Ao refletir a respeito da arte, o cineasta soviético Andrei Tarkovsky dizia: “o artista existe porque o mundo não é perfeito. A arte seria inútil se o mundo fosse perfeito, pois o homem não buscaria a harmonia, mas simplesmente viveria nela”.
Uma parte do público vaia o cinema brasileiro quando explora situações de criminalidade, enquanto aplaude clássicos do cinema internacional a exemplo de Scarface, Táxi Driver e Pulp Fiction. É porque é fácil fechar os olhos à realidade e abraçar um escapismo artificial e fingir que está tudo bem. Mas não nesta minissérie!
Em seus 8 episódios, a partir de uma sinergia entre passado e presente, o criador Breno Silveira articula diálogos geracionais de pais que projetam suas expectativas sobre seus filhos e, ao vê-las ruírem, mostram-se incapazes de estabelecer o diálogo que não aquele baseado no romantismo das memórias infantis e no autoritarismo do punho firme. Só que Victor esquece que o filho, Pedro Dom, é reflexo do rebelde que um dia foi. Estarem em lados opostos da justiça é só circunstancial, pois a minissérie ilustra que bandidos podem ser honrados e que policiais podem agir contra a lei.
Entretanto, não há romantização das drogas, nem da criminalidade. Apenas o retrato nu e cru de suas consequências, sem perder de vista se tratarem de uma questão de saúde pública, em que a figura paterna (que pode muito bem ser metáfora do Estado brasileiro) revela-se incompetente em combater essa epidemia social. A minissérie é brutal porque é real, sem reservar ao espectador perdão ou redenção, mas contando com um retrato urbano e de época verossímil - com algumas exceções -, ritmo intenso e atuações de destaque (Gabriel Leone, Flávio Tolezani, Filipe Bragança, Fábio Lago).
Uma reflexão deste Brasil imperfeito, destas relações pais e filhos quebradas, de sonhos que sequer puderam ser sonhados.
É claro que a saída (mais ou menos não planejada) de Alan Arkin da terceira e última temporada de O Método Kominsky não é o melhor dos mundos, por mexer justo onde estava o coração da série, a relação de Sandy e Norman. Mas dentro das circunstâncias, a despedida desta série para sentir-se bem, passar o tempo, sorrir e refletir é tocante, de uma forma imperfeita.
A imperfeição está em como os 6 episódios finais (antes eram 8) tentam diminuir o impacto da saída de Alan Arkin com a maior atenção dada a Paul Reiser, além de participações de Kathleen Turner e Morgan Freeman. Esta imperfeição também é facilmente observável no último episódio, que utiliza saltos de tempo para começar a fechar as pontas deixadas na narrativa. É afobado, sem dúvida, mas os fãs, como eu, ficarão felizes em despedir-se de forma positiva dos personagens com que criaram afeição.
Eu lembro ainda hoje de Michael Douglas, aos 74 anos, fazendo a primeira transição à televisão com desconfiança. Agora, saio com um sorriso no rosto depois do trabalho do veterano ator, que equilibra, nesta temporada final, o nível exato de alegria, tristeza e um sentimento particular de reconhecimento mesmo acreditando não o merecer tardiamente.
Diante das circunstâncias apresentadas, O Método Kominsky dá adeus de uma maneira imperfeitamente humana, como algumas das melhores histórias são.
Enquanto o podcast de Ivan Mizanzuk tinha o caráter investigativo, o documentário O Caso Evandro, de Aly Muritiba e Michelle Chevrand, adota uma forma convencional e panorâmica de relato, apontando o dedo às inconsistência da investigação em uma estrutura subdividida de maneira didática, a fim de que a teia de aranha do caso seja melhor consumido por cada um.
Se consideradas as possibilidade de um material real igual a este, mais bizarro, complexo e sinuoso do que seria a melhor ficção, a minissérie desaponta. Não faltarão momentos de choque e indignação causados pela história propriamente dita, não pela maneira burocrática com que é contada, a partir de entrevistas com as peças-chave, inclusive Ivan, entrevistas e reconstituições.
Entretanto, também é inquestionável a importância da minissérie, em apresentar a parte do público que desconhecia um caso trágico e que bem discute a desfuncionalidade de nossa sociedade, de suas polícias e de como estas atuam a serviço de um poder político dominante (não para fazer justiça). De um lado, confissões arrancadas a base da tortura em um país que havia acabado de sair do regime ditatorial; do outro, a investigação feita na base da excelência; daqui, o desejo de punir os responsáveis pelo desaparecimento e assassinato (?) de Evandro e Leandro; dali, aqueles que apenas queriam abaixar a poeira do caso não importa quem punissem.
O Caso Evandro antecipa, nos anos 90, a sociedade contemporânea, desvencilhada do pensamento racional e imediata em eleger mitos e culpados a partir de notícias falsas, falseadas ou imprecisas, nem que isto causasse o sofrimento de inocentes, inclusive dos pais de um garoto vítima de um crime bárbaro.
Diante da situação em que vivemos, uma comédia de espírito otimista e leve, igual a seu protagonista, pode ser a melhor alternativa para que escapemos da realidade em direção a uma fantasia em que um técnico de futebol americano é escalado para comandar uma equipe do futebol inglês.
E não se engane: apesar de ser alguém alto astral o bastante para irritar os rabugentos, Ted Lasso não é um personagem unidimensional. Pelo contrário, os melhores instantes desta série, renovada para a 2ª temporada, estão quando constatamos que Ted Lasso também tem problemas pessoais a serem resolvidos. O que o diferencia é a forma como evita que isto se transforma em uma tempestade em sua vida.
Ao seu lado, também há uma personagem incrivelmente rica: Rebecca é uma mulher que perpetua elementos do machismo estrutural, sem que isto a torne monstruosa. Pois se há uma vítima de seu comportamento é ela própria, engasgada no ressentimento provocado por um sujeito canalha.
Divertida e eventualmente hilária - houve momentos em que entrei em crise de risos, como na entrada em campo de Dani Rojas -, Ted Lasso é uma alternativa para quem busca um elixir de positividade para começar bem o dia. E, mesmo quando os ensinamentos de Ted Lasso passam rente à trave do coach mais irritante, Jason Sudeikis tem a dose certa de sinceridade e ingenuidade para que não haja manipulação de nossos sentimentos. É que todo copo meio vazio também está meio cheio.
Invencível é o que seria O Homem de Aço se a Warner Bros. e Zack Snyder retratassem, com verossimilhança e fidelidade, as consequências da luta entre o Super-Homem e Zod. Se Homem-Aranha 2, em menor grau na cena do metrô, e Kick-Ass, em maior, já haviam ilustrado que ser super-herói não seria um passeio no parque, então Invencível eleva este debate à enésima potência: onde havia machucados e membros quebrados, há mutilação e formas inusitadas de destruir um ao outro.
A violência transforma-se em uma forma de expressão, em uma maneira de exprimir as relações de poder entre super-seres com níveis de força distintos: apenas nas HQs que Batman poderia equiparar-se ao Super-Homem ou à Mulher-Maravilha; isto não ocorreria no mundo real. Deste modo, com a forma de desenho animado, parecido com o X-Men que assistíamos pelas manhãs, Invencível se mostra também corajoso em como não se acovarda em ser brutal.
A série é também uma releitura de, praticamente, os super-heróis cujos gibis guardava na estante, transformando Mark no Garoto-Aranha (o amálgama entre Homem-Aranha e o Superboy) e tendo espaço para inusitadas adaptações: o Luke Cage da série transforma-se em pedra; o Hulk, é uma garota em processo de rejuvenescimento; e Hellboy virou um detetive infernal. É divertido, para quem tem um pé nas HQs, com a adição de propor um realismo todo seu: a forma é animada; a violência, mais real do que jamais havíamos visto antes - ao menos em se tratando de escala.
O resultado é muito positivo e, apesar de a série não subverter os clichês humanos das HQs, mostra-se mais do que inteligente em reimaginar todo o restante. Agora imagina a próxima temporada com os personagens cósmicos!
Diferente de algumas produções produzidas durante a pandemia, This Is Us incorporou o Covid-19 dentro da estrutura narrativa. Mas de forma tímida, sem que as consequências da doença se vissem presentes decisivamente, senão em como Kevin e Madison são meio que forçados a viver sob o mesmo teto.
Dá até para abrir um parêntese em como o espectador se surpreende quando vê os personagens de máscaras no primeiro episódio. É que a série é atemporal, a ponto de retirar o público do escapismo dramático e obrigá-lo a encarar a realidade que enxerga quando sai de casa nos personagens que aprendeu a amar ao longo de 4 temporadas.
Esta 5ª temporada evidencia muitos dos problemas vistos na anterior: a presença de alguns personagens e subtramas que não somam à dinâmica familiar, com o objetivo exclusivo de cumprir a cota de episódios. Isto enfraquece a narrativa quando poderia dedicar-se, exemplifico, no processo árduo de reconciliação entre Kevin e Randall ou então na relação entre Beth e Tess.
Entretanto, esta temporada tem, talvez, o momento chave para compreender o formato da série inteira no monólogo de Rebecca ao lado dos filhos, no episódio final. Se antes o formato fragmentado, com histórias paralelas diluídas em linhas temporais, era justificado no conceito de assistir ao nascimento e amadurecimento de uma árvore familiar em frutos no processo de maturação até criarem mais famílias, aquele monólogo ressignificou muito para mim.
Se não desejar maiores spoilers, talvez seja o momento de interromper a leitura e concluir a temporada antes de retornar, ok? Considere-se avisado. Quando Rebecca reflete a respeito da deterioração da memória e da dificuldade em recordar seus momentos com Jack, entendemos o motivo pelo qual seu ex-marido é uma presença cada vez mais passageira e inconstante na narrativa e a estrutura em que a mãe dá um passo para trás para que os filhos governem-se em seus caminhos.
A memória é a a cola de This Is Us: é a razão de Randall buscar a família biológica, de Kate atravessar a jornada de perdão, de Kevin parar de tentar preencher os sapatos de Jack, de Rebecca contentar-se em saber que o amor dedicado criou uma família apaixonante.
Crimes reais popularizaram o documentário, além de um nicho restrito, tendo a Netflix surfado na mesma onda da HBO, mas com significativas diferenças em razão de seu alcance e do investimento em quantidade. Isto provocou o esgotamento da fórmula cedo demais, e prova disto é a ausência de um documentário de maior relevo como A Máfia dos Tigres (de meados do ano passado).
Uma alternativa é explorar este tipo de narrativa de outra forma, e Os Filhos de Sam cumpre bem este papel sem deixar de ser o seu típico documentário de crime real. Prova disto é a escolha de um assassino notório - David Berkowitz, o Filho de Sam, que vocês devem poder recordar de Mindhunter -, a contextualização histórica em uma Nova York consumida pelo crime e com a polícia sem recursos humanos e financeiros e a proposição de uma teoria (mas nem tão conspiratória assim) de como os crimes de fato aconteceram.
Mas além da fórmula, está o que me atraiu mais no documentário: a biografia de Maury Terry, o jornalista que dedicou mais de 2 décadas de sua vida para restituir a verdade tal como a enxergava. É que uma investigação é incapaz de restabelecer os fatos tal como ocorreram, só revela um ângulo, uma verdade possível, alcançável e satisfatória, no melhor dos casos. É este um fundamento que Maury parecia não compreender, ao sacrificar sua vida pessoal e profissional em nome de uma obsessão utópica, a de que seria capaz de desvendar toda a teia de crimes.
Maury é um personagem exemplarmente trágico por ser romântico, um romantismo impeditivo de ser diplomático e de enxergar quando era manipulado pela mídia sensacionalista e quando manipulava os princípios jornalísticos para confirmar sua versão dos fatos. É Paul Giamatti que emprega sua voz compassada para dar voz aos escritos de Maury, em um documentário que parte de um crime real para compreender o ser humano.
Dentro do audiovisual, a minissérie consolidou-se como meio para contar histórias extensas o bastante para não caberem, sem serem simplificadas, em filmes de 2 horas. É uma alternativa que funcionou muitíssimo bem com jovens clássicos como Watchmen, Chernobyl e Olhos que Condenam - apenas para citar 3 exemplos - e que casaria também com a proposta de O Paraíso e a Serpente, cujos episódios ignoram a linearidade dos acontecimentos para se concentrarem em momentos da trajetória do inescrupuloso Charles Sobhraj.
Mas esta não me pareceu ser a melhor fórmula de contar esta história, cujo ziguezague no tempo se provará um obstáculo quase insuperável para tentar montar as peças do quebra-cabeças. Se em um episódio já se mostra desafiadora a tarefa de mapear as idas e vindas da narrativa e como passado e presente articulam-se mutuamente, no todo então isto é elevado a enésima potência, já que entre episódios a narrativa não é linear enquanto trafega por passados diferentes para chegar a presentes idem. Sei que parece confuso, mas cada episódio tem sua própria linha do tempo que não anda de mãos dadas com o episódio seguinte, o que atrapalha até mesmo a construção dos personagens.
Pois, com exceção de Charles e Kippenberger - os mais planos, pois reféns de suas obsessões -, os demais personagens da comunidade hippie montada por Charles têm valores morais que precisam superar em algum momento para se aliar a ele, mesmo a contragosto. Alguns dos episódios parecem se concentrar justo neste instante de ruptura em que o interesse egoísta ameaça o próximo, e soam repetitivos em retratar o modus operandi de Charles e o processo de transformação daqueles ao seu redor.
O que eleva a narrativa além disso são justamente as atuações de Tahar Rahim - atorzaço desde que o conheci em O Profeta - e Billy Howle, ao passo que as respectivas contrapartes femininas, Jenna Coleman e Ellie Bamber acabam ofuscadas por viverem mulheres submissas às profissões dos companheiros. De toda forma, a história real narrada, igual a superstição cita a respeito das serpentes, fascina e mesmeriza a tal ponto que é difícil desgrudar o olhar da tela... mesmo quando a cronologia dos eventos e a forma dos episódios nos deixa na mão.
2 formas de terror coexistem nesta minissérie provocados por um mesmo gatilho: o racismo. Enquanto os Emory enfrentam manifestações sobrenaturais que assumem formas compatíveis com seus traumas, lidam com os terrores sociais provocados por seus vizinhos e colegas de trabalho ou escola. A forma como estes terrores é entrecortada é harmoniosa e escala até o ponto de não ser mais suportável.
Isto porque o criador Little Marvin opta pelo choque como ferramenta extrema de terror, até que pareça ser o choque apenas pelo poder de chocar e não mais o choque com o desejo de provocar a reflexão. Perguntem-se: uma pessoa negra gostaria de reviver as violências exibidas explicitamente na narrativa, ao ponto de isto impregnar-se sob a sua pele como uma ferida purulenta? Eu não tenho esta resposta. Para mim, a minissérie se revelava no chamado torture porn: quando a violência é tamanha que mais parece um fetiche. Não é intencional, por razões óbvias, mas não é fácil ignorar, salvo quando a violência dos vizinhos brancos retorna contra eles pelo destino (a dona de casa Betty, por exemplo).
Já a narrativa peca por um excesso de linguagem: os ângulos inclinados revelam desconforto, medo e angústia; os primeiríssimos planos (ou closes extremos) acentuam estas sensações; a utilização do dioptro partido, um tipo específico de lente que reúne o primeiro plano e o fundo como se estivessem lado a lado, acentua a fuga da realidade. Estas opções estilísticas, ao lado de canções macabras e do design de produção opressivo de onde moram os Emory, agigantam o terror até um limite, em que parece que a direção tenta chamar atenção aos próprios êxitos em vez de contar a história. Comparem os primeiros episódios - mais estilizados - com os finais e perceba como a utilização dos recursos com parcimônia ajuda a proposta, em vez de criar um mundo paralelo em que percebemos a técnica e perdemos os personagens de mão.
Por falar nisso, a narrativa está tão investida na violência que acaba perdendo de mão quem se conecta conosco: os personagens. Quando enxergamos as situações a que os Emory estão submetidos - elas revoltam qualquer pessoa que tenha o coração no lugar certo - vemos o retrato do que ocorria/ocorre com a comunidade negra. Entretanto, ao fazer isto, a narrativa torna os personagens meios do discurso, quando eles deveriam ser seu fim. Funciona? Claro. Igual vídeos de violência racial machucam. Mas é uma forma óbvia de ilustrar algo mais assustador quanto mais sutil e imperceptível é: o racismo.
A trilogia do Capitão América demonstrou que as aventuras do super-herói eram melhores quanto mais centradas no jogo político do mundo real. Esta minissérie somente confirma esta vocação: o papel da pessoa negra, cuja identidade americana é negada por questões racistas, anda ao lado da trama envolvendo os Apátridas, cidadãos (e não terroristas!) deslocados de suas nações para ocupar o vazio deixado por metade do mundo desaparecido após o estalo de Thanos e que agora são forçados a reassentamentos . É uma consequência que não havia pensado antes e que serve como uma premissa oportuna para posicionar a série no hoje.
Também ajuda que, do ponto de vista individual, haja preocupação com o desenvolvimento dos heróis do título, Sam e Bucky: este, com problemas em aceitar o assassino que era para descobrir o herói que irá se tornar; aquele, com questões financeiras provocadas pelo fato de heróis não terem salários. Embora sejam personagens cativantes, em dupla, a química não é das melhores, igual às cenas de ação que são orquestradas pela diretora Kari Skogland.
Além do mais, por melhores que sejam os temas tratados na narrativa, a maneira como isto é feita é didática e expositiva, como se estivesse dando uma lição de moral. O que é mais eficiente: o diálogo de Sam com um senador ou o gesto deste com Isaiah? Até me disponho a ser leniente em alguns casos, mas Falcão e o Soldado Invernal passam do tom, diferente do que fez, por exemplo, Capitão América e o Soldado Invernal, em que a mensagem política da narrativa estava evidente e não precisava ser desenhada para que todos compreendessem.
No mais, se a série desperdiça Daniel Brühl - tão bem no pouco de tempo em tela de Capitão América e Guerra Civil -, não faz o mesmo com Wyatt Russell, cujo John Walker é um homem com complexo de inferioridade e intenções nobres que rouba todas as cenas em que está na minissérie. Além disto, as participações de Emily Vancamp e Julia Louis-Dreyfus alimentam oportunidades para o desenvolvimento do universo da Marvel.
Se você gostou da primeira temporada, não terá problemas com esta que individualiza os conflitos dos personagens a partir de um contexto de época parecido com os dias de hoje, não somente em se tratando de canções ou gírias contemporâneas. É o anacronismo de Emily Dickinson que dita as regras desse mundo de ontem com cara de atualidade, pois a poetisa estava bem a frente de seu tempo e da sociedade que reprimia seus sentimentos.
De certa maneira, é como se a semana da família dos Dickinson fosse uma lembrança de que aprisionar as pessoas dentro de caixinhas bem rotuladas é a receita da infelicidade, e ver Gus emancipando-se com aquilo que ama, Lavínia tomando controle da sexualidade e Emily e Sue redescobrindo seu amor é um dos prazeres de uma série que não subestima o espectador, mesmo quando reconhece que seu público-alvo é o jovem adulto. Sua mãe é outra levada por esse sentimento "moderno" de questionar os valores da época, e assim buscar a própria felicidade.
A temporada se concentra nos esforços de Emily em decidir se quer ser reconhecida por sua arte, ou se prefere se entregar ao anonimato. Com isso, questiona a importância da arte ao artista: será que a arte é apenas um meio de expurgar os sentimentos guardados dentro deles ou será que é também uma maneira de estender a mão a quem passa por uma situação parecida e redescobrir o próprio propósito? A propósito, o episódio ao lado de um jardineiro é talvez um dos melhores para se refletir a arte muito além do óbvio.
Com episódios curtos, e nenhum deles em vão em como desenvolve seus personagens além de onde pararam na temporada anterior, a série continua agradável, provocativa e divertida.
Por haver passado cerca de 3 décadas, demorei para compreender a relevância da minissérie documental acerca do alegado abuso sexual cometido por Woody Allen contra a filha, Dylan Farrow. À primeira vista, parecia uma tentativa de reaquecer um caso que reemergiu há alguns anos. Entretanto, não há como ignorar o aspecto terapêutico em Dylan readquirir a voz, como adulta, e utilizar a arte mais popular para se juntar ao coro dos movimentos #MeToo e Time's Up com uma caso que, a bem da verdade, jamais terá um fechamento conclusivo.
Apesar de não ser apta a modificar o ponto de vista de quem já tem sua opinião formada pelos fatos completos, a minissérie oferece um panorama, ainda que unilateral, de todo o caso, e o desenvolve com misto de fatos e factoides sensacionalistas. Aqui, documenta a família dos Farrow como se vivessem uma existência perfeita e idílica antes de ser ameaçada com a chegada de um monstro; noutro momento, narra os eventos com rigor, sobretudo na linha do tempo do caso, tornado-o claro àqueles que não o compreendiam totalmente. No entanto, omite elementos importantes, muitos deles relacionados a Mia Farrow, e romanceia outros, ao transformar a batalha de Mia e Woody em Davi contra Golias e a focar-se demais no relacionamento com Soon-yi.
É justificável a abordagem, sobretudo em razão de os diretores Kirby Dick e Amy Ziering entenderem que Woody controlava a narrativa na imprensa, logo, apenas parecem equilibrar o jogo. Mas a contradição da narrativa não desce: se a dupla de diretores defende (e tem o meu apoio) que devemos acreditar na vítima, por que então descreditam Moses e Soon-yi quando comentam a respeito dos alegados abusos físicos e psicológicos impostos por Mia? Se apresentam fundamentos para repudiar a tese de que Dylan sofreu alienação parental, por que defendem que Moses e Soon-yi tenham sido instrumentalizados a fim de defender Woody?
Além disso, ao comparar Woody Allen a Bill Cosby e Harvey Weinstein, a minissérie faz um desserviço em tratar condutas abusivas diferentes (uma doméstica, as outras, no ambiente de trabalho) de igual forma, e não é que uma seja menos monstruosa do que outra, é somente que a motivação muda e isto impacta no desenlace narrativo. Ao fim, pouco importa em quem você acredite, pois a série acerta em empoderar, no sentido estrito da palavra, Dylan e quem tenha medo de verbalizar seu abuso, embora seja uma peça investigativa problemática, unilateral e às vezes desonesta com o espectador.
Um dos dramas de que mais gosto na arte narrativa é o enfrentamento do luto, cujos cinco estágios são explorados com qualidade na série que reencontra Wanda negando a partir do isolamento, enraivecendo-se, barganhando, deprimindo-se e aceitando os eventos ocorridos em Guerra Infinita, que tiraram a joia da mente (e a vida) de Visão.
Assim, empregar o formato de sitcoms, que tem importância à Wanda revelada na minissérie, como também, formalmente, insinua o artifício de criar uma máscara só para se proteger das consequências reais é um mecanismo narrativo estimulante e trabalhado com coerência, ao menos na maior parte do tempo. Além do mais, a atuação de Elizabeth Olsen ilustra a confusão da personagem, que mesmo sendo uma das mais fortes da Marvel, está tão abalada emocionalmente que mal pode (ou quer) perceber o dano que causa em todos ao seu redor.
Nesse contexto, com o carisma e irônica sensibilidade de Paul Bettany a reboque, a minissérie é capaz de ampliar o escopo do subgênero de super-heróis em uma direção instigante, ainda que, no final do dia, a Marvel / Disney fará o que esperamos dela. O retorno à fórmula de um filme tradicional de super-heróis no episódio final é a ponta do iceberg de um conjunto de desapontamentos provocados pelas possibilidades que a série abriu diante de si: a introdução de supervilão que atenua a responsabilidade de Wanda pelo que fez, os diálogos expositivos que fazem questão de explicar o que já estamos vendo e os coadjuvantes introduzidos como fan service, mas que mal conseguem justificar sua presença na narrativa.
Como a maioria das produções da Marvel / Disney, a ambição sempre é suspensa quando ameaça o conforto previsível. De uma forma até amarga, é como se fôssemos devolvido à artificialidade da sitcom, ao invés das alternativas mais fascinantes e desafiadoras do mundo real. Mas não há como ignorar a premissa caprichada e executada com talento e a dedicação do elenco em tornar real e tangível um dos sentimentos que bem definem a experiência humana: o luto ou o amor que perdura.
Em torno do fantasma da AIDS na comunidade LGBTQIA+ dos bailes noturnos, no início dos anos 90, esta temporada explora o processo de aceitação em descobrir que, dentro de si, há uma bomba relógio que pode disparar a qualquer momento. Mas não se resume a este drama, ainda bem.
Algo que Pose faz muito bem é saber separar as alegrias das tristezas e reconhecer que, quando se é marginalizado e discriminado por toda a sociedade, a solução está às vezes em ir à praia na companhia de suas amigas. O gesto simbólico que há aí é de reforçar os vínculos de comunidade, indispensáveis para erguer a cabeça em face à opressão e lutar por direitos que deveriam ser automáticos de todos.
Como o direito de existir, de não ser invisível dentro da sociedade que insiste no processo de gentrificação, na figura de uma empresária do ramo imobiliário que entende a opressão em razão do gênero e ainda assim a pratica contra Blanca, de não ser objeto de violência, de ser a pessoa plena que se é.
A série explora as rachaduras morais da sociedade, a partir da maneira como vitimizam a comunidade LGBTQIA+, mas de forma equilibrada com a ênfase nas vitórias, como ter na parada de sucesso a canção de Madonna inspirada nos bailes noturnos. Enquanto isto, acolhe e inspira e, talvez por isto, seu ponto fraco está nas disputas menos convincentes após o desfecho da primeira temporada, como a rixa entre Elektra e Blanca e Pray Tell e Candy. São muito novelescas a ponto de soarem artificiais.
Diferente da autenticidade das atuações, ressaltadas a partir de episódios que exploram, com profundidade, os dramas de cada personagem, em um mosaico de amizade e união contra as forças discriminatórias.
Quando era estudante, tinha um pé atrás com aulas de história. A forma de ensinar, com ênfase em nomes e datas, ao invés de motivações, me tornou um mestre na arte de decorar e criar mnemônicos para tirar nota máxima nas provas. História deveria ser mais, pois sem conhecê-la, estamos fadados a cometer os mesmos erros do passado no presente, então o processo deveria ser provocador e reflexivo em transformar alunos em cidadãos.
EUA: A Luta pela Liberdade é como imaginava que as aulas de história deveriam ser: um esforço intelectual que não despreza o artifício para tornar a viagem ao passado em uma peça fundamental para o agora. É entretenimento e conteúdo, a partir da combinação de depoimentos e monólogos de artistas consagrados declamando textos célebres com a utilização da animação, de infográficos e de recursos que tornam a narrativa ágil e cativante. Só ajuda ser apresentada pelo sempre simpático e expansivo Will Smith.
É com essa forma dinâmica que a minissérie em 6 episódios retorna à escravidão e explica como Frederick Douglass convenceu o hesitante Abraham Lincoln a abolir a submissão de negros a brancos, para então ser redigida a emenda nº 14 que conferiria igualdade a todos nascidos e naturalizados em solo americano. A partir daí, o enfrentamento das forças do retrocesso, que queriam retornar ao status quo nem que para isso linchassem e segregassem as pessoas em razão da cor da pele, e todo o processo que tornou os Estados Unidos em uma panela de pressão de conflitos raciais até os dias atuais.
A partir daí, a minissérie revela como o movimento capitaneado por Martin Luther King inspirou o movimento feminista e também a luta pelos direitos LGBTQIA+. E como a 14ª emenda acabou servindo de arcabouço para que grupos subrepresentados e minorias, inclusive imigrantes, lutassem por seus direitos em uma nação cujo princípio está no acolhimento de todos os povos. Além disto, entendemos por que muitas feridas ainda estão abertas, conhecemos figuras e aprendemos sobre eventos (alguns deles, admito, nem desconfiaria que houvessem ocorrido) e enxergamos qual o caminho para transformar o país na promessa dos pais fundadores: o bom combate. É uma série que ensina e inspira nossos passos, no Brasil, em busca de uma sociedade digna a todos.
Todos nós já assistimos a ene repetições da mitologia grega, romana, nórdica, mas quando olhamos para o folclore nacional, o máximo que lembramos é do Saci Pererê e olhe lá. E Cidade Invisível vem a tempo de servir de resgate e proporcionar uma reimaginação das lendas e mitos nacionais, a partir de uma roupagem de cinema de gênero que não deve nada a seus pares estrangeiros. Melhor, provoca empatia e identificação por discutir temas contemporâneos a luz da fantasia.
Enquanto Eric procura respostas para a morte da esposa e começa a descobrir uma sociedade secreta fantástica, a série encontra espaço para trazer o tema ambiental, hoje em evidência no cenário brasileiro. Faz isto com habilidade, pois defender a fauna e flora brasileiros está de mãos dadas com o nosso folclore, uma parte desse inestimável patrimônio nacional.
Entretanto, a narrativa desanda e fica protocolar quando se aventura no gênero policial, que tem clichês típicos do cinema gringo, não do nosso: a disputa entre órgãos policiais diferentes a respeito de quem terá a competência na investigação, a perda do distintivo e da arma depois que Eric toma determinadas decisões, culminando no próprio ritmo da investigação que toma atalhos não facilmente conciliáveis com a fantasia da série.
Ainda assim, o conceito se sobressai, o subtexto submerge para se tornar a preocupação da narrativa e as atuações são competentes mesmo quando o roteiro aposta em diálogos rasos para contornar certas situações. Lá estão Marco Pigossi, Alessandra Negrini, Áurea Maranhão, Fábio Lago, José Dumont e Wesley Guimarães, para citar alguns, dedicados em conferir personalidade a personagens melhor definidos por seu propósito ou pela própria essência fantástica, e tornam a (infelizmente breve) experiência de mergulhar nas raízes de nosso país em uma aventura imperdível que, espero, terá continuação.
Enquanto assistia a esta minissérie, só imaginava como seria uma conversa de Fran Lebowitz com Woody Allen. Não é que eu esteja diminuindo o trabalho de Martin Scorsese em obter confidências desta escritora que há anos está presa em bloqueio criativo e nele permanece, mas que as inteligentes rabugices dela acerca de Nova York, da juventude e da cultura americana pareciam mais propícias de encontrar eco nas neuroses de Woody (que a considerar de minhas pesquisas na internet, não deve ter esbarrado em Fran pelas ruas da cidade).
Entretanto, a dinâmica de Scorsese é eficiente em dois aspectos: o primeiro, em deixar a entrevistada a vontade (não que Fran precise) para despejar suas lamúrias em relação a Times Square, bairro que prefere contornar com uma caminhada quilométrica na esperança de não trombar com algum turista, ou então aos hábitos de leituras da sociedade contemporânea com seus Kindles. O segundo, em servir de avatar do espectador, enquanto tenta controlar e parecer sério (sem sucesso) as gargalhadas provocadas por tiradas de Fran.
Convenhamos, Fran é genial! Ela não depende de quem a documente, mas é um dínamo que conferiria vida ao trabalho de quem quer que fosse: Scorsese é até perspicaz em cortar para uma fonte logo depois de Fran falar de que não tem medo de faltar água em 2050 ("Eu não estarei viva mesmo"), mas não é a ideia de desperdício de água de onde flui o humor, é a própria Fran com a maneira depreciativa com que enxerga o mundo ao redor. Eu poderia ouvi-la por horas, mesmo quando suas reclamações sejam mais de uma pessoa incapaz de se atualizar às exigências de um mundo diferente do em que cresceu.
Fran é inteligente, sarcástica e não exibe nenhuma trava em ser objeto de análise e crítica. Lá está, e enquanto a vemos em entrevistas com o ator Alec Baldwin, a atriz Olivia Wilde ou o diretor Spike Lee, notamos uma mulher de ideias fortes traduzidas na forma mais rara de humor: a que nos faz rir e refletir, ao mesmo tempo.
Enquanto o episódio centrado em Rue era introspectivo (não havia como ser diferente), o especial de Jules explora a indecisão da jovem dentro de uma consulta à terapeuta que lhe proporciona revisitar o eu interior. A dúvida em relação à sexualidade e até em continuar ou não o tratamento hormonal são explorados por um roteiro escrito com muita sensibilidade pela própria Hunter Schafer, o que confere maior verossimilhança e tato aos temas abordados. E também faz o público pensar além da arquitetura do episódio: estaria a atriz confessando a nós o mesmo processo que precisou / precisa atravessar em relação à identidade de gênero?
Com maior expressividade em imagens, o episódio pode afastar-se da dinâmica de troca de perguntas e respostas de uma terapia e explorar, em poesia, momentos melhor ilustrados sem a utilização da muleta do diálogo. Deitar-se sobre a areia da praia até ser tragada pelo mar ou uma montagem paralela entre o sexo fantasiado (em tons de amarelo dourado) e com Rue / sozinha (banhado na paleta azul que é típica da personagem) comunicam-se melhor do que palavras seriam capazes de fazer, já que possibilitam que o espectador explore um significado dentre tantos disponíveis, em vez de se acomodar só com um. Assim são as pessoas no mundo real: repletas de facetas, sem rótulos nem explicações fáceis, igual a Jules, que é interpretada com a intensidade dramática que aprendemos a admirar da atriz.
Pensando em série, não isoladamente, este episódio conversa com o de Rue de formas sutis e inteligentes: se o plano final deste se afasta de Jules, deitada em seu quarto, o anterior aproximava-se de Rua, no interior do carro. Se a chuva cobre a janela agora, no outro o para-brisa estava recém limpo. São oposições que contrapõem as duas personagens, em um jogo de imagens que não é só satisfatório ao olhar, mas também ao coração em como justifica a importância de uma em relação a outra, e por que este broto de romance precisa ser conservado.
São duas aulas em como contar histórias simples, mas significativas, pensadas e desenvolvidas em função de seus personagens, com um trabalho exemplar de Sam Levinson em individualizar aquilo que representa cada um e vocalizar da forma mais poderosa que há.
Existem filmes ou séries seguras da potências das palavras de texto que parecem (eu disse parecem!) preterir a construção da imagem. Este episódio especial de Euphoria - nunca vou me habituar a não redigir Euforia - parte de uma premissa direta e objetiva: a recaída de Rue depois de uma traição e o encontro com o padrinho, Ali, com quem mantém uma longa conversa a respeito da vida, do auto-perdão e da redenção. Ambos estão em uma lanchonete vazia para que o foco seja exclusivo a ambos, a partir de uma dinâmica que alterna entre a) a câmera mais próxima do rosto de um ou do outro - instantes em que enunciam verdades dolorosas ou reagem a estas -, b) tomadas sobre os ombros dos personagens - para passar a ideia de que estão juntos - ou c) tomadas do lado de fora - em que há a sensação voyeur de que os problemas estão confinados aquele "aquário".
Mas o texto, UOU! A partir de uma retórica poderosa, tanto Rue quanto Ali debatem a noção do indivíduo diante da perda da individualidade e identidade provocado pelo consumo de drogas. Quem somos quando acaba o breve momento da euforia e retornamos à sobriedade de uma realidade massacrante ou ao menos percebida assim. Rue, depressiva e com tendências suicidas, flagela-se, enquanto Ali proporciona-lhe o conforto para enxergar o mundo ao redor - no quadro final, a chuva cessa e o para-brisa está limpo para exibir o olhar hesitante de Rue.
Enquanto isto, Rue é pragmática em enxergar a morte do pai despida de qualquer comentário romanceado pelo molde da religião e destino, proposto por Ali. Encurralado, a resposta dele é a revolução, e a cada embate de ideias, vemos como Sam Levinson elaborou uma trama que é rica em temas para a sociedade contemporânea e não só àqueles 2 ali sentados: uma, na busca da figura paterna que perdeu; o outro, em busca do desejo de ser o homem bom que não pôde ser para as filhas e esposa. Ambos estão em busca da revolução, não esta de hashtags de instagram ou do sofá, mas a revolução da consciência e do espírito e ver este gérmen brotar dentro de Rue é gratificante para quem criou afinidade com a garota.
Enquanto isto, se dentro da lanchonete a fotografia favorece o tom marrom da poltrona ou o moletom vermelho de chapeuzinho de Rue, do lado de fora existe um azul que cobre as cores néon e reforça os temas da série, que retorna com um episódio especial doloroso mas transformador.
Muito além de compor apenas só uma minissérie sobre a investigação do "Estripador de Yorkshire", um assassino em série que assolou o Reino Unido nos anos 70 e assassinava mulheres, os 4-episódios são também um retrato fidedigno de uma sociedade inapta a lidar com o segundo movimento feminista e que tem muito a ver com a sociedade atual. O que isto tem a ver com um thriller criminal e histórico? Muito!
A forma como a polícia e imprensa abordaram as vítimas do caso foram determinantes para determinar a ineficiência da sociedade em socorrer os seus. Ao limitar as vítimas a 'prostitutas' apenas por serem mulheres livres (que iam a bares ou tinham vida sexual ativa), a polícia terminou por estreitar o foco da investigação e pré-julgar a vida delas. Enquanto isto, a Inglaterra enfrentava a consequência da globalização com a perda de empregos que levaram mulheres a ganhar a vida nas ruas, e quem somos nós para julgá-las por esta decisão e por precisar sobreviver diante de um país que lhes virava as costas?
Todas estas forças machistas (estruturais) resultam no ato misógino (a violência explícita) contrária as mulheres. Era como se os crimes de Peter Sutcliffe fossem moldadas pelo meio em que vive, hostil àquelas mulheres que iam as ruas para reaver o direito a autodeterminação. E a narrativa é bastante inteligente em contextualizar os crimes, em vez de se limitar apenas a investigação: é uma obra de época, feita a partir de vídeos de arquivo, com as vozes das famílias vítimas, e é também um manifesto atual.
Apesar disto, quis a história que o desfecho deste caso fosse um anti-clímax. E é decepcionante que o 4º episódio abra mão da intensidade e politização do episódio anterior para a satisfação / resolução gélida. Às vezes, os fatos poderiam ter um contorno dramático da ficção. Este seria um exemplo disto. Quem sabe os crimes de Peter Sutcliffe não fossem melhor encenados na ficção?
Se você assistiu a primeira temporada de Narcos: México, conheceu a história trágica do agente da DEA Kiki Camarena, capturado, torturado e assassinado pelo cartel de Guadalajara em retaliação de uma apreensão e destruição do campo de maconha construído no deserto. Entretanto, também deve ter ficado frustrado em saber como a investigação de seu assassinato deu com os burros n'água, apesar da resposta do governo norte-americano ter sido rápida, incisiva e brutal formalizando, de vez, a guerra das drogas dentro do México.
Este documentário desenvolve uma teoria da conspiração oportuna de quem tenha sido o mandatório do assassinato de Kiki a partir dos relatos de 5 pessoas: Hector Berrellez, ex-agente da DEA, Geneva Camarena, a esposa de Kiki, e de mais três policiais mexicano que mantinham relação com os cartéis de drogas. É aí que a narrativa fica interessante porque serve tanto de maneira de expiação tardia dos pecados desses homens, que testemunharam assassinatos brutais e desumanos (qual que não é, pensando bem), quanto de informação privilegiada do que de fato aconteceu com Kiki.
São testemunhas preciosas, mas cuja palavra, desacompanhada das provas concretas do que afirmam, termina por conferir menor valor ou esta característica conspiratória ao relato deles, que não é menos do que teatral (sobretudo de Jorge Godoy, que muitas vezes parece possuído e seus olhos reviram nas órbitas enquanto confessa). É óbvio, no entanto, que se pensarmos na estrutura de poder latino-americana e na influência norte-americana na região para superar a interferência soviética, a verdade apresentada não parece muito absurda e que poderosos também tinham interesse em calar a boca de Kiki.
De todo modo, The Last Narc é um complemento bem-vindo a quem curtiu Narcos: México, para discernir fatos de ficção, ou mesmo para quem não é familiarizado com a guerra às drogas. Afinal, a hipocrisia e maldade estão no DNA humano desde sempre, e quando poder, dinheiro e drogas começam a se misturar, você pode apostar que há algo de muito podre neste reino.
Existe alguma frustração em assistir a esta minissérie documental e constatar que, talvez, contribua para o que deseja combater. Isto porque ao ouvir o lado contrário e proporcionar um ângulo diferente ao estupro da camareira imigrante Nafissatou Diallo pelo ex-presidente do FMI Dominique Strauss-Kahn, a narrativa namora a ideia de que tudo poderia ser uma armação de Nicolas Sarkozy para arruinar a reputação de Dominique e evitar que o presidenciável do partido socialista assumisse a presidência da França.
A sensação que tive não era apenas de que a narrativa estava ouvindo o lado contrário - o que é louvável até para informar o espectador, em vez de deixá-lo com metade do caso, e também para evidenciar quem é a turma que defende esta "teoria" -, mas de que, à medida que o tempo avançava, estava se convencendo de que era possível que Diallo houvesse forjado o estupro para incriminar Dominique. Ora, se o documentário critica os (in)justos julgamentos de estupros (judiciais e midiáticos) em que a vida íntima da vítima é devassada, e esta é atacada e humilhada, por que realizar algo similar em forma de cinema?
Entretanto, é inegável a eficiência narrativa em explorar, depois deste lapso indesculpável, como é podre o sistema judicial onde quer que seja, conferindo o caminho livre para quem tem os meios (dinheiro e poder) para arcar com os enormes custos. Além do mais, a narrativa acerta em tentar discernir alhos de bugalhos, criticando o moralismo asqueroso de quem utiliza a vida sexual deste ou daquele político para atacá-lo, DESDE QUE o sexo seja consentido e mantido dentro da vida privada do sujeito, não na instituição que presidia.
Como podem perceber, a minissérie em 4-episódios caminhas sobre uma fina superfície: de um lado, a critica à concentração de poder e como este interfere na justiça; do outro, certo compadrio ou leniência masculina do diretor Jalil Lespert que, se não é intencional, ao menos é prova de como o machismo é enraizado sem que nem percebemos no nosso cotidiano.
Se tomássemos os exemplos de documentários, ninguém daria credibilidade à justiça americana: a maneira como encontra no homem negro o bode expiatório, arranca confissões, chantageia testemunhas e refaz depoimentos para se encaixar nas falsas verdades da investigação enquanto fecha os olhos a possíveis suspeitos, enfim, não existe nada de muito salvável na justiça de um país em que muitos confessam crimes só para ter penas menores e fugir da ciranda de um sistema acusatório feito para prender negros e pobres, e deixar de fora quem tem muito dinheiro para pagar advogados.
Esta minissérie analisa o caso de Sean Ellis, acusado, aos 19 anos, de assassinar, com cinco tiros (!), o policial John J. Mulligan, que dormia no estacionamento do Walgreens, para roubar-lhe a arma, para então irradiar e debater a corrupção no departamento de polícia de Boston, seus erros e transgressões, e o conluio, a meu ver também criminoso, com a promotoria do condado. Sean Ellis chama isto de uma epidemia de condenações injustas, e não está errado, ainda mais se tomarmos o caso que viveu e como os detetives apressaram a investigação para desviar a atenção da imprensa para dentro do departamento.
Cada episódio oferece um ponto de vista ao histórico do caso, que se alongou por cerca de 25 anos, além de proporcionar uma visão ampla e irrestrita à comunidade de Boston e aqueles atores do que chamam de justiça por aquelas bandas.
Todos já tiveram a sensação de que deveriam ter gostado mais deste ou daquele filme ou série. Pode ser o tema, o elenco ou as expectativas que muitos fecundam, existe o desejo de dobrar a relação emocional construída àquela que queríamos ter construído. E para ser pior, ainda duvidamos de nós mesmos, como espectadores, do gosto pessoal ou mesmo da empatia.
É o caso de Lovecraft Country que, em premissa, é a série mais interessante de 2020 em como articula, a partir do horror cósmico do autor, comentários raciais e sociais, similar ao que Watchmen realizou ano passado. Só que onde esta havia foco, na produção que tem J. J. Abrams e Jordan Peele, há dispersão, inconstância, insegurança.
É bem verdade que não há muito horror cósmico na minissérie, mas a costura de muitos elementos fantásticos que variam de monstros a portais que abrem fendas no tempo, de trocas de corpo a feitiçaria. Aí reside meu primeiro desconforto com a série: a dificuldade em encontrar qual a melhor linguagem cinematográfica para expressar-se. O terror inicial com raiz temática em Corra! logo cede espaço à aventura ao estilo Os Caçadores da Arca Perdida (juro!) antes de se transformar em De Volta Para o Futuro. Se as inspirações são nada além do que excelentes, a miscigenação de estilos anula o que cada um ofereceria de melhor.
Da mesma forma, a confusão de temas dilui a questão racial em tantos mais: o patriarcado e o papel da mulher (branca ou negra) na sociedade, a homofobia, a relação problemática entre pais e filhos e também irmãs. Até admiro que haja a interlocução destas questões, o que sugere que batalhar contra o racismo é equivalente a brigar contra a discriminação de gênero ou de orientação sexual, é uma questão de humanidade antes de tudo, no entanto a forma com que a narrativa opta em por fazer isto enfraquece cada frente, ao invés de as elevar. Bom exemplo é a metáfora à transsexualidade em personagem que vestem a pele de outros: afinal, qual a posição da narrativa em relação a isto, se considerarmos que esta prática é adotada pela antagonista? Como este elemento é harmonizado com o restante?
Lovecraft Country é análogo ao ambicioso equilibrista de pratos sobre monociclo: embora demonstre agilidade mediante atuações consistentes e a atmosfera atraente, o desejo em aumentar o desafio e abraçar o mundo de temas e gêneros, termina derrubando tudo o que havia construído.
Dom (1ª Temporada)
4.1 180Ao refletir a respeito da arte, o cineasta soviético Andrei Tarkovsky dizia: “o artista existe porque o mundo não é perfeito. A arte seria inútil se o mundo fosse perfeito, pois o homem não buscaria a harmonia, mas simplesmente viveria nela”.
Uma parte do público vaia o cinema brasileiro quando explora situações de criminalidade, enquanto aplaude clássicos do cinema internacional a exemplo de Scarface, Táxi Driver e Pulp Fiction. É porque é fácil fechar os olhos à realidade e abraçar um escapismo artificial e fingir que está tudo bem. Mas não nesta minissérie!
Em seus 8 episódios, a partir de uma sinergia entre passado e presente, o criador Breno Silveira articula diálogos geracionais de pais que projetam suas expectativas sobre seus filhos e, ao vê-las ruírem, mostram-se incapazes de estabelecer o diálogo que não aquele baseado no romantismo das memórias infantis e no autoritarismo do punho firme. Só que Victor esquece que o filho, Pedro Dom, é reflexo do rebelde que um dia foi. Estarem em lados opostos da justiça é só circunstancial, pois a minissérie ilustra que bandidos podem ser honrados e que policiais podem agir contra a lei.
Entretanto, não há romantização das drogas, nem da criminalidade. Apenas o retrato nu e cru de suas consequências, sem perder de vista se tratarem de uma questão de saúde pública, em que a figura paterna (que pode muito bem ser metáfora do Estado brasileiro) revela-se incompetente em combater essa epidemia social. A minissérie é brutal porque é real, sem reservar ao espectador perdão ou redenção, mas contando com um retrato urbano e de época verossímil - com algumas exceções -, ritmo intenso e atuações de destaque (Gabriel Leone, Flávio Tolezani, Filipe Bragança, Fábio Lago).
Uma reflexão deste Brasil imperfeito, destas relações pais e filhos quebradas, de sonhos que sequer puderam ser sonhados.
O Método Kominsky (3ª Temporada)
4.0 50É claro que a saída (mais ou menos não planejada) de Alan Arkin da terceira e última temporada de O Método Kominsky não é o melhor dos mundos, por mexer justo onde estava o coração da série, a relação de Sandy e Norman. Mas dentro das circunstâncias, a despedida desta série para sentir-se bem, passar o tempo, sorrir e refletir é tocante, de uma forma imperfeita.
A imperfeição está em como os 6 episódios finais (antes eram 8) tentam diminuir o impacto da saída de Alan Arkin com a maior atenção dada a Paul Reiser, além de participações de Kathleen Turner e Morgan Freeman. Esta imperfeição também é facilmente observável no último episódio, que utiliza saltos de tempo para começar a fechar as pontas deixadas na narrativa. É afobado, sem dúvida, mas os fãs, como eu, ficarão felizes em despedir-se de forma positiva dos personagens com que criaram afeição.
Eu lembro ainda hoje de Michael Douglas, aos 74 anos, fazendo a primeira transição à televisão com desconfiança. Agora, saio com um sorriso no rosto depois do trabalho do veterano ator, que equilibra, nesta temporada final, o nível exato de alegria, tristeza e um sentimento particular de reconhecimento mesmo acreditando não o merecer tardiamente.
Diante das circunstâncias apresentadas, O Método Kominsky dá adeus de uma maneira imperfeitamente humana, como algumas das melhores histórias são.
O Caso Evandro
4.5 249Enquanto o podcast de Ivan Mizanzuk tinha o caráter investigativo, o documentário O Caso Evandro, de Aly Muritiba e Michelle Chevrand, adota uma forma convencional e panorâmica de relato, apontando o dedo às inconsistência da investigação em uma estrutura subdividida de maneira didática, a fim de que a teia de aranha do caso seja melhor consumido por cada um.
Se consideradas as possibilidade de um material real igual a este, mais bizarro, complexo e sinuoso do que seria a melhor ficção, a minissérie desaponta. Não faltarão momentos de choque e indignação causados pela história propriamente dita, não pela maneira burocrática com que é contada, a partir de entrevistas com as peças-chave, inclusive Ivan, entrevistas e reconstituições.
Entretanto, também é inquestionável a importância da minissérie, em apresentar a parte do público que desconhecia um caso trágico e que bem discute a desfuncionalidade de nossa sociedade, de suas polícias e de como estas atuam a serviço de um poder político dominante (não para fazer justiça). De um lado, confissões arrancadas a base da tortura em um país que havia acabado de sair do regime ditatorial; do outro, a investigação feita na base da excelência; daqui, o desejo de punir os responsáveis pelo desaparecimento e assassinato (?) de Evandro e Leandro; dali, aqueles que apenas queriam abaixar a poeira do caso não importa quem punissem.
O Caso Evandro antecipa, nos anos 90, a sociedade contemporânea, desvencilhada do pensamento racional e imediata em eleger mitos e culpados a partir de notícias falsas, falseadas ou imprecisas, nem que isto causasse o sofrimento de inocentes, inclusive dos pais de um garoto vítima de um crime bárbaro.
Ted Lasso (1ª Temporada)
4.4 245 Assista AgoraDiante da situação em que vivemos, uma comédia de espírito otimista e leve, igual a seu protagonista, pode ser a melhor alternativa para que escapemos da realidade em direção a uma fantasia em que um técnico de futebol americano é escalado para comandar uma equipe do futebol inglês.
E não se engane: apesar de ser alguém alto astral o bastante para irritar os rabugentos, Ted Lasso não é um personagem unidimensional. Pelo contrário, os melhores instantes desta série, renovada para a 2ª temporada, estão quando constatamos que Ted Lasso também tem problemas pessoais a serem resolvidos. O que o diferencia é a forma como evita que isto se transforma em uma tempestade em sua vida.
Ao seu lado, também há uma personagem incrivelmente rica: Rebecca é uma mulher que perpetua elementos do machismo estrutural, sem que isto a torne monstruosa. Pois se há uma vítima de seu comportamento é ela própria, engasgada no ressentimento provocado por um sujeito canalha.
Divertida e eventualmente hilária - houve momentos em que entrei em crise de risos, como na entrada em campo de Dani Rojas -, Ted Lasso é uma alternativa para quem busca um elixir de positividade para começar bem o dia. E, mesmo quando os ensinamentos de Ted Lasso passam rente à trave do coach mais irritante, Jason Sudeikis tem a dose certa de sinceridade e ingenuidade para que não haja manipulação de nossos sentimentos. É que todo copo meio vazio também está meio cheio.
Invencível (1ª Temporada)
4.3 397 Assista AgoraInvencível é o que seria O Homem de Aço se a Warner Bros. e Zack Snyder retratassem, com verossimilhança e fidelidade, as consequências da luta entre o Super-Homem e Zod. Se Homem-Aranha 2, em menor grau na cena do metrô, e Kick-Ass, em maior, já haviam ilustrado que ser super-herói não seria um passeio no parque, então Invencível eleva este debate à enésima potência: onde havia machucados e membros quebrados, há mutilação e formas inusitadas de destruir um ao outro.
A violência transforma-se em uma forma de expressão, em uma maneira de exprimir as relações de poder entre super-seres com níveis de força distintos: apenas nas HQs que Batman poderia equiparar-se ao Super-Homem ou à Mulher-Maravilha; isto não ocorreria no mundo real. Deste modo, com a forma de desenho animado, parecido com o X-Men que assistíamos pelas manhãs, Invencível se mostra também corajoso em como não se acovarda em ser brutal.
A série é também uma releitura de, praticamente, os super-heróis cujos gibis guardava na estante, transformando Mark no Garoto-Aranha (o amálgama entre Homem-Aranha e o Superboy) e tendo espaço para inusitadas adaptações: o Luke Cage da série transforma-se em pedra; o Hulk, é uma garota em processo de rejuvenescimento; e Hellboy virou um detetive infernal. É divertido, para quem tem um pé nas HQs, com a adição de propor um realismo todo seu: a forma é animada; a violência, mais real do que jamais havíamos visto antes - ao menos em se tratando de escala.
O resultado é muito positivo e, apesar de a série não subverter os clichês humanos das HQs, mostra-se mais do que inteligente em reimaginar todo o restante. Agora imagina a próxima temporada com os personagens cósmicos!
This Is Us (5ª Temporada)
4.4 162 Assista AgoraDiferente de algumas produções produzidas durante a pandemia, This Is Us incorporou o Covid-19 dentro da estrutura narrativa. Mas de forma tímida, sem que as consequências da doença se vissem presentes decisivamente, senão em como Kevin e Madison são meio que forçados a viver sob o mesmo teto.
Dá até para abrir um parêntese em como o espectador se surpreende quando vê os personagens de máscaras no primeiro episódio. É que a série é atemporal, a ponto de retirar o público do escapismo dramático e obrigá-lo a encarar a realidade que enxerga quando sai de casa nos personagens que aprendeu a amar ao longo de 4 temporadas.
Esta 5ª temporada evidencia muitos dos problemas vistos na anterior: a presença de alguns personagens e subtramas que não somam à dinâmica familiar, com o objetivo exclusivo de cumprir a cota de episódios. Isto enfraquece a narrativa quando poderia dedicar-se, exemplifico, no processo árduo de reconciliação entre Kevin e Randall ou então na relação entre Beth e Tess.
Entretanto, esta temporada tem, talvez, o momento chave para compreender o formato da série inteira no monólogo de Rebecca ao lado dos filhos, no episódio final. Se antes o formato fragmentado, com histórias paralelas diluídas em linhas temporais, era justificado no conceito de assistir ao nascimento e amadurecimento de uma árvore familiar em frutos no processo de maturação até criarem mais famílias, aquele monólogo ressignificou muito para mim.
Se não desejar maiores spoilers, talvez seja o momento de interromper a leitura e concluir a temporada antes de retornar, ok? Considere-se avisado. Quando Rebecca reflete a respeito da deterioração da memória e da dificuldade em recordar seus momentos com Jack, entendemos o motivo pelo qual seu ex-marido é uma presença cada vez mais passageira e inconstante na narrativa e a estrutura em que a mãe dá um passo para trás para que os filhos governem-se em seus caminhos.
A memória é a a cola de This Is Us: é a razão de Randall buscar a família biológica, de Kate atravessar a jornada de perdão, de Kevin parar de tentar preencher os sapatos de Jack, de Rebecca contentar-se em saber que o amor dedicado criou uma família apaixonante.
Os Filhos de Sam: Loucura e Conspiração
3.6 44Crimes reais popularizaram o documentário, além de um nicho restrito, tendo a Netflix surfado na mesma onda da HBO, mas com significativas diferenças em razão de seu alcance e do investimento em quantidade. Isto provocou o esgotamento da fórmula cedo demais, e prova disto é a ausência de um documentário de maior relevo como A Máfia dos Tigres (de meados do ano passado).
Uma alternativa é explorar este tipo de narrativa de outra forma, e Os Filhos de Sam cumpre bem este papel sem deixar de ser o seu típico documentário de crime real. Prova disto é a escolha de um assassino notório - David Berkowitz, o Filho de Sam, que vocês devem poder recordar de Mindhunter -, a contextualização histórica em uma Nova York consumida pelo crime e com a polícia sem recursos humanos e financeiros e a proposição de uma teoria (mas nem tão conspiratória assim) de como os crimes de fato aconteceram.
Mas além da fórmula, está o que me atraiu mais no documentário: a biografia de Maury Terry, o jornalista que dedicou mais de 2 décadas de sua vida para restituir a verdade tal como a enxergava. É que uma investigação é incapaz de restabelecer os fatos tal como ocorreram, só revela um ângulo, uma verdade possível, alcançável e satisfatória, no melhor dos casos. É este um fundamento que Maury parecia não compreender, ao sacrificar sua vida pessoal e profissional em nome de uma obsessão utópica, a de que seria capaz de desvendar toda a teia de crimes.
Maury é um personagem exemplarmente trágico por ser romântico, um romantismo impeditivo de ser diplomático e de enxergar quando era manipulado pela mídia sensacionalista e quando manipulava os princípios jornalísticos para confirmar sua versão dos fatos. É Paul Giamatti que emprega sua voz compassada para dar voz aos escritos de Maury, em um documentário que parte de um crime real para compreender o ser humano.
O Paraíso e a Serpente
4.0 124Dentro do audiovisual, a minissérie consolidou-se como meio para contar histórias extensas o bastante para não caberem, sem serem simplificadas, em filmes de 2 horas. É uma alternativa que funcionou muitíssimo bem com jovens clássicos como Watchmen, Chernobyl e Olhos que Condenam - apenas para citar 3 exemplos - e que casaria também com a proposta de O Paraíso e a Serpente, cujos episódios ignoram a linearidade dos acontecimentos para se concentrarem em momentos da trajetória do inescrupuloso Charles Sobhraj.
Mas esta não me pareceu ser a melhor fórmula de contar esta história, cujo ziguezague no tempo se provará um obstáculo quase insuperável para tentar montar as peças do quebra-cabeças. Se em um episódio já se mostra desafiadora a tarefa de mapear as idas e vindas da narrativa e como passado e presente articulam-se mutuamente, no todo então isto é elevado a enésima potência, já que entre episódios a narrativa não é linear enquanto trafega por passados diferentes para chegar a presentes idem. Sei que parece confuso, mas cada episódio tem sua própria linha do tempo que não anda de mãos dadas com o episódio seguinte, o que atrapalha até mesmo a construção dos personagens.
Pois, com exceção de Charles e Kippenberger - os mais planos, pois reféns de suas obsessões -, os demais personagens da comunidade hippie montada por Charles têm valores morais que precisam superar em algum momento para se aliar a ele, mesmo a contragosto. Alguns dos episódios parecem se concentrar justo neste instante de ruptura em que o interesse egoísta ameaça o próximo, e soam repetitivos em retratar o modus operandi de Charles e o processo de transformação daqueles ao seu redor.
O que eleva a narrativa além disso são justamente as atuações de Tahar Rahim - atorzaço desde que o conheci em O Profeta - e Billy Howle, ao passo que as respectivas contrapartes femininas, Jenna Coleman e Ellie Bamber acabam ofuscadas por viverem mulheres submissas às profissões dos companheiros. De toda forma, a história real narrada, igual a superstição cita a respeito das serpentes, fascina e mesmeriza a tal ponto que é difícil desgrudar o olhar da tela... mesmo quando a cronologia dos eventos e a forma dos episódios nos deixa na mão.
Eles (1ª Temporada)
4.1 546 Assista Agora2 formas de terror coexistem nesta minissérie provocados por um mesmo gatilho: o racismo. Enquanto os Emory enfrentam manifestações sobrenaturais que assumem formas compatíveis com seus traumas, lidam com os terrores sociais provocados por seus vizinhos e colegas de trabalho ou escola. A forma como estes terrores é entrecortada é harmoniosa e escala até o ponto de não ser mais suportável.
Isto porque o criador Little Marvin opta pelo choque como ferramenta extrema de terror, até que pareça ser o choque apenas pelo poder de chocar e não mais o choque com o desejo de provocar a reflexão. Perguntem-se: uma pessoa negra gostaria de reviver as violências exibidas explicitamente na narrativa, ao ponto de isto impregnar-se sob a sua pele como uma ferida purulenta? Eu não tenho esta resposta. Para mim, a minissérie se revelava no chamado torture porn: quando a violência é tamanha que mais parece um fetiche. Não é intencional, por razões óbvias, mas não é fácil ignorar, salvo quando a violência dos vizinhos brancos retorna contra eles pelo destino (a dona de casa Betty, por exemplo).
Já a narrativa peca por um excesso de linguagem: os ângulos inclinados revelam desconforto, medo e angústia; os primeiríssimos planos (ou closes extremos) acentuam estas sensações; a utilização do dioptro partido, um tipo específico de lente que reúne o primeiro plano e o fundo como se estivessem lado a lado, acentua a fuga da realidade. Estas opções estilísticas, ao lado de canções macabras e do design de produção opressivo de onde moram os Emory, agigantam o terror até um limite, em que parece que a direção tenta chamar atenção aos próprios êxitos em vez de contar a história. Comparem os primeiros episódios - mais estilizados - com os finais e perceba como a utilização dos recursos com parcimônia ajuda a proposta, em vez de criar um mundo paralelo em que percebemos a técnica e perdemos os personagens de mão.
Por falar nisso, a narrativa está tão investida na violência que acaba perdendo de mão quem se conecta conosco: os personagens. Quando enxergamos as situações a que os Emory estão submetidos - elas revoltam qualquer pessoa que tenha o coração no lugar certo - vemos o retrato do que ocorria/ocorre com a comunidade negra. Entretanto, ao fazer isto, a narrativa torna os personagens meios do discurso, quando eles deveriam ser seu fim. Funciona? Claro. Igual vídeos de violência racial machucam. Mas é uma forma óbvia de ilustrar algo mais assustador quanto mais sutil e imperceptível é: o racismo.
Falcão e o Soldado Invernal
3.9 381 Assista AgoraA trilogia do Capitão América demonstrou que as aventuras do super-herói eram melhores quanto mais centradas no jogo político do mundo real. Esta minissérie somente confirma esta vocação: o papel da pessoa negra, cuja identidade americana é negada por questões racistas, anda ao lado da trama envolvendo os Apátridas, cidadãos (e não terroristas!) deslocados de suas nações para ocupar o vazio deixado por metade do mundo desaparecido após o estalo de Thanos e que agora são forçados a reassentamentos . É uma consequência que não havia pensado antes e que serve como uma premissa oportuna para posicionar a série no hoje.
Também ajuda que, do ponto de vista individual, haja preocupação com o desenvolvimento dos heróis do título, Sam e Bucky: este, com problemas em aceitar o assassino que era para descobrir o herói que irá se tornar; aquele, com questões financeiras provocadas pelo fato de heróis não terem salários. Embora sejam personagens cativantes, em dupla, a química não é das melhores, igual às cenas de ação que são orquestradas pela diretora Kari Skogland.
Além do mais, por melhores que sejam os temas tratados na narrativa, a maneira como isto é feita é didática e expositiva, como se estivesse dando uma lição de moral. O que é mais eficiente: o diálogo de Sam com um senador ou o gesto deste com Isaiah? Até me disponho a ser leniente em alguns casos, mas Falcão e o Soldado Invernal passam do tom, diferente do que fez, por exemplo, Capitão América e o Soldado Invernal, em que a mensagem política da narrativa estava evidente e não precisava ser desenhada para que todos compreendessem.
No mais, se a série desperdiça Daniel Brühl - tão bem no pouco de tempo em tela de Capitão América e Guerra Civil -, não faz o mesmo com Wyatt Russell, cujo John Walker é um homem com complexo de inferioridade e intenções nobres que rouba todas as cenas em que está na minissérie. Além disto, as participações de Emily Vancamp e Julia Louis-Dreyfus alimentam oportunidades para o desenvolvimento do universo da Marvel.
Dickinson (2ª Temporada)
3.9 35Se você gostou da primeira temporada, não terá problemas com esta que individualiza os conflitos dos personagens a partir de um contexto de época parecido com os dias de hoje, não somente em se tratando de canções ou gírias contemporâneas. É o anacronismo de Emily Dickinson que dita as regras desse mundo de ontem com cara de atualidade, pois a poetisa estava bem a frente de seu tempo e da sociedade que reprimia seus sentimentos.
De certa maneira, é como se a semana da família dos Dickinson fosse uma lembrança de que aprisionar as pessoas dentro de caixinhas bem rotuladas é a receita da infelicidade, e ver Gus emancipando-se com aquilo que ama, Lavínia tomando controle da sexualidade e Emily e Sue redescobrindo seu amor é um dos prazeres de uma série que não subestima o espectador, mesmo quando reconhece que seu público-alvo é o jovem adulto. Sua mãe é outra levada por esse sentimento "moderno" de questionar os valores da época, e assim buscar a própria felicidade.
A temporada se concentra nos esforços de Emily em decidir se quer ser reconhecida por sua arte, ou se prefere se entregar ao anonimato. Com isso, questiona a importância da arte ao artista: será que a arte é apenas um meio de expurgar os sentimentos guardados dentro deles ou será que é também uma maneira de estender a mão a quem passa por uma situação parecida e redescobrir o próprio propósito? A propósito, o episódio ao lado de um jardineiro é talvez um dos melhores para se refletir a arte muito além do óbvio.
Com episódios curtos, e nenhum deles em vão em como desenvolve seus personagens além de onde pararam na temporada anterior, a série continua agradável, provocativa e divertida.
Allen v. Farrow
3.9 38 Assista AgoraPor haver passado cerca de 3 décadas, demorei para compreender a relevância da minissérie documental acerca do alegado abuso sexual cometido por Woody Allen contra a filha, Dylan Farrow. À primeira vista, parecia uma tentativa de reaquecer um caso que reemergiu há alguns anos. Entretanto, não há como ignorar o aspecto terapêutico em Dylan readquirir a voz, como adulta, e utilizar a arte mais popular para se juntar ao coro dos movimentos #MeToo e Time's Up com uma caso que, a bem da verdade, jamais terá um fechamento conclusivo.
Apesar de não ser apta a modificar o ponto de vista de quem já tem sua opinião formada pelos fatos completos, a minissérie oferece um panorama, ainda que unilateral, de todo o caso, e o desenvolve com misto de fatos e factoides sensacionalistas. Aqui, documenta a família dos Farrow como se vivessem uma existência perfeita e idílica antes de ser ameaçada com a chegada de um monstro; noutro momento, narra os eventos com rigor, sobretudo na linha do tempo do caso, tornado-o claro àqueles que não o compreendiam totalmente. No entanto, omite elementos importantes, muitos deles relacionados a Mia Farrow, e romanceia outros, ao transformar a batalha de Mia e Woody em Davi contra Golias e a focar-se demais no relacionamento com Soon-yi.
É justificável a abordagem, sobretudo em razão de os diretores Kirby Dick e Amy Ziering entenderem que Woody controlava a narrativa na imprensa, logo, apenas parecem equilibrar o jogo. Mas a contradição da narrativa não desce: se a dupla de diretores defende (e tem o meu apoio) que devemos acreditar na vítima, por que então descreditam Moses e Soon-yi quando comentam a respeito dos alegados abusos físicos e psicológicos impostos por Mia? Se apresentam fundamentos para repudiar a tese de que Dylan sofreu alienação parental, por que defendem que Moses e Soon-yi tenham sido instrumentalizados a fim de defender Woody?
Além disso, ao comparar Woody Allen a Bill Cosby e Harvey Weinstein, a minissérie faz um desserviço em tratar condutas abusivas diferentes (uma doméstica, as outras, no ambiente de trabalho) de igual forma, e não é que uma seja menos monstruosa do que outra, é somente que a motivação muda e isto impacta no desenlace narrativo. Ao fim, pouco importa em quem você acredite, pois a série acerta em empoderar, no sentido estrito da palavra, Dylan e quem tenha medo de verbalizar seu abuso, embora seja uma peça investigativa problemática, unilateral e às vezes desonesta com o espectador.
WandaVision
4.2 844 Assista AgoraUm dos dramas de que mais gosto na arte narrativa é o enfrentamento do luto, cujos cinco estágios são explorados com qualidade na série que reencontra Wanda negando a partir do isolamento, enraivecendo-se, barganhando, deprimindo-se e aceitando os eventos ocorridos em Guerra Infinita, que tiraram a joia da mente (e a vida) de Visão.
Assim, empregar o formato de sitcoms, que tem importância à Wanda revelada na minissérie, como também, formalmente, insinua o artifício de criar uma máscara só para se proteger das consequências reais é um mecanismo narrativo estimulante e trabalhado com coerência, ao menos na maior parte do tempo. Além do mais, a atuação de Elizabeth Olsen ilustra a confusão da personagem, que mesmo sendo uma das mais fortes da Marvel, está tão abalada emocionalmente que mal pode (ou quer) perceber o dano que causa em todos ao seu redor.
Nesse contexto, com o carisma e irônica sensibilidade de Paul Bettany a reboque, a minissérie é capaz de ampliar o escopo do subgênero de super-heróis em uma direção instigante, ainda que, no final do dia, a Marvel / Disney fará o que esperamos dela. O retorno à fórmula de um filme tradicional de super-heróis no episódio final é a ponta do iceberg de um conjunto de desapontamentos provocados pelas possibilidades que a série abriu diante de si: a introdução de supervilão que atenua a responsabilidade de Wanda pelo que fez, os diálogos expositivos que fazem questão de explicar o que já estamos vendo e os coadjuvantes introduzidos como fan service, mas que mal conseguem justificar sua presença na narrativa.
Como a maioria das produções da Marvel / Disney, a ambição sempre é suspensa quando ameaça o conforto previsível. De uma forma até amarga, é como se fôssemos devolvido à artificialidade da sitcom, ao invés das alternativas mais fascinantes e desafiadoras do mundo real. Mas não há como ignorar a premissa caprichada e executada com talento e a dedicação do elenco em tornar real e tangível um dos sentimentos que bem definem a experiência humana: o luto ou o amor que perdura.
Pose (2ª Temporada)
4.5 264 Assista AgoraEm torno do fantasma da AIDS na comunidade LGBTQIA+ dos bailes noturnos, no início dos anos 90, esta temporada explora o processo de aceitação em descobrir que, dentro de si, há uma bomba relógio que pode disparar a qualquer momento. Mas não se resume a este drama, ainda bem.
Algo que Pose faz muito bem é saber separar as alegrias das tristezas e reconhecer que, quando se é marginalizado e discriminado por toda a sociedade, a solução está às vezes em ir à praia na companhia de suas amigas. O gesto simbólico que há aí é de reforçar os vínculos de comunidade, indispensáveis para erguer a cabeça em face à opressão e lutar por direitos que deveriam ser automáticos de todos.
Como o direito de existir, de não ser invisível dentro da sociedade que insiste no processo de gentrificação, na figura de uma empresária do ramo imobiliário que entende a opressão em razão do gênero e ainda assim a pratica contra Blanca, de não ser objeto de violência, de ser a pessoa plena que se é.
A série explora as rachaduras morais da sociedade, a partir da maneira como vitimizam a comunidade LGBTQIA+, mas de forma equilibrada com a ênfase nas vitórias, como ter na parada de sucesso a canção de Madonna inspirada nos bailes noturnos. Enquanto isto, acolhe e inspira e, talvez por isto, seu ponto fraco está nas disputas menos convincentes após o desfecho da primeira temporada, como a rixa entre Elektra e Blanca e Pray Tell e Candy. São muito novelescas a ponto de soarem artificiais.
Diferente da autenticidade das atuações, ressaltadas a partir de episódios que exploram, com profundidade, os dramas de cada personagem, em um mosaico de amizade e união contra as forças discriminatórias.
EUA: A Luta pela Liberdade
4.4 6Quando era estudante, tinha um pé atrás com aulas de história. A forma de ensinar, com ênfase em nomes e datas, ao invés de motivações, me tornou um mestre na arte de decorar e criar mnemônicos para tirar nota máxima nas provas. História deveria ser mais, pois sem conhecê-la, estamos fadados a cometer os mesmos erros do passado no presente, então o processo deveria ser provocador e reflexivo em transformar alunos em cidadãos.
EUA: A Luta pela Liberdade é como imaginava que as aulas de história deveriam ser: um esforço intelectual que não despreza o artifício para tornar a viagem ao passado em uma peça fundamental para o agora. É entretenimento e conteúdo, a partir da combinação de depoimentos e monólogos de artistas consagrados declamando textos célebres com a utilização da animação, de infográficos e de recursos que tornam a narrativa ágil e cativante. Só ajuda ser apresentada pelo sempre simpático e expansivo Will Smith.
É com essa forma dinâmica que a minissérie em 6 episódios retorna à escravidão e explica como Frederick Douglass convenceu o hesitante Abraham Lincoln a abolir a submissão de negros a brancos, para então ser redigida a emenda nº 14 que conferiria igualdade a todos nascidos e naturalizados em solo americano. A partir daí, o enfrentamento das forças do retrocesso, que queriam retornar ao status quo nem que para isso linchassem e segregassem as pessoas em razão da cor da pele, e todo o processo que tornou os Estados Unidos em uma panela de pressão de conflitos raciais até os dias atuais.
A partir daí, a minissérie revela como o movimento capitaneado por Martin Luther King inspirou o movimento feminista e também a luta pelos direitos LGBTQIA+. E como a 14ª emenda acabou servindo de arcabouço para que grupos subrepresentados e minorias, inclusive imigrantes, lutassem por seus direitos em uma nação cujo princípio está no acolhimento de todos os povos. Além disto, entendemos por que muitas feridas ainda estão abertas, conhecemos figuras e aprendemos sobre eventos (alguns deles, admito, nem desconfiaria que houvessem ocorrido) e enxergamos qual o caminho para transformar o país na promessa dos pais fundadores: o bom combate. É uma série que ensina e inspira nossos passos, no Brasil, em busca de uma sociedade digna a todos.
Cidade Invisível (1ª Temporada)
4.0 751Todos nós já assistimos a ene repetições da mitologia grega, romana, nórdica, mas quando olhamos para o folclore nacional, o máximo que lembramos é do Saci Pererê e olhe lá. E Cidade Invisível vem a tempo de servir de resgate e proporcionar uma reimaginação das lendas e mitos nacionais, a partir de uma roupagem de cinema de gênero que não deve nada a seus pares estrangeiros. Melhor, provoca empatia e identificação por discutir temas contemporâneos a luz da fantasia.
Enquanto Eric procura respostas para a morte da esposa e começa a descobrir uma sociedade secreta fantástica, a série encontra espaço para trazer o tema ambiental, hoje em evidência no cenário brasileiro. Faz isto com habilidade, pois defender a fauna e flora brasileiros está de mãos dadas com o nosso folclore, uma parte desse inestimável patrimônio nacional.
Entretanto, a narrativa desanda e fica protocolar quando se aventura no gênero policial, que tem clichês típicos do cinema gringo, não do nosso: a disputa entre órgãos policiais diferentes a respeito de quem terá a competência na investigação, a perda do distintivo e da arma depois que Eric toma determinadas decisões, culminando no próprio ritmo da investigação que toma atalhos não facilmente conciliáveis com a fantasia da série.
Ainda assim, o conceito se sobressai, o subtexto submerge para se tornar a preocupação da narrativa e as atuações são competentes mesmo quando o roteiro aposta em diálogos rasos para contornar certas situações. Lá estão Marco Pigossi, Alessandra Negrini, Áurea Maranhão, Fábio Lago, José Dumont e Wesley Guimarães, para citar alguns, dedicados em conferir personalidade a personagens melhor definidos por seu propósito ou pela própria essência fantástica, e tornam a (infelizmente breve) experiência de mergulhar nas raízes de nosso país em uma aventura imperdível que, espero, terá continuação.
Faz de Conta que NY é uma Cidade
4.2 30 Assista AgoraEnquanto assistia a esta minissérie, só imaginava como seria uma conversa de Fran Lebowitz com Woody Allen. Não é que eu esteja diminuindo o trabalho de Martin Scorsese em obter confidências desta escritora que há anos está presa em bloqueio criativo e nele permanece, mas que as inteligentes rabugices dela acerca de Nova York, da juventude e da cultura americana pareciam mais propícias de encontrar eco nas neuroses de Woody (que a considerar de minhas pesquisas na internet, não deve ter esbarrado em Fran pelas ruas da cidade).
Entretanto, a dinâmica de Scorsese é eficiente em dois aspectos: o primeiro, em deixar a entrevistada a vontade (não que Fran precise) para despejar suas lamúrias em relação a Times Square, bairro que prefere contornar com uma caminhada quilométrica na esperança de não trombar com algum turista, ou então aos hábitos de leituras da sociedade contemporânea com seus Kindles. O segundo, em servir de avatar do espectador, enquanto tenta controlar e parecer sério (sem sucesso) as gargalhadas provocadas por tiradas de Fran.
Convenhamos, Fran é genial! Ela não depende de quem a documente, mas é um dínamo que conferiria vida ao trabalho de quem quer que fosse: Scorsese é até perspicaz em cortar para uma fonte logo depois de Fran falar de que não tem medo de faltar água em 2050 ("Eu não estarei viva mesmo"), mas não é a ideia de desperdício de água de onde flui o humor, é a própria Fran com a maneira depreciativa com que enxerga o mundo ao redor. Eu poderia ouvi-la por horas, mesmo quando suas reclamações sejam mais de uma pessoa incapaz de se atualizar às exigências de um mundo diferente do em que cresceu.
Fran é inteligente, sarcástica e não exibe nenhuma trava em ser objeto de análise e crítica. Lá está, e enquanto a vemos em entrevistas com o ator Alec Baldwin, a atriz Olivia Wilde ou o diretor Spike Lee, notamos uma mulher de ideias fortes traduzidas na forma mais rara de humor: a que nos faz rir e refletir, ao mesmo tempo.
Euphoria: Fuck Anyone Who’s Not a Sea Blob
4.3 128Enquanto o episódio centrado em Rue era introspectivo (não havia como ser diferente), o especial de Jules explora a indecisão da jovem dentro de uma consulta à terapeuta que lhe proporciona revisitar o eu interior. A dúvida em relação à sexualidade e até em continuar ou não o tratamento hormonal são explorados por um roteiro escrito com muita sensibilidade pela própria Hunter Schafer, o que confere maior verossimilhança e tato aos temas abordados. E também faz o público pensar além da arquitetura do episódio: estaria a atriz confessando a nós o mesmo processo que precisou / precisa atravessar em relação à identidade de gênero?
Com maior expressividade em imagens, o episódio pode afastar-se da dinâmica de troca de perguntas e respostas de uma terapia e explorar, em poesia, momentos melhor ilustrados sem a utilização da muleta do diálogo. Deitar-se sobre a areia da praia até ser tragada pelo mar ou uma montagem paralela entre o sexo fantasiado (em tons de amarelo dourado) e com Rue / sozinha (banhado na paleta azul que é típica da personagem) comunicam-se melhor do que palavras seriam capazes de fazer, já que possibilitam que o espectador explore um significado dentre tantos disponíveis, em vez de se acomodar só com um. Assim são as pessoas no mundo real: repletas de facetas, sem rótulos nem explicações fáceis, igual a Jules, que é interpretada com a intensidade dramática que aprendemos a admirar da atriz.
Pensando em série, não isoladamente, este episódio conversa com o de Rue de formas sutis e inteligentes: se o plano final deste se afasta de Jules, deitada em seu quarto, o anterior aproximava-se de Rua, no interior do carro. Se a chuva cobre a janela agora, no outro o para-brisa estava recém limpo. São oposições que contrapõem as duas personagens, em um jogo de imagens que não é só satisfatório ao olhar, mas também ao coração em como justifica a importância de uma em relação a outra, e por que este broto de romance precisa ser conservado.
São duas aulas em como contar histórias simples, mas significativas, pensadas e desenvolvidas em função de seus personagens, com um trabalho exemplar de Sam Levinson em individualizar aquilo que representa cada um e vocalizar da forma mais poderosa que há.
Euphoria: Trouble Don't Last Always
4.3 154Existem filmes ou séries seguras da potências das palavras de texto que parecem (eu disse parecem!) preterir a construção da imagem. Este episódio especial de Euphoria - nunca vou me habituar a não redigir Euforia - parte de uma premissa direta e objetiva: a recaída de Rue depois de uma traição e o encontro com o padrinho, Ali, com quem mantém uma longa conversa a respeito da vida, do auto-perdão e da redenção. Ambos estão em uma lanchonete vazia para que o foco seja exclusivo a ambos, a partir de uma dinâmica que alterna entre a) a câmera mais próxima do rosto de um ou do outro - instantes em que enunciam verdades dolorosas ou reagem a estas -, b) tomadas sobre os ombros dos personagens - para passar a ideia de que estão juntos - ou c) tomadas do lado de fora - em que há a sensação voyeur de que os problemas estão confinados aquele "aquário".
Mas o texto, UOU! A partir de uma retórica poderosa, tanto Rue quanto Ali debatem a noção do indivíduo diante da perda da individualidade e identidade provocado pelo consumo de drogas. Quem somos quando acaba o breve momento da euforia e retornamos à sobriedade de uma realidade massacrante ou ao menos percebida assim. Rue, depressiva e com tendências suicidas, flagela-se, enquanto Ali proporciona-lhe o conforto para enxergar o mundo ao redor - no quadro final, a chuva cessa e o para-brisa está limpo para exibir o olhar hesitante de Rue.
Enquanto isto, Rue é pragmática em enxergar a morte do pai despida de qualquer comentário romanceado pelo molde da religião e destino, proposto por Ali. Encurralado, a resposta dele é a revolução, e a cada embate de ideias, vemos como Sam Levinson elaborou uma trama que é rica em temas para a sociedade contemporânea e não só àqueles 2 ali sentados: uma, na busca da figura paterna que perdeu; o outro, em busca do desejo de ser o homem bom que não pôde ser para as filhas e esposa. Ambos estão em busca da revolução, não esta de hashtags de instagram ou do sofá, mas a revolução da consciência e do espírito e ver este gérmen brotar dentro de Rue é gratificante para quem criou afinidade com a garota.
Enquanto isto, se dentro da lanchonete a fotografia favorece o tom marrom da poltrona ou o moletom vermelho de chapeuzinho de Rue, do lado de fora existe um azul que cobre as cores néon e reforça os temas da série, que retorna com um episódio especial doloroso mas transformador.
O Estripador (1ª Temporada)
3.6 56 Assista AgoraMuito além de compor apenas só uma minissérie sobre a investigação do "Estripador de Yorkshire", um assassino em série que assolou o Reino Unido nos anos 70 e assassinava mulheres, os 4-episódios são também um retrato fidedigno de uma sociedade inapta a lidar com o segundo movimento feminista e que tem muito a ver com a sociedade atual. O que isto tem a ver com um thriller criminal e histórico? Muito!
A forma como a polícia e imprensa abordaram as vítimas do caso foram determinantes para determinar a ineficiência da sociedade em socorrer os seus. Ao limitar as vítimas a 'prostitutas' apenas por serem mulheres livres (que iam a bares ou tinham vida sexual ativa), a polícia terminou por estreitar o foco da investigação e pré-julgar a vida delas. Enquanto isto, a Inglaterra enfrentava a consequência da globalização com a perda de empregos que levaram mulheres a ganhar a vida nas ruas, e quem somos nós para julgá-las por esta decisão e por precisar sobreviver diante de um país que lhes virava as costas?
Todas estas forças machistas (estruturais) resultam no ato misógino (a violência explícita) contrária as mulheres. Era como se os crimes de Peter Sutcliffe fossem moldadas pelo meio em que vive, hostil àquelas mulheres que iam as ruas para reaver o direito a autodeterminação. E a narrativa é bastante inteligente em contextualizar os crimes, em vez de se limitar apenas a investigação: é uma obra de época, feita a partir de vídeos de arquivo, com as vozes das famílias vítimas, e é também um manifesto atual.
Apesar disto, quis a história que o desfecho deste caso fosse um anti-clímax. E é decepcionante que o 4º episódio abra mão da intensidade e politização do episódio anterior para a satisfação / resolução gélida. Às vezes, os fatos poderiam ter um contorno dramático da ficção. Este seria um exemplo disto. Quem sabe os crimes de Peter Sutcliffe não fossem melhor encenados na ficção?
O Último Narc
4.4 4 Assista AgoraSe você assistiu a primeira temporada de Narcos: México, conheceu a história trágica do agente da DEA Kiki Camarena, capturado, torturado e assassinado pelo cartel de Guadalajara em retaliação de uma apreensão e destruição do campo de maconha construído no deserto. Entretanto, também deve ter ficado frustrado em saber como a investigação de seu assassinato deu com os burros n'água, apesar da resposta do governo norte-americano ter sido rápida, incisiva e brutal formalizando, de vez, a guerra das drogas dentro do México.
Este documentário desenvolve uma teoria da conspiração oportuna de quem tenha sido o mandatório do assassinato de Kiki a partir dos relatos de 5 pessoas: Hector Berrellez, ex-agente da DEA, Geneva Camarena, a esposa de Kiki, e de mais três policiais mexicano que mantinham relação com os cartéis de drogas. É aí que a narrativa fica interessante porque serve tanto de maneira de expiação tardia dos pecados desses homens, que testemunharam assassinatos brutais e desumanos (qual que não é, pensando bem), quanto de informação privilegiada do que de fato aconteceu com Kiki.
São testemunhas preciosas, mas cuja palavra, desacompanhada das provas concretas do que afirmam, termina por conferir menor valor ou esta característica conspiratória ao relato deles, que não é menos do que teatral (sobretudo de Jorge Godoy, que muitas vezes parece possuído e seus olhos reviram nas órbitas enquanto confessa). É óbvio, no entanto, que se pensarmos na estrutura de poder latino-americana e na influência norte-americana na região para superar a interferência soviética, a verdade apresentada não parece muito absurda e que poderosos também tinham interesse em calar a boca de Kiki.
De todo modo, The Last Narc é um complemento bem-vindo a quem curtiu Narcos: México, para discernir fatos de ficção, ou mesmo para quem não é familiarizado com a guerra às drogas. Afinal, a hipocrisia e maldade estão no DNA humano desde sempre, e quando poder, dinheiro e drogas começam a se misturar, você pode apostar que há algo de muito podre neste reino.
Quarto 2806: A Acusação
3.4 9 Assista AgoraExiste alguma frustração em assistir a esta minissérie documental e constatar que, talvez, contribua para o que deseja combater. Isto porque ao ouvir o lado contrário e proporcionar um ângulo diferente ao estupro da camareira imigrante Nafissatou Diallo pelo ex-presidente do FMI Dominique Strauss-Kahn, a narrativa namora a ideia de que tudo poderia ser uma armação de Nicolas Sarkozy para arruinar a reputação de Dominique e evitar que o presidenciável do partido socialista assumisse a presidência da França.
A sensação que tive não era apenas de que a narrativa estava ouvindo o lado contrário - o que é louvável até para informar o espectador, em vez de deixá-lo com metade do caso, e também para evidenciar quem é a turma que defende esta "teoria" -, mas de que, à medida que o tempo avançava, estava se convencendo de que era possível que Diallo houvesse forjado o estupro para incriminar Dominique. Ora, se o documentário critica os (in)justos julgamentos de estupros (judiciais e midiáticos) em que a vida íntima da vítima é devassada, e esta é atacada e humilhada, por que realizar algo similar em forma de cinema?
Entretanto, é inegável a eficiência narrativa em explorar, depois deste lapso indesculpável, como é podre o sistema judicial onde quer que seja, conferindo o caminho livre para quem tem os meios (dinheiro e poder) para arcar com os enormes custos. Além do mais, a narrativa acerta em tentar discernir alhos de bugalhos, criticando o moralismo asqueroso de quem utiliza a vida sexual deste ou daquele político para atacá-lo, DESDE QUE o sexo seja consentido e mantido dentro da vida privada do sujeito, não na instituição que presidia.
Como podem perceber, a minissérie em 4-episódios caminhas sobre uma fina superfície: de um lado, a critica à concentração de poder e como este interfere na justiça; do outro, certo compadrio ou leniência masculina do diretor Jalil Lespert que, se não é intencional, ao menos é prova de como o machismo é enraizado sem que nem percebemos no nosso cotidiano.
Justiça em Julgamento (1ª Temporada)
4.1 7 Assista AgoraSe tomássemos os exemplos de documentários, ninguém daria credibilidade à justiça americana: a maneira como encontra no homem negro o bode expiatório, arranca confissões, chantageia testemunhas e refaz depoimentos para se encaixar nas falsas verdades da investigação enquanto fecha os olhos a possíveis suspeitos, enfim, não existe nada de muito salvável na justiça de um país em que muitos confessam crimes só para ter penas menores e fugir da ciranda de um sistema acusatório feito para prender negros e pobres, e deixar de fora quem tem muito dinheiro para pagar advogados.
Esta minissérie analisa o caso de Sean Ellis, acusado, aos 19 anos, de assassinar, com cinco tiros (!), o policial John J. Mulligan, que dormia no estacionamento do Walgreens, para roubar-lhe a arma, para então irradiar e debater a corrupção no departamento de polícia de Boston, seus erros e transgressões, e o conluio, a meu ver também criminoso, com a promotoria do condado. Sean Ellis chama isto de uma epidemia de condenações injustas, e não está errado, ainda mais se tomarmos o caso que viveu e como os detetives apressaram a investigação para desviar a atenção da imprensa para dentro do departamento.
Cada episódio oferece um ponto de vista ao histórico do caso, que se alongou por cerca de 25 anos, além de proporcionar uma visão ampla e irrestrita à comunidade de Boston e aqueles atores do que chamam de justiça por aquelas bandas.
Lovecraft Country (1ª Temporada)
4.1 404Todos já tiveram a sensação de que deveriam ter gostado mais deste ou daquele filme ou série. Pode ser o tema, o elenco ou as expectativas que muitos fecundam, existe o desejo de dobrar a relação emocional construída àquela que queríamos ter construído. E para ser pior, ainda duvidamos de nós mesmos, como espectadores, do gosto pessoal ou mesmo da empatia.
É o caso de Lovecraft Country que, em premissa, é a série mais interessante de 2020 em como articula, a partir do horror cósmico do autor, comentários raciais e sociais, similar ao que Watchmen realizou ano passado. Só que onde esta havia foco, na produção que tem J. J. Abrams e Jordan Peele, há dispersão, inconstância, insegurança.
É bem verdade que não há muito horror cósmico na minissérie, mas a costura de muitos elementos fantásticos que variam de monstros a portais que abrem fendas no tempo, de trocas de corpo a feitiçaria. Aí reside meu primeiro desconforto com a série: a dificuldade em encontrar qual a melhor linguagem cinematográfica para expressar-se. O terror inicial com raiz temática em Corra! logo cede espaço à aventura ao estilo Os Caçadores da Arca Perdida (juro!) antes de se transformar em De Volta Para o Futuro. Se as inspirações são nada além do que excelentes, a miscigenação de estilos anula o que cada um ofereceria de melhor.
Da mesma forma, a confusão de temas dilui a questão racial em tantos mais: o patriarcado e o papel da mulher (branca ou negra) na sociedade, a homofobia, a relação problemática entre pais e filhos e também irmãs. Até admiro que haja a interlocução destas questões, o que sugere que batalhar contra o racismo é equivalente a brigar contra a discriminação de gênero ou de orientação sexual, é uma questão de humanidade antes de tudo, no entanto a forma com que a narrativa opta em por fazer isto enfraquece cada frente, ao invés de as elevar. Bom exemplo é a metáfora à transsexualidade em personagem que vestem a pele de outros: afinal, qual a posição da narrativa em relação a isto, se considerarmos que esta prática é adotada pela antagonista? Como este elemento é harmonizado com o restante?
Lovecraft Country é análogo ao ambicioso equilibrista de pratos sobre monociclo: embora demonstre agilidade mediante atuações consistentes e a atmosfera atraente, o desejo em aumentar o desafio e abraçar o mundo de temas e gêneros, termina derrubando tudo o que havia construído.