sua infância e de seus pais, ambos já falecidos. E 2) o documentarista estreita de vez as relações entre ficção e realidade sem tornar a experiência fílmica caricatural ou falsa.
É daquelas produções que me fazem pensar o quanto o povo brasileiro é completamente louco por não valorizar a sua própria produção audiovisual. Como assim não admirar tamanha beleza estética ou apuro narrativo? Só mesmo um ignorante relegaria tal projeto à condição de esquecimento ou deboche.
Indico Santiago com toda a devoção que somente os fãs mais apaixonados do cinema são capazes de reconhecer para os cidadãos brasileiros sobreviventes que ainda acreditam na força da nossa sétima arte (ao contrário daqueles que torcem doentiamente pelo fim das leis de incentivo e de órgãos como a Ancine).
É de mais reflexões e exercícios de estilo como esse que nossa indústria cultural anda precisando. Urgentemente.
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Dois Papas
4.1 962 Assista AgoraYin e Yang no Vaticano
(Dois papas, de Fernando Meirelles, é muito mais do que simplesmente um filme sobre fé e as consequências dela. Ele fala das eternas distorções e comportamentos que precisamos carregar ao longo da vida, como quem carrega uma mochila pesada)
Quando eu era mais novo meus pais volta e meia me perguntavam quais os países ao redor do mundo que eu gostaria de conhecer, se eu pudesse. E depois que eu respondia a pergunta eu sempre me dava conta de que haviam duas regiões do mundo que eu não fazia a menor questão de conhecer. A primeira é o Oriente Médio, por conta da eterna mania que eles têm de transformar a violência em demagogia religiosa. E a segunda é o Vaticano.
E quando eu disse isso ao meu pai certa vez e ele me perguntou o porquê eu lhe respondi: "é porque eu tenho a sensação de que a verdade não existe naquele lugar; tudo é tão bonito em excesso, escondido em excesso, inverossímil em excesso e dizem que é a casa de Deus, um homem simples, filho de um carpinteiro. Mais parece o templo da mentira, isso sim".
Anteontem, depois de me deparar com mais de cinco cópias defeituosas em DVD do longa Dois papas, do brasileiro Fernando Meirelles - cheguei até a pensar que fosse alguma espécie de maldição ou trama sórdida para que eu não visse o filme -, enfim consegui assisti-lo e confesso: consegui diminuir um pouco meu preconceito sobre a terra dos pontífices.
A trama gira em torno da relação conturbada mas de respeito entre o recém empossado Papa Bento XVI, após o falecimento do Papa João Paulo II e o então cardeal Jorge Bergoglio, que anos depois assumiria o papado como Francisco (interpretados de forma sublime pelos atores Anthony Hopkins e Jonathan Pryce). E mais importante do que isso: desde o primeiro fotograma a película se propõe um interessante debate sobre fé e a jornada do homem no mundo contemporâneo.
Bento XVI parece, à primeira vista, um homem do passado, de um ontem cada vez mais distante, sentado sobre um livro de regras impreciso, mas que precisa ser seguido à risca. Culpa a própria civilização ocidental por ter se tornado o que se tornou e chama todas as modernidades do século XXI de "aberrações contra a moral cristã". E justamente por isso é visto por muitos fiéis católicos como um mero nazista que não merece a batina que veste. Contudo, por baixo de sua figura carrancuda, reside um homem cansado de enfrentar tantos demônios pessoais. Em suma: ele anda duvidando dos planos de Deus para a sua pessoa.
Já Jorge é o retrato vivo da modernidade, do que a sociedade está querendo mas ao mesmo tempo tem medo de se transformar. Não acredita em luxos e pomposidade, se assusta de vez em quando com a grandiosidade do Vaticano, chama a igreja de narcisista e prefere suas dúvidas a essa eterna mania dos conservadores de dizerem "eu tenho certeza" sobre tudo. E mesmo assim carrega em seu íntimo sequelas terríveis do passado na Argentina.
E a priori pensamos: esse debate nunca dará certo, pois eles são yin e yang. Contudo, yin e yang também são complementares em suas intenções e precisam chegar a um denominador comum. O catolicismo precisa disso. A humanidade, então, nem se fala. E o mundo, cada vez mais autodestrutivo e intolerante, implora que eles se façam entender. E eu disse entender, não concordar em tudo.
A trilha sonora do longa vai de Abba à Mercedes Sosa sem esquecer dos Beatles e achei curioso que o diretor não apelasse para óperas, música clássica ou algo mais tradicional ou sisudo. Mas quer saber? Que bom que ele assim o fez. Do contrário só legitimaria o cansaço do mundo - e da sociedade - em continuar acreditando que homens religiosos não descontraem ou mesmo se divertem. Jorge (e mesmo depois, já como Francisco) provou que eles, os passadistas, estão errados. Dança tango, come pizza e torce fervorosamente pelo seu time do coração, o San Lorenzo.
Ou em outras palavras: é um ser humano, como eu e vocês que estão lendo esta crítica. Logo, está sujeito às mesmas falhas e pecados como qualquer um.
Há um momento do filme em que um dos papas fala sobre a globalização da indiferença vigente nos dias de hoje e nesse momento o diretor não só me ganha de vez como deixa claro suas intenções. Precisamos urgentemente deixarmos nossas convicções ferrenhas de lado e voltarmos a conversar. Falta diálogo no mundo e a humanidade passou a achar isso extremamente natural. Não é. Enquanto continuarmos habitando numa sociedade onde o eu prevalece só daremos força ao fascismo e a ignorância reinante neste século. E isso eu pelo menos não aguento mais.
Muita gente vai me perguntar ao fim deste texto: "e aí, você iria ao Vaticano agora, depois de ter visto o filme?". Como acredito mais na dúvida do Papa Francisco do que na certeza inicial do Papa Bento XVI prefiro responder: "é um caso a se pensar".
E só por isso já valeu - e muito! - a pena ver este belíssimo exemplar da sétima arte.
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O Farol
3.8 1,6K Assista AgoraSob máxima pressão
(Ver O farol, de Robert Eggers, me fez pensar de forma crítica no quanto o ser humano é responsável por sua própria caixa de pandora - e nem se dá conta disso).
Trabalhei durante dois anos numa rede de cinemas na zona sul do Rio de Janeiro e convivi de perto com os operadores projecionistas. Na verdade, eram as pessoas da empresa com quem mais criei laços de afetividade. Adorava, nos meus horários de intervalo, subir para a cabine e conversar com esses profissionais, aprender um pouco de sua profissão, e principalmente entender um pouco de seus temores. Sim, eu disse temores.
Digo isso porque de todo o quórum que trabalhava na empresa naquela época ninguém pedia mais licenças médicas ou afastamentos temporários do que eles. Convivi com dois, inclusive, que chegaram a pensar em suicídio e pediram demissão antes que a coisa ficasse mais séria e com o tempo entendi a dificuldade de trabalhar sozinho, isolado dos demais funcionários. Acreditem: não é para qualquer um. E não se iludam com a ideia apaixonante de que esses homens trabalham diretamente com a sétima arte, oferecendo entretenimento às pessoas. Pelo contrário...
Esta semana enfim consegui assistir ao longa O farol, do diretor Robert Eggers - que ganhou certa notoriedade aqui no Brasil com seu filme anterior, A bruxa - e ao final da sessão me peguei mais uma vez relembrando desses homens de coragem. E também do desafio que é trabalhar sob pressão, isolados de tudo e de todos.
O farol conta a história de dois faroleiros que precisam tomar conta de seu posto por exatas quatro semanas, até serem resgatados por um barco da firma para a qual prestam serviço. São eles Winslow (Robert Pattinson) e Wake (Willem Dafoe, como sempre ótimo!).
O primeiro é o novato regular, facilmente encontrável em qualquer empresa que se preze. Segue o regulamento à risca e prefere não falar muito sobre sua vida pregressa. Já o segundo, mais velho, acredita mesmo é que as regras que devem ser de fato seguidas são as suas. Ou seja, é o estereótipo vivo do líder, do homem que veio ao mundo para mandar e não gosta de ser questionado ou interrompido.
Enquanto Winslow faz o trabalho sujo ao qual lhe cabe - limpa cisternas, pinta paredes, realiza pequenos consertos -, Wake é o dono da casa e responsável pela luz do farol (algo que logo de cara contraria Winslow, que prefere dividir turnos). E sim, eu já sei o que vocês, leitores, devem estar pensando: a história se resume a isso? A priori é o que o diretor quer que pensemos. Mas lógico que ele não conseguiria tal feito por muito tempo (vide o que fez em A bruxa).
Pescaram pelo menos a essência do que foi dito nos dois primeiros parágrafos? Pois bem: essa realidade cai como uma luva para explicar a transformação que acometerá Winslow com o passar dos dias. Trata-se de um homem solitário, sem o menor apoio de seu superior (que só consegue lhe dirigir a palavra para criticá-lo) e sob forte pressão psicológica. E o resultado dessa equação será catastrófico. Quase como abrir uma caixa de pandora pessoal.
A fotografia em preto-e-branco de Jarin Blaschke é um show à parte e ajuda a construir o perfil atormentado de Wislow. E o surgimento de arquétipos isolados - a gaivota, a sereia, a tempestade que impede o resgate de chegar etc -, sempre antecipando o surgimento de algo ainda pior na vida do jovem faroleiro, faz com que a trama ganhe um certo caráter psicanalítico. E desde já deixo uma salva de palmas para a produtora A24 que vem chamando a minha atenção nos últimos anos com grandes realizações.
Há, é claro, o momento Um dia de fúria (sim, aquele filme hoje cult do diretor Joel Schumacher com o ator Michael Douglas na pele de um cidadão comum que surta após ficar horas preso num engarrafamento) em que o jovem Winslow, mesmo tentando a todo custo enfrentar seus demônios pessoais e suas condições de trabalho adversas, não resiste e sucumbe ao ódio no que ele possui de mais viril e visceral. E confesso que Pattinson, que sempre achei um ator mediano, me surpreendeu.
E é nesse exato momento que eu chego à minha reflexão principal sobre a obra cinematográfica em questão: O farol fala de forma soturna e nada convencional do eterno embate entre o homem e os obstáculos que ele cria durante sua jornada pela terra. E às vezes ele cria seus próprios fantasmas do armário, pois precisa de uma justificativa ou mecanismo de defesa que o leve até o dia seguinte e ao próximo e ao depois deste, tornando sua rotina um desafio praticamente interminável.
Assim na arte, assim na vida. Eu vi isso de perto, diante de meus olhos, em muitos indivíduos com quem trabalhei e sou grato por não ter sucumbido da mesma forma que eles, já que era um trabalho extremamente estressante e repetitivo.
P.S: (um pequeno detalhe que eu não pude deixar passar). O filme tem produção do brasileiro Rodrigo Teixeira. Interessante a carreira que esse moço vem fazendo no cinema internacional. Longa vida e sucesso a ele!
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Cisne Negro
4.2 7,9K Assista AgoraO inimigo está dentro de você
(Cisne negro, de Darren Aronofsky, é devastador e extremamente coeso ao mostrar do que o ser humano é capaz para atingir a fama)
Até que ponto a palavra superação pode ser administrada? E a partir de quando perdemos o controle de tudo e nos damos conta de que nosso único desejo é o de ser o número 1 no que quer que façamos? Honestamente... Às vezes tenho a impressão de que certas pessoas são, na verdade, seus próprios inimigos.
Não é de hoje que os tabloides e os programas televisivos mostram o que artistas e desportistas são capazes de fazer para se manter no lugar mais alto do pódio ou em evidência na carreira, sempre conquistando novos papéis de destaque. O problema é justamente quando todos os limites do ético e do saudável são ultrapassados em nome de uma suposta fama ou prestígio.
E é aqui que reside o grande dilema da jovem bailarina Nina Sayers (vivida de forma intensa pela atriz Natalie Portman, vencedora do Oscar de melhor atriz por esse trabalho) no drama Cisne Negro, dirigido pelo cineasta Darren Aronofsky.
Escolhida como protagonista para a próxima montagem do balé Lago dos Cisnes, a promissora bailarina, ainda novata e não totalmente conhecedora das armadilhas que envolvem a sua profissão (e o mundo da dança de uma forma geral), tropeça em suas próprias dúvidas, divergências, na falta de coragem para assumir certos posicionamentos diante de uma mudança tão radical em sua vida, sem contar as sucessivas exigências vindas de dois focos distintos: a primeira dentro de casa, pela mãe, Erica (Barbara Hershey), uma relação extremamente possessiva, e a segunda profissional, enredada pela sedução e a cobrança excessiva de seu diretor, Thomas Leroy (Vincent Cassell, em atuação brilhante).
Com o aparecimento da misteriosa rival Lily (a belíssima Mila Kunis), seus questionamentos internos chegam à um patamar que beira à loucura total. E somente com muita força de vontade e determinação ela será capaz de combater tantos "adversários".
Aronofsky mistura estilos que em muito lembram o cinema psicológico do início da carreira de Brian de Palma (principalmente pela condição claustrofóbica em que se encontra a personagem principal) e o estilo narrativo de Roman Polanski (com lembranças que remetem a Repulsa ao sexo).
E dessa mistura de sobrenaturalidade com drama existencial ele cria uma metáfora para pensarmos o papel do ser humano numa sociedade tão exigente e que cobra tanto das pessoas, dividindo-as em dois grupos desiguais: os melhores e o restante da população.
Com uma câmera na mão que surpreende ao focalizar a dor, o desespero e o sacrifício que envolve uma das formas de arte mais genuínas e fantásticas da história da humanidade, o diretor realiza mais uma película audaz - o que vindo dele é praticamente clichê, vide produções fortes em seu currículo tais como Réquiem para um Sonho, O Lutador e o visceral Mãe! -, compondo assim uma cinematografia de enfrentamentos, algo que parece agradá-lo profundamente.
Em poucas palavras (se é possível resumir uma película dessas), Cisne Negro é subversivo ao mostrar o balé além do espetáculo, das luzes e dos aplausos de agradecimento vindos do público. É forte, indigesto em alguns momentos - o cineasta não tem medo de pesar a mão ao retratar certas psicoses e desejos da artista que desce às profundezas de sua própria alma rumo ao estrelato -, e profundamente brilhante.
E, provavelmente, acredito que é isso que está faltando no cinema contemporâneo: um pouco de ousadia. E não apenas meros efeitos especiais, tecnologias de captação de imagem e elencos esbeltos que mais funcionam como belas paisagens, porém sem conteúdo algum.
A grandeza do filme está justamente em se expor, algo que o cinema mundial contemporânea parece estar desaprendendo nos últimos anos, salvo um grupo restrito de grandes realizadores.
E pensar que eu vi essa pequena joia a primeira vez uma década atrás no cinema (e parece que foi ontem)...
P.S: eu conheço um grupo de pessoas que cataloga esse filme dentro do gênero terror. E quer saber? Eles não estão totalmente errados!
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Monsieur Rene Magritte
3.6 2Um novo visível
(O filho do homem, de René Magritte, é um intrigamento em forma de pintura e não à toa povoa a curiosidade de milhões de fãs das artes plásticas ao redor do mundo)
Eu vejo as artes plásticas desde garoto sob a ótica de dois grandes grupos: os promovedores de beleza e êxtase (o que não significa que eles tenham a única intenção de produzir o belo) e os provocadores. E este segundo grupo, confesso, sempre me atraiu mais. É o caso, por exemplo, de Andy Wahrol, Damien Hirst, Ai Weiwei... Todos eles têm algo em comum: conseguem me perturbar, me tirar do eixo desde o primeiro momento em que vislumbro seus trabalhos.
Entenderam até aqui? Pois bem: incluam também nessa lista o surrealista René Magritte. Desde o famoso quadro "Isto não é um cachimbo" esse senhor me incomoda (no bom sentido, é claro!). Trata-se de um artista de grandes e intrigantes ideias, que não se basta com o óbvio. E curioso: um homem simples, de vida pacata, que passou mais de quatro décadas casado com a mesma mulher, sem arroubos ou ousadias. Ou seja, uma vida sem graça.
E este mesmo homem criou um dos quadros mais controversos e discutidos de todo o mundo. Falo de O filho do homem.
Os fãs de artes plásticas e pintura em geral certamente sabem de que quadro eu falo. Um homem vestido com sobretudo cinza e chapéu coco - por sinal, uma marca registrada do pintor - e que tem seu rosto encoberto por uma maça verde, embora através dela consigamos ver seus olhos.
A tela foi criada como um autorretrato do próprio Magritte, mas ficar nesse senso comum não me parece o suficiente quando queremos analisar a obra. Detalhe: o próprio artista várias vezes disse que sua obra não tinha o afã de produzir um significado prático. Ela precisava ser vista por aquilo que ela era e nada mais. Contudo, não resisto às minhas viagens pessoais (e quase esquizofrênicas) que visam decifrar os meandros da mente e do trabalho dos grandes artistas.
E o principal aspecto que logo me chama a atenção é a presença da maçã e toda a correlação existente com a história bíblica de Adão e Eva. Mais: já li em vários ensaios sobre simbologia a relação estreita entre o objeto/ a fruta maçã e o conceito de pecado. A própria cidade de Nova York (ou "cidade do pecado", como muitos a conhecem) é chamada por seus próprios habitantes de Big Apple. E ver os olhos do filho do homem aparecendo por trás da maçã me remete à ideia de que ele poderia estar escrutinando os pecados do mundo.
Outro ponto interessante é que o próprio corpo do personagem bem como a silhueta apresentada na tela já aponta para aspectos desconcertantes. Falta um botão no casaco que ele veste, seu cotovelo esquerdo está nitidamente na posição errada... E associe a isso o "problema de consciência" que envolvia o autor - daí a dificuldade dele em pintar seu próprio retrato - e logo nos deparamos com uma figura disforme, meio dissociada da ideia de normalidade. E a mim cabem certas perguntas sem resposta aparente: seria o filho do homem o exato oposto de seu autor? Teria ele, mesmo sem querer, retratado o perfil do homem desse século XXI, um homem confuso, que parece não caber em suas próprias vestes e, no entanto, um curioso, um voyeur?
E nesse momento me repito. Não se esqueçam: é apenas a viagem pessoal de um admirador de arte amador que adora vasculhar as intenções e escolhas de artistas que o deixam intrigado. E nada mais.
Polêmicas à parte, mesmo envolto em mistério (certamente o grande tema da obra dele), Magritte tornou-se um fenômeno à sua maneira e inspirou as gerações posteriores. O próprio Andy Wahrol que citei num parágrafo acima foi extremamente influenciado por seu trabalho. Paul McCartney tirou daqui a ideia do logo da Apple, empresa que negocia os royalties dos Beatles até hoje. E hollywood certamente já satirizou a tela inúmeras vezes, em muitos projetos cinematográficos.
Ao fim, descartados todos os elementos de incompreensão plausíveis, o que se vê é um grande conflito entre o que o autor chamava de "visível oculto" e "visível presente". Enfim... Guardadas as devidas proporções e períodos históricos Magritte também entendia como poucos o quanto a sociedade é curiosa e gosta de bisbilhotar sobre aquilo que não consegue ver nitidamente. E há quem diga que ele, no fundo, criou uma nova forma de visibilidade.
Mais contemporâneo e autoral do que isso, impossível.
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A Opinião Pública
3.7 32Herdeiros do medo
(A opinião pública, de Arnaldo Jabor, é um estudo sociológico sobre um país que sempre adorou flertar com a ignorância e a ilusão)
Como se faz para ter uma opinião num país onde o simples direito de dizer o que pensa é por si só, para muitos, um delito grave? Tem quem me chame de maluco, de teórico da conspiração, mas a verdade nos últimos tempos é que se dependêssemos única e exclusivamente de um certo fragmento de nossa sociedade o mundo seria um lugar muito melhor se todos permanecessem calados, guardassem suas opiniões para si. São os que chamam a democracia de perda de tempo.
Não bastasse a tristeza que é saber dessa informação, ela ainda se agrava mais quando nos damos conta de que, no Brasil, esse é um mal secular, construído a base de décadas e décadas de um analfabetismo coletiva. E para quem acha que eu estou exagerando procurem pelo sucinto e extraordinário A opinião pública, documentário do diretor Arnaldo Jabor realizado em (acreditem!) 1967.
Pouco tempo atrás também assisti a Eu te amo, outro longa do diretor repleto de boas reflexões para entendermos esse hoje confuso no qual estamos inseridos, e fiquei deslumbrado de perceber que seu cinema não envelheceu praticamente nada. Pelo contrário: continua afiadíssimo e sintonizado com nossa realidade. Contudo, com A opinião pública, ele está um passo à frente, pois decide deixar o povo falar. E quando o povo fala, é preciso que tomemos muito cuidado!
O longa é composto de uma série de entrevistas realizadas na cidade do Rio de Janeiro e trabalha bem o conceito de dicotomias, volta e meia opondo pessoas com opiniões contrastantes sobre o mesmo tema. E os temas são os mais diversos: amor, trabalho, futuro, vida, etc.
É possível vermos os mesmos moralistas e demagogos de sempre, indignados com a juventude (na época, os "transviados"); para eles - que adoram ofender e acusar qualquer um que seja diferente deles mesmos e do sistema - os verdadeiros culpados do país ter ruído e não ser hoje uma potência mundial.
E no melhor estilo "a vida é uma guerra" (frase, por sinal, proferida por um dos entrevistados de maneira lúcida) vemos debates e enfrentamentos os mais inusitados. O meu preferido, vou logo dizendo sem rodeios, é o da mulher de meia-idade tentando explicar a duas adolescentes a diferença entre amor e paixão. Lembrou a minha avó dizendo para as meninas mais novas: "minha filha, toma cuidado! a vida não é desse jeito que você está pensando, não!". Divertido e, mesmo assim, de uma verdade inabalável.
Ilusão x realidade, o papel da mulher na sociedade (daquela época, e principalmente de agora), ser famoso x vencer na vida, sobrenatural x ciência, viver o hoje sem expectativas versus imaginar o futuro... São muitos os temas que compõem o enxuto documentário e à medida que ele vai avançando em suas intenções e confrontamentos eu me peguei lembrando do também ótimo O cinema falado, o filme de ensaios do cantor e compositor Caetano Veloso. Ambos estão interessados em provocar uma reação do público, seja ela qual for.
Quando a última parte do filme - aquela que fala dos dogmas, do desespero que a sociedade contemporânea chama de fé - atinge o espectador, quase grito também, mas de raiva. Raiva por perceber a inércia dos tolos, daqueles que adoram a manipulação, não conseguem viver além dela.
O narrador, uma das melhores coisas do filme, chama esse grupo de pessoas (que representam a nossa classe média) de "a classe perplexa", sempre assustados com tudo, temendo pelo amanhã. E dentro do contexto deles, a felicidade não passa de uma forma de poder, um interesse de ascender perante os demais.
E depois de tanto blá blá blá, de tanta incoerência, de tantos sonhos (melhor dizer delírios) ilógicos, chega a sensatez do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade para encerrar essa jornada confusa, pois tem como ferramenta principal a ignorância e a falta de empatia pelo outro. Ele, Drummond, chama essas pessoas de herdeiros do medo. E está coberto de razão.
Já o problema para mim, que aplaudiu o filme emocionado, reclamando apenas da curta duração, está um degrau acima disso: será que um dia tomaremos vergonha na cara e acordaremos para o que realmente interessa? Honestamente... Eu prefiro não arriscar uma resposta minimamente sensata.
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O Preço da Verdade
3.9 208 Assista AgoraO tamanho da impunidade
(O preço da verdade, de Todd Haynes, expõe a nu a ética das corporações - e, ainda assim, tem gente covarde que prefira acreditar que tudo não passa de uma grande mentira)
Nós REALMENTE podemos confiar naquilo que comemos? E no que vestimos? Podemos acreditar no padrão de qualidade e na ética daqueles que produzem os equipamentos que usamos para preparar nossos alimentos? Digo: podemos mesmo? Honestamente... Eu não sei vocês, mas eu nunca pus minha mão no fogo 100% por corporação ou empresa alguma. E se isso faz de mim uma pessoa paranoica, tenho de aprender a lidar com isso e com a sociedade conformada, que acredita em tudo. Contudo, entre desconfiar e dar o braço a torcer sempre preferi a primeira opção, por considerá-la mais íntegra em muitos casos.
Quando eu era mais novo via minha mãe meio desconfiada com certas panelas, frigideiras, até daquelas antigas torradeiras cujo pão de forma saltava no ar quando pronto. E quando eram feitas de teflon, então, ela dizia: "sei lá... quem me garante que isso não é cancerígeno?". E uma ocasião ela raspou a dita cuja com uma faca e ao ver aquele pó preto em suas mãos ficou ainda mais ensimesmada. Hoje eu entendo ela.
Digo que entendo somente agora porque tenho certeza que se ela assistisse ao polêmico e muito bem realizado filme O preço da verdade, do diretor Todd Haynes - realizador de longas antológicos como Velvet Goldmine, Não estou lá e Carol - ela certamente nunca mais compraria uma frigideira dessas!
O preço da verdade nos traz a saga quase inglória do advogado Rob Bilott (Mark Ruffalo, simplesmente ótimo!), que é praticamente intimado por um fazendeiro de West Virginia a investigar a empresa Dupont, que ele acusa de contaminar o riacho perto de suas terras, levando à morte a maior parte do seu gado. E Rob, a priori, é a pessoa menos indicada para assumir um caso desses. E por quê? Porque ele costuma ser advogado de defesa de empresas como a Dupont. Mais do que isso: conhece grande parte de sua diretoria, o que levaria a um conflito de interesses gigantesco.
Porém, após ir à fazenda e conhecer mais sobre os fatos ele decide assumir a causa, mesmo gerando certo desconforto para o escritório onde trabalha (e se tornou sócio recentemente). E é justamente nesse momento que ele descobre que as vacas mortas e a água contaminada é apenas uma reles ponta do iceberg.
Da água contaminada e o gado morto à PFOA ou C8 (a substância cancerígena em questão); e da PFOA à descoberta do uso dela em frigideiras e outros utensílios de cozinha. E dessa descoberta ao... Pois é. É quando nos depararemos com o tamanho da impunidade que rege empresas como a Dupont ao redor do mundo.
Mais do que se expor, complicar sua posição no escritório onde trabalha e ver seu casamento quase ruir, Rob terá de enfrentar o universo maquiavélico das grandes corporações que de tudo farão para vencer a causa na justiça, desde desmentir qualquer versão científica que aponte problemas na linha de produção até mesmo vê-la fazer acordos que ela própria não assumirá caso a verdade venha à tona.
Tratam-se dos velhos tubarões de sempre (e já usei essa expressão recentemente numa outra crítica de cinema que fiz há pouco tempo sobre o filme Piedade, de Cláudio Assis) se utilizando das velhas artimanhas e do fato de que essas empresas têm ramificações no governo muito maiores do que simplesmente profissionais. E é dessa troca de favores entre políticos e empresários - coisa, aliás, que nosso país conhece bem há décadas - que nasce a ruína de milhares de famílias honestas e cidadãos de bem. E mesmo assim, tem trabalhador assalariado (e alienado) que as defenda com unhas e dentes, dizendo: "isso é só intriga da oposição ou perseguição política".
Ao final do filme, ficou-me a sensação de estar diante de um grande estudo sociológico sobre a mentira que reina em nossa sociedade de consumo. E por um momento me peguei pensando no excelente documentário do diretor Michael Moore de nome Roger e eu. Nele, uma cidade norte-americana que praticamente vivia em função de uma empresa - que, por sinal, era idolatrada por seus habitantes - vê o local se tornar uma cidade fantasma assim que ela encerra suas atividades na região, levando a população à total miséria. Aqui, no longa de Haynes, é ainda pior: vidas foram descartadas e o máximo que se conseguiu até hoje foi uma série de "reparações financeiras". Como se isso fosse realmente possível!
Agora uma pequena ironia de minha parte (e eu adoro ironizar): após terminar a sessão, abro meu computador no Google e digito Dupont. O site da empresa aparece e é inegável a intenção da empresa em transparecer o máximo de ética possível. O que vejo enquanto desço a barra de rolagem são frases como "segurança e saúde", "respeito pelas pessoas", "comportamento ético", "proteção do planeta", etc etc etc. E fico pensando comigo: o que um processo que se arrastou na justiça ao longo de décadas e da vontade gananciosa de esconder a verdade do povo não faz!!!
E quando saio, enojado, do site da empresa fica-me preso à garganta um único pensamento: o quanto o mundo é sujo e covarde e como somos coniventes com isso. Mas eles são homens de negócios, ilustres, acima de qualquer suspeita, amados e idolatrados e o mundo continuará girando amanhã, depois de amanhã e no dia seguinte também, não é mesmo? Que seja. Só não me peçam para aplaudi-los, pois aí já é querer demais e o meu compromisso nesse mundo é outro.
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Judy: Muito Além do Arco-Íris
3.4 356Refém do palco
(Judy: muito além do arco-íris, de Rupert Goold, é o ocaso de uma estrela formidável que os estúdios preferem, na maioria das vezes, esconder)
Dentre as muitas coisas encantadoras que presenciei oriundas de hollywood, provavelmente a maior delas foi Judy Garland. Lembro-me da primeira vez que assisti em casa ao clássico O mágico de Oz, de Victor Fleming e George Cukor (e das outras dez seguintes também). Foi arrebatador. Ela era arrebatadora em todos os sentidos. E entrou para o projeto no meio do caminho - sua personagem, Dorothy, havia sido criada para Shirley Temple, que acabou recusando o papel - para transformá-lo num obra seminal.
Havia uma aura mista de brilhantismo e apreensão na interpretação de Judy. E lembro-me que passei anos me perguntando se havia algum fantasma guardado no armário daquela mulher, pois somente isso explicaria tal antítese de sentimentos. Tudo parecia me dizer que sim.
Os anos se passaram e como todo talento que se preze, além de estrela Judy tornou-se difícil, exigente, quase impossível. Mas não foi a única. Fazia parte de sua geração todo esse estrelismo latente. Entretanto, eu continuava me perguntando quais seriam os seus segredos tão bem guardados. Cheguei a fazer figa à espera de que um dia um filme sobre esse aspecto da sua vida fosse feito.
Enfim, esse dia chegou pelas mãos do diretor Rupert Goold. E se chama Judy: muito além do arco-íris.
O recorte dado ao diretor não engloba o auge, a fama, as grandes personagens (embora Dorothy seja citada). Goold está, isso sim, mais interessado nos meses que antecedem sua morte. Nos traz uma Judy Garland falida, devastada, que vê seus filhos terem a guarda tomada dela, e principalmente: aquela na qual os estúdios não conseguem enxergar além de encrenca e confusão. Como último refúgio, para não sucumbir de vez à decadência, ela vai para Londres realizar uma série de shows. Mas as polêmicas, é claro, a acompanham.
Garland precisa lutar contra tudo e contra todos (inclusive seus próprios demônios) para provar sua genialidade e fugir da eterna imagem de artista inventada pelas majors. Contudo, é uma mulher que também acumula amarguras, dentre elas a de precisar estar disponível para todos (leia-se: a indústria) o tempo todo. Ela é o expoente vivo da cultura do "e o show não pode parar!" e isso deixa nela marca indeléveis. Quase nunca dorme e os únicos amigos de fato, aqueles que conhecem a sua verdadeira história, são as pílulas que toma a todo momento para aguentar o rojão daquela vida atribulada.
E nesse momento cabe aqui um aparte para parabenizar a atriz Renée Zellweger, que interpreta a cantora e atriz (e que ganhou merecidíssimamente um Oscar pelo trabalho). Ela capta de forma brilhante a dor, a angústia, o quanto teve de lutar para permanecer relevante dentro daquele meio. E mesmo assim, a todo momento, parece se perguntar: "será que eles nunca ficarão satisfeitos, nunca mesmo?". Em outras palavras: é uma mulher pela metade.
Porém essa metade, a que sobrevive, a que chega ao dia seguinte e ao outro e ao depois desse, é também refém do palco, da glória, dos holofotes. Não consegue absolutamente viver fora daquele mundo célebre, por mais que ele seja capaz de destruí-la num estalar de dedos, à hora que bem desejar. Judy Garland não veio ao mundo para ser Frances Ethel Gumm, uma mera dona de casa, mãe de família, bem casada. Não, meus amigos! Como bem diz no filme Louis B. Mayer, produtor de O mágico de Oz, ela veio ao mundo para brilhar.
E a consequência disso é uma vida de infortúnios, dissabores e sacrifícios os mais diversos e sem prazo de validade.
Quando o longa termina três sentimentos me perseguem: 1) não entendo porque demorei tanto para assistir essa relíquia, que tem a coragem de mostrar o lado humano de Judy sem soar piegas; 2) ele merecia mais destaque no Oscar, além da vitória óbvia de Renée; e 3) eu vou morrer e ainda assim continuarei a admirar o talento e a história dessa mulher brilhante, que fez milhões sonharem tão alto e ainda assim lutou contra a vida para conseguir esboçar um simples sorriso.
Quer mais? Então corram e procurem pelo filme no serviço de streaming mais perto. O verdadeiros fãs de cinema vão se surpreender!
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8½
4.3 409 Assista AgoraEssa confusão sou eu
(Embora pareça em sua superfície apenas uma narrativa sobre o bloqueio criativo de um artista, Oito e meio, de Federico Fellini, se trata na verdade de tudo o que acontece num projeto cinematográfico antes das câmeras serem ligadas e o diretor gritar "ação!")
Eu me tornei cinéfilo e consequentemente um interessado em escrever sobre filmes - embora não me considere um crítico especializado - para poder enxergar além da própria sétima arte. Sempre fui um fascinado pelo set de filmagem e a todo momento procuro no mercado editorial livros contendo histórias sobre os bastidores dos grandes longa-metragens. E nessas procuras me dou conta, às vezes, de que a película, o resultado do projeto, é um reles detalhe. Quero mesmo é conhecer a história desses artistas e o que eles fizeram de suas próprias vidas e carreiras.
Pois bem: volta e meia me pego pensando na reflexão proposta por este parágrafo e chego à conclusão de que o melhor exemplo que eu poderia dar para explicar de forma cinematográfica o que escrevi é a obra-prima Oito e meio, do cineasta italiano Federico Fellini. E digo mais: em se tratando de um filme em que o próprio diretor confessava em entrevistas estar incompleto - daí o título da obra, que é seu nono longa-metragem -, é impressionante a genialidade dele. Fellini era realmente um mestre que deixará saudades eternas, na Itália e no resto do mundo.
Guido Anselmi, protagonista desta jóia rara (e interpretado por Marcello Mastroianni), é um cineasta que foi da glória e o reconhecimento à crise de inspiração - ou, como costumam chamar alguns, o bloqueio criativo - e agora sente-se sugado em todos os sentidos. Contudo, ele promete um novo filme à seus produtores e é justamente nesse momento que os problemas começam.
Sempre envolto por belas mulheres e fazendo a todo momento digressões que remetem à sua infância, uma época em que era mais livre e não precisava dar satisfações sobre cada passo que dava, ele se vê engolido por um mercado exibidor que o enxerga apenas como uma reles engrenagem dentro de um processo criativo. E à medida que o tempo passa e o roteiro ou mesmo uma ideia geral do que seja o projeto não surge sua angústia atinge um nível nunca antes alcançado em toda a sua carreira.
Logo, ele precisa ganhar tempo. E faz isso através de sucessivas mentiras ou evitando contatos e conversas mais longas sobre tudo o que verse a respeito do "novo e genial filme que virá".
Há pontos interessantíssimos a serem evidenciados no longa, que não somente refletem bem a personalidade de Guido, mas também o fato de ele ser um grande alter-ego do diretor. Em primeiro plano destaco a trilha sonora, belíssima, que ilustra bem o clima nonsense, de preocupação constante do diretor em crise (cheguei a acreditar, em alguns momentos, estar diante de uma "ópera do absurdo"). Logo a seguir, cabe aqui o meu elogio à maneira como Fellini flerta com o surrealismo nesta narrativa visual. Ele, que sempre viu sua obra associada ao sonho e ao delírio, aqui - a meu ver, pelo menos - realiza o seu projeto que mais remete ao mestre Salvador Dalí. Talvez muitos que leiam esta crítica achem um exagero da minha parte, mas honestamente tive de fato essa impressão. E finalmente, a presença da figura das musas (são muitas!) de Guido, uma referência clara aos gregos, mas também às paixões do próprio Fellini.
Há um embate claro entre o filme que Guido deseja realizar, um trabalho apaixonante, autobiográfico e sem licenças poéticas, e toda a expectativa gerada por aqueles que o cercam e fazem a máquina da indústria cinematográfica girar. Em outras palavras: Oito e meio é um filme sobre bastidores. sobre aquilo que não vemos, mas acontece em todas as produções do gênero.
Refiro-me às brigas entre a equipe de filmagem; a dificuldade do realizador em manter seu casamento vivo; as difíceis, quase insuportáveis, audições para escolha de elenco; a crítica e a imprensa em geral perseguindo o realizador de forma insistente, à procura de informações sobre o que ele fará a seguir, etc etc etc e hajam incômodos e desnecessários etc que só contribuem para atrasar ainda mais o projeto.
O que vemos antes das câmeras serem ligadas e o diretor gritar "ação!" está tudo ali, de forma nua e crua, sem rodeios ou invencionices. Toda a bagunça da pré-produção, as ideias primárias que não funcionam, não se concretizam nas telas, os atores cheios de pitis e exigências constantes... Tudo aquilo capaz de enlouquecer o mais normal dos mortais e, no entanto, faz parte da rotina de qualquer realizador da sétima arte, pois não fosse assim não iríamos apreciar sua saga nas salas de cinema. Em suma: uma confusão generalizada que visa um espetáculo posterior.
E como o próprio Guido/Fellini diz ao final do longa: "essa confusão sou eu". Esse acúmulo de experiências, memórias e derrotas as mais diversas dão, de certa forma, um caráter quase metalinguístico ao filme. E Fellini, de uma maneira ou outra, sempre perseguiu isso em sua carreira.
E passados 57 anos sem envelhecer uma vírgula sequer e ao final dos mais de 130 minutos de projeção impecável só me resta, orgulhoso, ver meu rosto encher de lágrimas e levantar para aplaudir de pé essa obra-prima do cinema italiano.
P.S: em 2009 o diretor Rob Marshall dirigiu Nine, que se pretendia uma nova visão sobre essa história. Fui ao cinema na época para assisti-lo e saí meio desapontado. Mais uma vez hollywood moralizou uma história consagrada pela sétima arte de um outro país transformando-a naquilo que ela não era (no caso, um musical). Eles adoram fazer esse tipo de coisa. E eu espero sinceramente que um dia eles parem com isso!
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