Enquanto pisar na Lua aumentou a moral e o orgulho patriótico da sociedade americana, o desastre do ônus espacial Challenger, em 1986, produziu o efeito contrário de mergulhar, em estado depressivo, esta mesma sociedade, ainda mais diante de um evento catastrófico que era facilmente evitável.
A minissérie em 4 episódios não apresenta qualquer informação que não seria de conhecimento público, com uma estrutura linear da exaltação e entusiasmo à tragédia e inquirição dos responsáveis pela omissão. Os elementos que a elevam além do documentário apenas informativo são a participação de pessoas emocionalmente vinculadas à tragédia (os familiares e também os funcionários da Nasa) e, sobretudo, as entrevistas com aqueles cuja assinatura serviu para referendar o desastre em nome somente de dinheiro.
Era uma oportunidade ímpar para que os responsáveis pudessem olhar ao passado e arrependerem-se, mas, como o documentário demonstrará, esta hombridade também falta em quem só enxerga métricas e resultados. Não vidas.
Um dos princípios do cinema está na forma de narrar a história, mais no que esta propriamente dita. Histórias têm aos montes, muitas repetidas, reencenadas, requentadas, então o determinante no filme não é "o quê", mas "como". Entretanto, tem histórias iguais a de The Act que poderiam, parece, respirar sozinhas, pois o desenrolar dos acontecimentos basta a que o espectador permaneça hipnotizado.
É óbvio que ajuda (MUITO) estar diante uma narrativa consistente e que entende a ideia de unidade de cada episódio, até vir o próximo e subverter as verdades que tínhamos. Assim, em face de eventos que, se fossem obra de ficção, ninguém acreditaria e criticaria o roteirista por ser inverossímil ou fantasioso, a minissérie opta em contrastar as cores infantis e a atmosfera de pelúcia com uma iluminação sombria. É porque Gypsy é também, na superfície, infantil, apesar de reservar da mãe, Dee Dee, segredos que deflagarão em algo monstruoso.
Joey King, hábil em encarnar a ingenuidade de Gypsy, bate de frente com a debilitada e exausta interpretação de Patricia Arquette, cuja vulnerabilidade começa a estar evidente à medida que os episódios avançam para expor também uma ideia de maternidade arruinada a partir de uma experiência traumatizante. Enquanto isto, tomamos a posição de Lacey, a testemunha da encenação de mentiras que é a vida de mãe e filha e retrato fiel do olhar do espectador enquanto navega pela série de queixo aberto a cada revelação.
É uma crítica aguda a esta sociedade de aparências, de trambiques, de aparências falseadas e de como há limites que a pessoa humana jamais deveria ultrapassar, antes de ser tarde demais para acordar e viver um sonho de conto de fadas.
É fascinante este poder que um mistério tem de sequestrar a atenção do espectador, e não existe melhor exemplo do que o desejo de responder a pergunta: "quem matou?", o "whodunit?". Então é apenas natural que a minissérie dirigida por Susanna Bier e escrita por David R. Kelley (de "Big Little Lies") tenha colocado o espectador de joelho, pois ao final de cada episódio, deixava um gancho para a continuação e interrogação sobre a cabeça do espectador.
Contudo, por melhor que seja o desenvolvimento, não há mistério que sobreviva a finais apáticos iguais ao desta minissérie. Não entrarei em detalhes, pode prosseguir a leitura, mas se Susanna Bier enfatizava a existência de pistas que poderiam sugerir isto ou aquilo ou inocentar este ou aquele, e digo isto porque a diretora realmente esforçava-se em semear uma dúvida razoável sempre que possível, satisfaz-se com um fim genérico, apressado, dependente de flashbacks e confissões expositivas para isto.
É decepcionante que uma minissérie construída tão bem em torno da atuação esquiva e misteriosa de Hugh Grant - um acerto de escalação pois o ator, igual ao seu personagem, o Dr. Frazer, é hábil em enfeitiçar o espectador com charme e bom humor - tenha na atuação frustrante de Nicole Kidman um outro ponto fraco. Não é demérito exclusivo de Nicole, até porque Grace é mal resolvida pelo roteiro, que ora enfatiza a fragilidade da esposa presa na teia do marido e incapaz de enxergar a ilusão da sua vida, ora apela a uma força recém descoberta contra a polícia, o pai controlador ou mesmo o marido. Ela alterna no balanço emocional da narrativa não porque a construção da personagem exige isto dela, mas porque o roteiro precisa da alternância para funcionar.
Não é que a resposta da pergunta inicial desaponte, é como a direção aumenta as apostas para ser frustrante ao chegarmos na conclusão. E não é que Nicole Kidman não seja apta a enlaçar esta personagem, só que o roteiro a torna dependente da construção errática e inconstante a ponto de não enxergarmos mais uma mulher, mas um instrumento narrativo para que a trama seja levada do início ao fim.
Antes de chegarmos na conclusão, já teremos perdido as unhas dos dedos, e depois, diante do final pálido, nos perguntaremos: por que fiz isto?.
Não faltam atributos para fãs de Star Wars e recém-iniciados admirarem The Mandalorian e limparem o gosto amargo que porventura possa ter ficado na mais recente trilogia: onde havia excesso de personagens e subtramas, há objetividade em narrar uma trama simples de maneira envolvente. Mando precisa só devolver a Criança aos Jedis. Não é a premissa, mas a jornada que importa, uma que aproxima ambos ao ponto de o primeiro abrir mão do que acredita para garantir o sucesso da missão.
Se a estrutura episódica era um ponto que me desagradava na temporada anterior, agora é a forma da narrativa, em que capítulos viram mini-missões, introduzem ou reapresentam personagens e levam a trama um passo adiante ao confronto iminente. Cada episódio tem a marca registrada do criador, Jon Favreau, com elementos do gênero faroeste adaptados à ópera espacial, além de trazerem decisões de estilo individualmente enriquecedoras de quem assume o comando de cada episódio.
Enquanto banquete aos fãs de Star Wars, a série é irrepreensível, ainda mais ao convocar personagens específicos para participações maiores ou menores. Contudo, é difícil ignorar a incoerência que a série causa dentro do cânone clássico ao ressuscitar quem dávamos como morto - tendo a desculpa do universo expandido - e a maneira preguiçosa com que resolve cada episódio empregando vícios de roteiro: a figura do deus ex machina, aquele que resgata os heróis da morte certa no instante derradeiro, ou mesmo o extremo talento de Mando em sair de enrascadas aparentemente inescapáveis.
Aí está parte do charme, confesso, mas também decepciona em comparação a episódios em que a resolução é mais coerente com a proposta da série: a de humanizar quem está constantemente desumanizado detrás de uma armadura e limitado a se expressar só pela bravura e honra que norteia suas ações ou ao tornar um animatronic um personagem por quem podemos estabelecer uma relação emocional. Ao cumprir isto muitíssimo bem, a série pode até derrapar às vezes, mas os arranhões são incapazes de diminuir o fascínio técnico (pelos revolucionários efeitos visuais) e narrativo.
Com maior frequência do que em filmes, séries tendem a perder-se no meio do caminho para cumprir uma quantidade de episódios específicos, que hoje, nos streamings, é uma obrigação desnecessária, pois não há grade de programação, nem intervalos comerciais. Felizmente, este não é o caso de Hanna, que, tal como a primeira temporada, caminha a frente com passos decididos e seguros em como contar a história desta super-assassina adolescente.
A temporada reinicia onde a anterior encerrou e reimagina a Ultrax em outra organização, sob o comando de John Carmichael (Dermot Mulroney). Impossível ignorar a semelhança com a trilogia Jason Bourne, embora mais em espírito de homenagem, do que no copiar e colar. Mas enquanto Jason busca o passado, Hanna foge deste em busca da liberdade em recomeçar a construir a própria vida.
Esme Creed-Miles é talentosa em expressar a frieza e desconfiança da personagem, e a cena em que confronta a já aliada Marissa reforça a incapacidade dela em construir laços sólidos. Mas Esme também é hábil em retratar, da forma como é possível, a delicadeza e sensibilidade no reencontro com a igualmente competente Yasmin Monet Prince (que vive Clara).
Gosto de como a temporada pavimenta seus caminhos, e uma provável adversária da 3ª (talvez última) temporada, e mais ainda em como não precisa encontrar subterfúgios para estender-se além do desnecessário, combinando cenas de ação eficientes, construção de personagem e mistério em torno desta organização.
Antes, uma explicação: a rotoscopia é o nome dado à técnica de animação que consiste em desenhar sobre o quadro filmado.
Se não houvesse assistido a experimentos iguais a esta minissérie (Valsa com Bashir ou Alois Nebel), talvez me questionasse se animar a guerra não seria reduzir seu impacto e, assim, mal-representar o sofrimento daquele 157º regimento que combateu mais de 500 dias, ininterruptos, por dentro do continente europeu. Até porque o resultado é oposto, e perpetua na memória a guerra e o heroísmo a partir da eternização do rosto do ator.
Subdividida em 4 episódios, a minissérie atenta àqueles momentos capitais que ilustram o ser humano no conflito. Talvez, os melhores momentos sejam aqueles em que assistimos à hombridade de soldados alemães que reconhecem um ato altruísta, em vez de derrubar tiros sobre Felix Sparks, ou as evidências de que, em menor grau do que os nazistas, o exército americano também cometeu seus crimes no conflito, incapazes de reconhecerem a rendição dos adversários. E tem ainda a exibição de superação das diferenças, a partir de uma ideia comum (já pensaram que louco seria se a humanidade se unisse igual revela a série?).
Talvez o ponto fraco da série seja justo Felix Sparks ser este soldado que, de tão heroico, é também unidimensional. Uma espécie de Capitão América sem superpoderes e mesmo senso de dever e bravura. Ainda assim, uma minissérie recomendável não somente para quem aprecia o gênero de guerra.
A fórmula de The Crown é uma razão plausível por que muitos, inclusive eu, admiravam, mas não amavam a série. Isto porque, se é fácil cair de amores pela parte técnica e pelo design de produção fidedigno de cerca de meio século de história (até agora), é razoável perder o interesse com a introdução de causos monárquicos curiosos, mas descartáveis dentro da construção que é feita dos pilares centrais: Elizabeth, Margaret, Phillip.
Existe o interesse periférico em desnudar a monarquia, que não resultou em uma relação emocional, especialmente pela distância que os problemas da realeza estavam de mim, o plebeu ou comum. Por mais adorável que fosse (é), a série era um programa de fofocas e políticas variadas. Não mais.
Esta temporada é a tempestade dramática perfeita, porque conjuga uma rainha decidida, uma primeira ministra determinada e poderosa e uma princesa apaixonante por ser frágil, mas também forte para entender quando o sonho de "viverem felizes para sempre" vira tormento de um pesadelo. Mesmo os eventos aparentemente banais funcionam dentro da lógica da temporada (os episódios centrados na princesa Margaret e Fagan, símbolo do trabalhador inglês prejudicado pelas políticas de Thatcher). Se se buscava dramaticidade, não falta em um quadro da narrativa.
Tudo elevado por atuações excepcionais: Olivia Colman, que domina a tenacidade de uma mulher confortável como Rainha, Emma Corin, que mimetiza Diana sem perder contato de que uma boa atuação vai além de reproduzir maneirismos e caracterizar-se identicamente, e Gillian Anderson, que tornou antiquado o retrato de Meryl Streep em A Dama de Ferro. E não bastasse este trio, Josh O'Connor enfatiza a tragédia de Charles em não ser livre para amar, nem em ser admirado ou querido, sem jamais perder de vista quão mimado também era o herdeiro da coroa. E ver o ator mimetizar os trejeitos de Tobias Menzies é um prazer ao cinéfilo.
A série agora encontra o coração que faltava às vezes e preenche cada canto do palácio com vida, drama e tragédia.
Tendemos a baixar a guarda com comédias românticas, porque já admitimos que haverá clichês, resoluções fortuitas e maior superficialidade. Também fazemos isto em narrativas natalinas. A lógica é que uma comédia romântica natalina, sem maiores pretensões, tem um dobro de chances de se safar do senso crítico de cada um. E eu, crítico, sempre vejo qual meu papel em analisar produções assim.
Mentiria se não afirmasse que os 8-episódios são como uma brisa refrescante, com cores e brilhos natalinos bastantes para cegar o espectador de que está diante de personagens já vistos, revistos, conhecidos por dentro e por fora. Não existe nada inovador na história história, com uma falta de química inevitável entre Austin Abrams e Midori Francis graças à premissa que os mantém afastados até aproximá-los.
A narrativa também não é diferente, mas tenta aproveitar essa distância para criar ideias de encontros em que Dash e Lily não estão junto, mas a presença deles pode ser sentida. E, embora Dash pareça um chato em como age como um Grinch, ignorante que tem tudo o que precisa ao redor, menos discernimento para perceber isto, pelo menos Lily é amável a ponto de comprarmos a história de Cinderela dela em uma Nova York natalina, vista ene vezes na história do cinema e da televisão e, ainda assim, incansável de ser revista.
É igual a comédias românticas natalinas, portanto, depois da primeira, da segunda, vimos todas e mesmo assim não paramos de ver.
A maturidade deste terror romântico está em como ilustra os sentimentos reprimidos e traumas passados através de fantasmas, que evitam servir a ideia infantil de assustar. Pelo menos não na maneira adotada pelo cinema de sustos baratos. O pavor está em perceber como o ressentimento que mantém vivo um propósito cego é também forte o bastante para despersonalizar e desumanizar quem quer que seja, e assim a força de gravidade (nos termos da narrativa) criada pela dama do lago da mansão Bly simboliza aquela maldição que assola todos na propriedade.
Apesar de adotar um ritmo deliberadamente paciente (ou lento, se preferir) e de esconder seus fantasmas quase como se fossem easter eggs para serem revelados em vídeos do YouTube, A Maldição da Mansão Bly mantém a qualidade do predecessor por privilegiar os personagens aos terrores. É fácil de entender: é mais recompensador sentir o medo de Dani a partir de um contrato de empatia firmado com ela, do que apenas saltar da poltrona à vista do sobrenatural. Se esta reação é baseada no instinto e logo se dissipa, a primeira é permanente, pois baseada na humanidade.
Assim, não faltam dramas convincentes construídos em torno de romances impossíveis relacionados a personagens que ainda não estão prontos a aceitar o inevitável. Se Dani, Hannah ou Viola retardam a chegada do que há de vir, a partir de subterfúgios que serão revelados por um roteiro cuidadoso, é porque existe uma dificuldade do ser humano em aceitar o que desejaria ser diferente, quando na realidade são só bonecos dentro da casa dentro do quarto de Flora.
A atriz-mirim Amelia Bea Smith é um dos achados da narrativa em como combina esta inocência infantil ao desejo de reencontrar os pais, e ciente também do que assombra a ala proibida da Mansão Bly. Sem uma atuação decepcionante e dois episódios finais que são apaixonantes do início ao fim, Mansão Bly é um terror certeiro que toca no coração, não como a montanha russa de emoções, mas de forma singela, delicada e melancólica.
Você não precisa ser gênio detrás das câmeras para gerar tensão, apreensão e emoção em esportes como futebol americano, basquete, boxe. Entretanto, deve existir um talento acima da média a fim de tornar o xadrez, um esporte mais intelectual do que físico, nesta empolgante e atraente minissérie O Gambito da Rainha.
Desde O Sétimo Selo de Ingmar Bergman (tá bom, Márcio, menos!), um jogo de xadrez não servia como metáfora para retratar tão bem o espírito humano. No caso, o tabuleiro é, para Beth, um espaço seguro onde pode exercer domínio contra os adversários, sem estar ameaçada por acasos e traumas da vida ao redor. Se, no mundo real, Beth não tem controle em relação à morte prematura da mãe, à ida ao orfanato, à adoção pela gentil e trágica Alma ou à dependência em medicamentos e álcool, quando disputa uma partida deste esporte dominado por homens, a prodigiosa enxadrista revela ser um espírito em chamas.
O cabelo ruivo sugere este furor, que existe além da compostura e recato dos figurinos elegantes dos anos 60, enquanto a atuação de Anya Taylor-Joy é uma das melhores do ano em como comunica sua dor através do olhar sinuoso e penetrante. Apesar de saber como retratar a faísca de doçura ingênua, Anya está mesmo interessada na componente psicológica de Beth e em como é patologicamente dependente do xadrez. Não é apenas um mecanismo de fuga da realidade ao redor, mas um instrumento de sobrevivência em uma sociedade que já traçou o destino das mulheres em sua idade. É isto que machuca no retrato de Alma, que tentou a todo custo ser esta mulher, até isto lhe ser tirado de si.
Não de Beth! E a série equilibra-se em como ilustra a dependência química e as relações da enxadrista com oponentes, alguns dos quais viram amigos e/ou amantes. É um estudo de personagem completo, muitíssimo bem construído com exceção dos efeitos digitais do avião no ar, em como revela o esporte como meio de lidar com as carências sentimentais e entrar em paz com o passado e consigo mesma.
Quando eu tinha 8 anos de idade, ganhei de presente dos meus irmão um Sega Gênesis. Ali começou uma relação de amor com o videogame, que me levou a ganhar competição, e um Super Nintendo de prêmio, a adquirir jogos de computador durante a faculdade e a adquirir mais aparelhos na idade adulta. Acompanhar esta história neste documentário é como reviver a infância e enxergar que nunca estamos velhos demais para desligar deste mundo e jogar.
A cada episódio, a história do videogame é contada através de uma faceta específica de sua jovem evolução, a partir de personagens que enxergaram o contexto e promoveram uma mudança completa em como nos relacionamos no mundo do entretenimento. E isto com uma linguagem ágil, inteligente e que jamais deixa de ser convidativa para quem só está se familiarizando com este mundo agora.
Para quem, como eu, teve a infância e adolescência contemporânea ao surgimento da expressão artística caçula do mundo, aí o resultado ainda é melhor, pois a nostalgia está de carona com muita informação para adoçar a memória de todas as aventuras que Mário, Sonic e tantos mais puderam nos proporcionar.
Não consigo pensar nesta temporada sem refletir a respeito do aparecimento de Tempesta e por que esta não tentou executar seu plano na temporada inaugural. Esta é uma das lacunas deixadas na linha do tempo do roteiro, além daquelas provocadas por histórias paralelas subaproveitadas e deixadas em banho maria, até serem convenientemente reintroduzidas nos episódios finais para dar a ilusão de que tudo está amarrado.
A sátira à cientologia na forma da igreja da coletividade é um exemplo de peça do roteiro que lá está, e lá permanece, sem que esteja clara qual sua função narrativa, senão a de dar o que fazer a Chace Crawford, criticar o hábito do perdão pelo dinheiro, ou de abrigar temporariamente outro super-herói. O excesso de personagens, e com estes subtramas, é o problema com que a sala de roteiristas da série deve lidar, às vezes sem sucesso.
A tentativa de atribuir histórias de fundo a cada personagem é louvável, e desenvolvê-los permite que mais atores tenham chances de demonstrar seu alcance dramático. Contudo, cobra o preço em matéria de ritmo -- repare em como a introdução de flashbacks no 6º episódio atrapalha a trama no presente, mesmo que as informações exibidas sejam relevantes. E se o tema ainda é roteiro, os Deus ex machinas (igual a Maeve surgindo do nada para salvar todo mundo) e a tentativa de explicar cada piada (a menção de Leitinho da reunião das 3 heroínas) enfraquecem a narrativa, cujo objetivo era ironizar Marvel/DC, embora tome para si alguns de seus vícios.
Mas não o idealismo. Com um pessimismo exibido na fotografia de contraste e sombras mesmo na luz do dia, The Boys compreende como os superpoderes seriam negativos em uma sociedade individualista e desigual. A violência estilizadamente gráfica é a forma de verbalizar a importância em distribuir poderes, não concentrá-los nas mãos de uns poucos, e o fato de a crítica ser contra os Estados Unidos contemporâneo deságua enfim na conjugação de política, dinheiro, imprensa submissa e poder como os mecanismos de opressão do homem comum.
Apesar do roteiro enroscado e da reviravolta problemática diante da mudança biológica de certa personagem ao usar seu poder, a série continua mordaz, irreverente e direta quando precisa ser, sem amenizar os golpes dados na cara, para que paremos de apoiar aquelas mesmas forças que nos oprimem.
Exigir que comédias românticas não tenham clichês é o mesmo que criticar cachorros por abanarem o rabo quando estão felizes. É parte do subgênero a existência de elementos comuns, bem ou mal trabalhados nestes 10 episódios curtos, apoiados muito no carisma de gata borralheira de Lily Collins, com quem as coisas parecem funcionar a base da sorte e bastante otimismo e perseverança.
Ao que a narrativa indica, Emily está mais impressionada com os arredores parisienses, em flertar com o vizinho de baixo (comprometido, evidente) ou em conhecer restaurantes e bistrôs da moda, não a culpo, do que em injetar americanidade a empresa de marketing Savoir. Mesmo assim, após dedicar o mínimo a perceber composições fotográficas, tirar a foto e adicionar alguma hashtag engraçada, Emily alcança o status de nano influenciadora e ainda ajuda a empresa a sair do marasmo, embora não tenha o reconhecimento de sua chefe, a versão mais acessível de Miranda Priestly (de O Diabo Veste Prada).
Se não podemos reclamar da comédia romântica por ser como é, devemos torcer o nariz (bem francês, eu) em assistir a americanos agir como americanos: em vez de enxergar o francês por saber trabalhar e apreciar a vida, resta deboche pelo aparente descaso dentro do mundo trabalhista e maniqueísmo no quê significa saber viver (o savoir-vivre): ser bom de cama, beber e comer bem. Se eu incomodo-me com este olhar estereotipado, não tiro a razão do francês em repreender a série.
Ah, os figurinos... sim, são muito bonitos, mas a beleza está a serviço da beleza, e não de contar a história. Não me parece haver propósito narrativo nos figurinos dos personagens, senão reforçar a ideia (estereotipada, repito) desta chiqueza francesa. Resta Lily Collins, a mais Audrey Hepburn de hoje em dia, conferir vitalidade a esta série que é igual a vermos Paris de porta-retratos. E não vivê-la.
Cinema e literatura são experiências diferentes, e repito pela enésima vez: não é possível julgar os méritos de uma arte em comparação com a outra. Depois de tirar isto do peito, a série criada por Raphael Montes, que é também co-autor do livro adaptado, trata de temas oportunos (violência contra a mulher, corporativismo e corrupção) nesta São Paulo ingrata e cancerígena em que cores vibrantes aparecem com muita raridade no fundo cinza.
É o ambiente certo para desenvolver uma trama macabra de um gênero tipicamente norte-americano, o thriller policial de assassino em série que encontra em Eduardo Moscovis um avatar assustador por ser mais real do que gostaríamos de pensar. As atitudes do Tenente Brandão são calculadas pelo ator em como expressa a manifestação da violência, fruto de traumas infantis, e também a aparência de afeto com que se aproxima de Janete, no papel comovente de Camila Morgado.
A atriz evidencia que não existe idade nem contexto para ser manipulada emocionalmente por quem finge amá-la, e por detrás dos olhos melancólicos somente enxergamos os altos e baixos na tentativa de desvencilhar-se desta rotina aterrorizante. O casamento abusivo e a trajetória de Janete conferem o elemento emocional à importante investigação solitária da escrivã Verônica, em uma performance de Tainá Müller que namora e até se aproxima do retrato estrelado por Noomi Rapace como Lisbeth Salander, de Os Homens que Não Amavam as Mulheres.
Como Alice entrando na toca do coelho, Verônica é conduzida a este mundo em que não há maravilhas, só tristeza e sofrimento, neste série urbana e contemporânea tomada com um ritmo exaustivo por ser intenso e um final real demais.
Não existe justificativa para explorar as raízes do psicológico de vilões que mais amamos, pois aquilo que os torna ameaçadores, perigosos e imprevisíveis é exatamente o fato de não conhecermos quem são, apesar de enxergar as consequências de seus atos. A mais nova vítima deste falta de criatividade é a Enfermeira Mildred Ratched, a antagonista do clássico Um Estranho no Ninho.
Sarah Paulson é competente em encontrar uma motivação racional na personagem cujo distúrbio psicológico parece evidente ao simpatizar com Charlotte Wells, acometida por um transtorno dissociativo de personalidade. É como se houvesse duas Ratched em uma: a ingênua antes de ser contaminada pela violência sofrida na infância e outra que está disposta a sacrificar quem quer que seja para alcançar o que almejada. E Sarah é feliz em encontrar o meio-termo satisfatório que não provoque repulsa mas ainda conserve aflição.
É a narrativa que falha à personagem: Ryan Murphy investe na estilização expressiva dos cenários e figurinos, mesmo que esta qualidade visual não esteja na mesma página com a temática encenada. É como se Ryan tentasse ofuscar a doença psíquica com uma beleza indiscutível, mas que terminasse por encher a produção de personagens maniqueístas ou unidimensionais a serviço não da substância, mas do estilo.
O detetive noir interpretado por Corey Stoll, a femme fatale vingativa de Sharon Stone e seu filho psicótico de Bradon Flynn, o político inescrupuloso de Vincent D'Onofrio e até a paciente interpretada por Sophie Okonedo, nenhum destes acrescenta algo determinante à narrativa ou à personagem principal, mas apenas capitaneiam subtramas descartáveis em que fica evidente o óbvio: Ratched está disposta a tudo por seu irmão.
Enquanto isto, a narrativa coleciona buracos significativos, sobretudo na suspensão de descrença em achar que Ratched em hábil em manipular alma viva a fazer o que deseja, sem recompensar o espectador. O bom e velho estilo que não salva a falta de conteúdo.
Durante muito tempo, o cinema tentou martelar como única representação possível feminina a mulher virtuosa que deveria restaurar, contra as forças do retrocesso, a igualdade, o respeito e o direito de ser feliz. O oposto era exceção, estabelecida em contornos negativos. Vieram, para citar as mais recentes, Maravilhosa Sra. Maisel e Fleabag e expuseram que não existe um monopólio de traços de personalidade aos homens. E Katherine Ryan leva isto adiante, desafiando o espectador a seguir esta jornada com uma protagonista imatura ou mesmo desagradável.
Não que Katherine deseje que concordemos com as decisões desastradas tomadas por sua personagem, mas que aceitemos que ela também tem direito de agir errado e quem sabe aprender pílulas de amadurecimento tardio. E a narrativa, por mais curta que seja, abranda a personalidade auto-sabotadora de Katherine com reflexões e pílulas de doçura, em um mero ato de cortar o cabelo.
Ah, Katherine pode incomodar por não ser o melhor modelo comportamental para sua filha. Será mesmo? Muitos dos erros da protagonista decorrem, justo, por compreender onde começa e termina seu corpo. Ela pode não ser sincera com os outros - Evan, por exemplo -, mas é consigo ou tenta ser, já que seus erros são frutos não de uma cabeça maldosa, apenas de uma que ainda não aprendeu a acertar mais do que errar.
Assim como Fleabag, embora não dê pra comprar a forma de humor de Katherine e Phoebe Waller-Bridge, a série apóia-se em 6 episódios curtos e que privilegiam não verossimilhança extrema, tão somente o bom humor com um verniz reflexivo a fim de iluminar o caminho para infinitas representações femininas do cinema. E não somos obrigados a gostar de todas, mas temos o dever de reconhecer seu direito de existir.
É reconfortante saber que existem filmes ou séries de gênero que, enquanto resgatam convenções de antigamente, articulam a linguagem a fim de salientar e contextualizar temas contemporâneos dentro da narrativa histórica. Perry Mason poderia ser, muito bem, só mais um tipo soturno de detetive, com sequelas da 1ª guerra mundial dentro do cenário econômico da grande depressão de 1929. Se fosse isto, já estaria ótimo, inclusive.
Entretanto, a série e o personagem-título são mais. Não apenas a reconstituição de época e do gênero policial estão em sintonia com o que esperamos deles, mas a temática é bem pertinente e ilustrativa de como a sociedade evolui a passos de tartaruga. Basta perceber como funciona a dinâmica do poder para enxergar o hoje no ontem: o policial negro vítima do racismo da organização, a mulher homossexual que deve esconder o relacionamento, a relação promíscua entre dinheiro e igreja e como isto serve de pano de fundo a eventos.
Matthew Rhys, Juliet Rylance e John Lithgow estão em estado de graça em papéis que foram feitos para cada um deles, com contornos e oportunidades para exercitarem seus músculos de atuação enquanto rebatem o tema da narrativa: a busca da verdade para efetivar a justiça e a redenção do mal pelo bem, na amarelada década de 30 de muitas incertezas para cada personagem.
Não existe economia gráfica, e duas ou três cenas podem parecer perturbadoras demais, e o roteiro não despreza a capacidade do espectador de entender mesmo se algo não for exposto e explicitado. Parece haver pontas, mas estas, na realidade, foram costuradas fora de campo, sem que as víssemos, deixando o espectador como detetive na busca do que a narrativa, raramente irregular, lhe proporciona como consequência.
Até saberemos qual a verdade e teremos senso de conclusão, apesar de a justiça, como no mundo real, não ser exercida como esperávamos. É um dos méritos de ter um policial cínico e pragmático igual a Perry Mason como guia pelo ontem, mas que parece um tico com o hoje.
A ideia de ‘filme legado’ veio-me à cabeça várias vezes, enquanto assistia a esta minissérie documental revisionista do subgênero de crimes reais. Legado de Michelle McNamara, que, assim como muitos de nós (eu, inclusive), era fascinada por mistérios não solucionados e dedicou a vida a descobrir a identidade de um assassino e estuprador em série. Legado do criminoso, em particular em como o toque de violência machucou as sobreviventes. Legado da literatura, da palavra escrita, presa ao aconchego e segurança da cabeça antes de nascer, não sem dor, em direção à luz do dia.
A obra é melancólica, por ser bastante pessoal na exploração do histórico familiar de Michelle e de onde surgiu o fascínio pelo tipo de conteúdo. Seu relacionamento com o ator cômico Patton Oswalt é tema de incentivos carinhosos e da responsabilidade que deveria nortear as tarefas comuns de todo casal. Ele próprio, humildemente, dá um passo além do holofote ciente de que a obra não é sobre si, mas Michelle, bem construída como personagem e também autora.
Este enfoque não reduz a qualidade da minissérie que, habilmente, satisfaz os fãs do subgênero e proporciona uma investigação minuciosa, articulada em múltiplas linhas temporais que não chegam a serem confusas embora exijam a atenção do espectador. Além disto, há repercussões a respeito da investigação negligente ou, no mínimo, desleixada, e de como o sistema policial americano pena com a incomunicabilidade entre delegacias.
Quem sabe, se a polícia houvesse agido com zelo, Michelle não precisaria mergulhar de cabeça até encontrar, nas sombras dos crimes, muitos fantasmas, já existentes na família, e que a perseguiriam. O “se” é uma incógnita que não paramos de deixar de pensar, mas que deságua no legado. Um de determinação e entrega de uma mulher que pôs tudo a risca para lançar luz na escuridão. A verdade é a virtude de Michelle McNamara e desta minissérie imperdível.
Meu primeiro contato com Michaela Coel ocorreu em Black Earth Rising. Era uma atuação competente, mas protocolar. Diferentemente, nesta série, a atriz está mais intensa por ser pessoal o tema: Michaela, que rima com Anabella, também fora vítima de violência sexual e emprega a série como tratamento terapêutico, igual faz sua personagem na série.
A metalinguagem é o sangue que corre nas veias da autoanálise feita por Michaela: Sou culpada do meu estupro? Minhas ações resultaram em crime contra mim? Devo perdoar, confrontar ou esquecer o agressor? Michaela deixa o espírito guiar as decisões tomadas dentro do roteiro, e pretende responder estas questões com mais perguntas, tornando os conflitos de Arabella os mais tridimensionais e as consequências do abuso, idem.
A cada episódio, mais peças do quebra-peças são apresentadas, e não digo somente qual a identidade do agressor (é o menos relevante no contexto da série), mas como Arabella é capaz de encarar passado e presente para chegar no catártico e poético episódio final, em que a escritora não encontra as respostas fáceis buscadas. Somente um ponto de partida, muito além dos segredos escondidos debaixo da cama.
O quebra-cabeças formado não tem uma imagem clara, não por incompetência da trama, mas porque os melhores personagens não são estáticos, mas dinâmicos, e tanto mudam quanto mais encaram a própria imagem no espelho. Arabella, e também Terry e Kwame, agem desta maneira na Londres multifacetada e acinzentada, cujas cores foram trazidas por um trio que entende a complexa dimensão social do que enfrentam dia a dia.
É um convite ao mundo real, que subverte a comédia de situação, substituindo a comédia por quilos de empatia e representatividade, de autoconhecimento e um banho de água fria do mundo real.
Finais são arriscados. Finais de séries, mais ainda. Desde que comecei a escrever sobre séries, analisar temporadas finais exigem responder a pergunta básica: o fim significou o investimento emocional naquele núcleo de personagens e na trama apresentada? E, bem, a resposta da primeira série nacional da Netflix é felizmente sim.
Mais otimista do que imaginaríamos, 3% abriu espaço para Joana assumir o protagonismo no lugar de Michele: a decisão é corajosa, mas compreensível. O drama de Michele contra o irmão, André, por mais que funcione como espinha dorsal de sustentação da temporada é menos relevante, tematicamente, do que a jornada niilista de Joana, até a redescoberta de um amanhã, e sendo mulher, negra e homossexual, a personagem ainda representa os grupos minoritários hoje e sempre relegados ao segundo planos pela elite que o Maralto simboliza.
É verdade que o roteiro é, e sempre foi, o calcanhar de Aquiles, aqui chegando ao cúmulo de rebatizar os grupos como superiores e inferiores, como se a metáfora não fosse óbvia o bastante e precisasse ser expressa literalmente. E não tem como não se incomodar com a sequência, zero spoilers, em que o envolvimento emocional do público é posto à prova em uma pseudo-reviravolta que faz muito mal à narrativa, pois não estava ancorada em algo concreto.
Por outro lado, não há dúvidas de que a série criada por Pedro Aguilera tenha atingido a jugular na crítica contra a desigualdade social e o fato de poucos serem felizes enquanto pisam na cabeças de muitos. A isto, a conivência religiosa que elege seus falsos ídolos e aliena o povo, mais propenso a defender seus opressores do que unir-se contra estes. É, no final das contas, sobre isto a série: união.
Se quisermos mudanças, precisamos unir os diferentes em torno de um objetivo comum, e Joana, construída e desenvolvida com dedicação por Vaneza, é o símbolo do Continente - e deste Brasil. Juntos, somos mais fortes. Separados, bem, não somos nada.
Pode ser o jejum forçado de produções de super-heróis, mas esta 2ª temporada despertou um interesse em mim, cada vez mais raro, em começar a assisti-la o quanto antes. Porém, medida que os episódios passavam, estava cada vez mais difícil manter o ritmo, não por baixos valores de produção (aliás, que série bem feita, uou!), nem de interesse em saber como os paradoxos temporais iam ser desfeitos. Apenas porque não houve construção de nada entre os dois primeiros e últimos episódios que justificassem o tempo investido.
Com o roteiro sem razão aparente para introduzir personagens adicionais, senão abrir um parênteses e explicar que seus super-heróis podem ser normais caso não estejam um em contato com o outro e depois descartá-los, a 2ª temporada perde o frescor de originalidade da família desfuncional. Tenta compensar com a construção da década de 60, perdendo (e feio) em comparação com a recente Watchmen.
Na realidade, não apenas problemático em mal desenvolver trama e personagens, o texto também arranha uma subtrama estilo Fênix Negra para resolver-se no deus ex machina (e que aqui poderia ser öga för öga ex machina - entendidos entenderão), tentando resgatar algo novo com o gancho deixado no final.
Sim, estamos tão fascinados com paradoxos temporais que basta balançar um diante de nós que iremos mordê-lo com força! Enquanto isto, o elenco, mais consistente do que na temporada passada, até esforça-se, mas não tem como escapar das conveniências de um roteiro tão conveniente quanto 1.000 pessoas disparando metralhadoras e não acertando ninguém.
É divertido? Com certeza, embora de modo não produtivo, como se estivesse dando volta em torno de si mesma. As canções introduzidas na trilha sonora aceleram o ritmo, bem ao tipo Guardiões da Galáxia, mas ao fim, estamos diante de uma narrativa inconsequente e inofensiva e menos do que a soma de suas partes.
Sejam imigrantes ou refugiados, o êxodo dos povos é uma das grandes questões destas décadas iniciadas do século. Mais do que somente aspecto relacionado à soberania das nações, é também questão de dignidade e humanidade que olhemos para quem foge de seus lares e entendamos por que fazem isto, arriscando muitas vezes a própria vida e o futuro em busca do que parece ser melhor para si e os seus.
Que os Estados Unidos, sob o governo de Donald Trump, tenham hostilizado homens e mulheres que já sofrem diuturnamente com preconceito dentro da sociedade, é de uma maldade sem igual, especialmente considerada a raiz do povo americano nos imigrantes ingleses e irlandeses.
Com um equilíbrio irrepreensível entre objetividade e subjetividade, os diretores Christina Clusiau e Shaul Schwarz apresentam a questão imigratória norte-americana a partir de múltiplas dimensões: da atuação da ICE em, literalmente, caçar aqueles ilegais em solo norte-americano, aos tribunais administrativos que somente carimbam as deportações. A dupla também aborda o procedimento "legal", mas dificultoso de conseguir asilo no país e penetrar em questões paralelas, como a exploração do trabalho do imigrante, incapaz até de defender-se num tribunal para reaver o salário de seu esforço, ou o ato de o governo virar as costas àqueles imigrantes que combateram nas guerras em nome do país.
Podemos enxergar muito, enquanto próximos da dimensão humana, pois os diretores conseguem não apenas estar ao lado daqueles injustiçados, ou não, mas também de quem trabalha na ICE e nos demais departamento de imigração do governo americano. Não tive como conter-me ao término do 3º e 5º episódios, pois o drama retratado era doído demais e retratado com delicadeza pela câmera, que permanece perto, embora não aparente ser intrometida.
Para entender o impacto de qualquer transação, lícita ou não, a regra número um é: siga o dinheiro. É isto que a ex-agente da CIA Amaryllis Fox realiza nesta minissérie documental cuja qualidade é ser racional e objetiva quando o assunto é tráfico de drogas. Sem termos a percepção de mocinhos ou bandidos, entendemos o sistema econômico que possibilita o mercado e, mais importante, como os governos poderiam combatê-lo, caso desejassem.
A apresentadora é eficiente em trazer ao primeiro plano os pontos-chave do tráfico, quem são as pessoas, físicas ou jurídicas, que desempenham papel naquele jogo, onde estão e ainda é empática o bastante para colecionar depoimentos reveladores de quem opera no tráfico, não por ter sonhado em ser gângster, mas porque não há outro meio para vencer a pobreza nem incentivo governamental para tanto.
Com exceção da Big Pharma, apelido das corporações farmacêuticas norte-americanas que dominam o mercado mundial de drogas legalizadas, quem atua no tráfico de drogas, na ponta, são pessoas que apenas querem por comida na mesa da família: os coletores das folhas de coca ou os revendedores de heroína no Quênia. Incapazes de enxergar o problema na dimensão pandêmica e desestruturante, estes sujeitos são engrenagens e, pior, facilmente substituíveis caso apresentem "defeitos".
Assim, a minissérie é tanto objetiva em evidenciar a dinâmica econômica do mercado das drogas, quanto também humana em evitar responsabilizar quem quer que seja, inclusive o dependente, retirando o estigma onde teimamos colocar. Além disto, ainda é uma aula de qualidade sobre os efeitos fisiológicos da cocaína, maconha, oxicodona, heroína, MDMA e meta-anfetamina, posando a pergunta essencial: será se está na hora de discutirmos com fatos e argumentos a descriminalização e regulamentação das drogas para desestruturar o mercado clandestino?
Se você for assistir a Normal People esperando O Diário de uma Paixão, é melhor ir se acostumando com Namorados Para Sempre. Usando a melancolia como a engrenagem que movimenta o romance entre Marianne e Connell, é compreensível entender por que estes dois, mesmo apaixonados e vivendo este amor longe dos olhares, permaneceram tentando viver uma ilusão que apenas os corrói.
Do ensino médio à faculdade e mesmo após, Marianne e Connell nascem inesquecíveis, pois, tão machucados, sequer conseguem transformar o amor numa espécie de band-aid que ajudaria a cicatrizar os cortes da vida. Ela, abusada fisicamente pelo pai (embora eu também desconfie que sexualmente, já que o "Não" que diz a Connell soa como desculpa para si mesma), passou a enxergar-se como um utensílio para a felicidade alheia. Alguém que não se importa em fazer o que os outros queiram para fazê-los felizes, ignorando sua própria felicidade. Assim, a dor passa a ser a forma que encontra para sentir algo em sua vida vazia. E Daisy Edgar Jones ilustra isto numa atuação minimalista tal como o mosaico indecifrável que é.
Já Connell, o protagonista da narrativa, atravessa as muitas etapas da vida como se fosse um passageiro, mesmo acumulando amigos e pessoas que o amam. A tristeza, a princípio é inexplicada, embora possamos enxergar as sutis raízes da depressão entranhadas. A inércia e inação de Connell até irritam quando sua consequência transborda em Marianne, mas logo percebemos que existe muito mais além do personagem tão bem construído por Paul Mescal, numa daquelas atuações que criam estrelas.
Daisy e Paul brilham em conjunto e separadamente, em cenas que ressaltam os esforços de jovens adultos em tentarem ser aceitos e aceitarem-se como são no mundo que rejeita aqueles que não se enquadram perfeitamente em seu gabarito. O amor deles emociona pois é autêntico: na paixão retratada quando estão juntos - as cenas de sexo ajudam em reforçar esta união até a carne - e no vazio deixado no peito quando a paixão é frustrada. É pra assistir com lenço do lado, sentindo o calor da lágrima enquanto deixa o coração.
Challenger: Voo Final
4.2 27 Assista AgoraEnquanto pisar na Lua aumentou a moral e o orgulho patriótico da sociedade americana, o desastre do ônus espacial Challenger, em 1986, produziu o efeito contrário de mergulhar, em estado depressivo, esta mesma sociedade, ainda mais diante de um evento catastrófico que era facilmente evitável.
A minissérie em 4 episódios não apresenta qualquer informação que não seria de conhecimento público, com uma estrutura linear da exaltação e entusiasmo à tragédia e inquirição dos responsáveis pela omissão. Os elementos que a elevam além do documentário apenas informativo são a participação de pessoas emocionalmente vinculadas à tragédia (os familiares e também os funcionários da Nasa) e, sobretudo, as entrevistas com aqueles cuja assinatura serviu para referendar o desastre em nome somente de dinheiro.
Era uma oportunidade ímpar para que os responsáveis pudessem olhar ao passado e arrependerem-se, mas, como o documentário demonstrará, esta hombridade também falta em quem só enxerga métricas e resultados. Não vidas.
The Act
4.3 392Um dos princípios do cinema está na forma de narrar a história, mais no que esta propriamente dita. Histórias têm aos montes, muitas repetidas, reencenadas, requentadas, então o determinante no filme não é "o quê", mas "como". Entretanto, tem histórias iguais a de The Act que poderiam, parece, respirar sozinhas, pois o desenrolar dos acontecimentos basta a que o espectador permaneça hipnotizado.
É óbvio que ajuda (MUITO) estar diante uma narrativa consistente e que entende a ideia de unidade de cada episódio, até vir o próximo e subverter as verdades que tínhamos. Assim, em face de eventos que, se fossem obra de ficção, ninguém acreditaria e criticaria o roteirista por ser inverossímil ou fantasioso, a minissérie opta em contrastar as cores infantis e a atmosfera de pelúcia com uma iluminação sombria. É porque Gypsy é também, na superfície, infantil, apesar de reservar da mãe, Dee Dee, segredos que deflagarão em algo monstruoso.
Joey King, hábil em encarnar a ingenuidade de Gypsy, bate de frente com a debilitada e exausta interpretação de Patricia Arquette, cuja vulnerabilidade começa a estar evidente à medida que os episódios avançam para expor também uma ideia de maternidade arruinada a partir de uma experiência traumatizante. Enquanto isto, tomamos a posição de Lacey, a testemunha da encenação de mentiras que é a vida de mãe e filha e retrato fiel do olhar do espectador enquanto navega pela série de queixo aberto a cada revelação.
É uma crítica aguda a esta sociedade de aparências, de trambiques, de aparências falseadas e de como há limites que a pessoa humana jamais deveria ultrapassar, antes de ser tarde demais para acordar e viver um sonho de conto de fadas.
The Undoing
3.7 254 Assista AgoraÉ fascinante este poder que um mistério tem de sequestrar a atenção do espectador, e não existe melhor exemplo do que o desejo de responder a pergunta: "quem matou?", o "whodunit?". Então é apenas natural que a minissérie dirigida por Susanna Bier e escrita por David R. Kelley (de "Big Little Lies") tenha colocado o espectador de joelho, pois ao final de cada episódio, deixava um gancho para a continuação e interrogação sobre a cabeça do espectador.
Contudo, por melhor que seja o desenvolvimento, não há mistério que sobreviva a finais apáticos iguais ao desta minissérie. Não entrarei em detalhes, pode prosseguir a leitura, mas se Susanna Bier enfatizava a existência de pistas que poderiam sugerir isto ou aquilo ou inocentar este ou aquele, e digo isto porque a diretora realmente esforçava-se em semear uma dúvida razoável sempre que possível, satisfaz-se com um fim genérico, apressado, dependente de flashbacks e confissões expositivas para isto.
É decepcionante que uma minissérie construída tão bem em torno da atuação esquiva e misteriosa de Hugh Grant - um acerto de escalação pois o ator, igual ao seu personagem, o Dr. Frazer, é hábil em enfeitiçar o espectador com charme e bom humor - tenha na atuação frustrante de Nicole Kidman um outro ponto fraco. Não é demérito exclusivo de Nicole, até porque Grace é mal resolvida pelo roteiro, que ora enfatiza a fragilidade da esposa presa na teia do marido e incapaz de enxergar a ilusão da sua vida, ora apela a uma força recém descoberta contra a polícia, o pai controlador ou mesmo o marido. Ela alterna no balanço emocional da narrativa não porque a construção da personagem exige isto dela, mas porque o roteiro precisa da alternância para funcionar.
Não é que a resposta da pergunta inicial desaponte, é como a direção aumenta as apostas para ser frustrante ao chegarmos na conclusão. E não é que Nicole Kidman não seja apta a enlaçar esta personagem, só que o roteiro a torna dependente da construção errática e inconstante a ponto de não enxergarmos mais uma mulher, mas um instrumento narrativo para que a trama seja levada do início ao fim.
Antes de chegarmos na conclusão, já teremos perdido as unhas dos dedos, e depois, diante do final pálido, nos perguntaremos: por que fiz isto?.
O Mandaloriano: Star Wars (2ª Temporada)
4.5 445 Assista AgoraNão faltam atributos para fãs de Star Wars e recém-iniciados admirarem The Mandalorian e limparem o gosto amargo que porventura possa ter ficado na mais recente trilogia: onde havia excesso de personagens e subtramas, há objetividade em narrar uma trama simples de maneira envolvente. Mando precisa só devolver a Criança aos Jedis. Não é a premissa, mas a jornada que importa, uma que aproxima ambos ao ponto de o primeiro abrir mão do que acredita para garantir o sucesso da missão.
Se a estrutura episódica era um ponto que me desagradava na temporada anterior, agora é a forma da narrativa, em que capítulos viram mini-missões, introduzem ou reapresentam personagens e levam a trama um passo adiante ao confronto iminente. Cada episódio tem a marca registrada do criador, Jon Favreau, com elementos do gênero faroeste adaptados à ópera espacial, além de trazerem decisões de estilo individualmente enriquecedoras de quem assume o comando de cada episódio.
Enquanto banquete aos fãs de Star Wars, a série é irrepreensível, ainda mais ao convocar personagens específicos para participações maiores ou menores. Contudo, é difícil ignorar a incoerência que a série causa dentro do cânone clássico ao ressuscitar quem dávamos como morto - tendo a desculpa do universo expandido - e a maneira preguiçosa com que resolve cada episódio empregando vícios de roteiro: a figura do deus ex machina, aquele que resgata os heróis da morte certa no instante derradeiro, ou mesmo o extremo talento de Mando em sair de enrascadas aparentemente inescapáveis.
Aí está parte do charme, confesso, mas também decepciona em comparação a episódios em que a resolução é mais coerente com a proposta da série: a de humanizar quem está constantemente desumanizado detrás de uma armadura e limitado a se expressar só pela bravura e honra que norteia suas ações ou ao tornar um animatronic um personagem por quem podemos estabelecer uma relação emocional. Ao cumprir isto muitíssimo bem, a série pode até derrapar às vezes, mas os arranhões são incapazes de diminuir o fascínio técnico (pelos revolucionários efeitos visuais) e narrativo.
Hanna (2ª Temporada)
3.7 39 Assista AgoraCom maior frequência do que em filmes, séries tendem a perder-se no meio do caminho para cumprir uma quantidade de episódios específicos, que hoje, nos streamings, é uma obrigação desnecessária, pois não há grade de programação, nem intervalos comerciais. Felizmente, este não é o caso de Hanna, que, tal como a primeira temporada, caminha a frente com passos decididos e seguros em como contar a história desta super-assassina adolescente.
A temporada reinicia onde a anterior encerrou e reimagina a Ultrax em outra organização, sob o comando de John Carmichael (Dermot Mulroney). Impossível ignorar a semelhança com a trilogia Jason Bourne, embora mais em espírito de homenagem, do que no copiar e colar. Mas enquanto Jason busca o passado, Hanna foge deste em busca da liberdade em recomeçar a construir a própria vida.
Esme Creed-Miles é talentosa em expressar a frieza e desconfiança da personagem, e a cena em que confronta a já aliada Marissa reforça a incapacidade dela em construir laços sólidos. Mas Esme também é hábil em retratar, da forma como é possível, a delicadeza e sensibilidade no reencontro com a igualmente competente Yasmin Monet Prince (que vive Clara).
Gosto de como a temporada pavimenta seus caminhos, e uma provável adversária da 3ª (talvez última) temporada, e mais ainda em como não precisa encontrar subterfúgios para estender-se além do desnecessário, combinando cenas de ação eficientes, construção de personagem e mistério em torno desta organização.
The Liberator (1ª Temporada)
4.1 26 Assista AgoraAntes, uma explicação: a rotoscopia é o nome dado à técnica de animação que consiste em desenhar sobre o quadro filmado.
Se não houvesse assistido a experimentos iguais a esta minissérie (Valsa com Bashir ou Alois Nebel), talvez me questionasse se animar a guerra não seria reduzir seu impacto e, assim, mal-representar o sofrimento daquele 157º regimento que combateu mais de 500 dias, ininterruptos, por dentro do continente europeu. Até porque o resultado é oposto, e perpetua na memória a guerra e o heroísmo a partir da eternização do rosto do ator.
Subdividida em 4 episódios, a minissérie atenta àqueles momentos capitais que ilustram o ser humano no conflito. Talvez, os melhores momentos sejam aqueles em que assistimos à hombridade de soldados alemães que reconhecem um ato altruísta, em vez de derrubar tiros sobre Felix Sparks, ou as evidências de que, em menor grau do que os nazistas, o exército americano também cometeu seus crimes no conflito, incapazes de reconhecerem a rendição dos adversários. E tem ainda a exibição de superação das diferenças, a partir de uma ideia comum (já pensaram que louco seria se a humanidade se unisse igual revela a série?).
Talvez o ponto fraco da série seja justo Felix Sparks ser este soldado que, de tão heroico, é também unidimensional. Uma espécie de Capitão América sem superpoderes e mesmo senso de dever e bravura. Ainda assim, uma minissérie recomendável não somente para quem aprecia o gênero de guerra.
The Crown (4ª Temporada)
4.5 246 Assista AgoraA fórmula de The Crown é uma razão plausível por que muitos, inclusive eu, admiravam, mas não amavam a série. Isto porque, se é fácil cair de amores pela parte técnica e pelo design de produção fidedigno de cerca de meio século de história (até agora), é razoável perder o interesse com a introdução de causos monárquicos curiosos, mas descartáveis dentro da construção que é feita dos pilares centrais: Elizabeth, Margaret, Phillip.
Existe o interesse periférico em desnudar a monarquia, que não resultou em uma relação emocional, especialmente pela distância que os problemas da realeza estavam de mim, o plebeu ou comum. Por mais adorável que fosse (é), a série era um programa de fofocas e políticas variadas. Não mais.
Esta temporada é a tempestade dramática perfeita, porque conjuga uma rainha decidida, uma primeira ministra determinada e poderosa e uma princesa apaixonante por ser frágil, mas também forte para entender quando o sonho de "viverem felizes para sempre" vira tormento de um pesadelo. Mesmo os eventos aparentemente banais funcionam dentro da lógica da temporada (os episódios centrados na princesa Margaret e Fagan, símbolo do trabalhador inglês prejudicado pelas políticas de Thatcher). Se se buscava dramaticidade, não falta em um quadro da narrativa.
Tudo elevado por atuações excepcionais: Olivia Colman, que domina a tenacidade de uma mulher confortável como Rainha, Emma Corin, que mimetiza Diana sem perder contato de que uma boa atuação vai além de reproduzir maneirismos e caracterizar-se identicamente, e Gillian Anderson, que tornou antiquado o retrato de Meryl Streep em A Dama de Ferro. E não bastasse este trio, Josh O'Connor enfatiza a tragédia de Charles em não ser livre para amar, nem em ser admirado ou querido, sem jamais perder de vista quão mimado também era o herdeiro da coroa. E ver o ator mimetizar os trejeitos de Tobias Menzies é um prazer ao cinéfilo.
A série agora encontra o coração que faltava às vezes e preenche cada canto do palácio com vida, drama e tragédia.
Dash & Lily (1ª Temporada)
3.8 132Tendemos a baixar a guarda com comédias românticas, porque já admitimos que haverá clichês, resoluções fortuitas e maior superficialidade. Também fazemos isto em narrativas natalinas. A lógica é que uma comédia romântica natalina, sem maiores pretensões, tem um dobro de chances de se safar do senso crítico de cada um. E eu, crítico, sempre vejo qual meu papel em analisar produções assim.
Mentiria se não afirmasse que os 8-episódios são como uma brisa refrescante, com cores e brilhos natalinos bastantes para cegar o espectador de que está diante de personagens já vistos, revistos, conhecidos por dentro e por fora. Não existe nada inovador na história história, com uma falta de química inevitável entre Austin Abrams e Midori Francis graças à premissa que os mantém afastados até aproximá-los.
A narrativa também não é diferente, mas tenta aproveitar essa distância para criar ideias de encontros em que Dash e Lily não estão junto, mas a presença deles pode ser sentida. E, embora Dash pareça um chato em como age como um Grinch, ignorante que tem tudo o que precisa ao redor, menos discernimento para perceber isto, pelo menos Lily é amável a ponto de comprarmos a história de Cinderela dela em uma Nova York natalina, vista ene vezes na história do cinema e da televisão e, ainda assim, incansável de ser revista.
É igual a comédias românticas natalinas, portanto, depois da primeira, da segunda, vimos todas e mesmo assim não paramos de ver.
A Maldição da Mansão Bly
3.9 922 Assista AgoraA maturidade deste terror romântico está em como ilustra os sentimentos reprimidos e traumas passados através de fantasmas, que evitam servir a ideia infantil de assustar. Pelo menos não na maneira adotada pelo cinema de sustos baratos. O pavor está em perceber como o ressentimento que mantém vivo um propósito cego é também forte o bastante para despersonalizar e desumanizar quem quer que seja, e assim a força de gravidade (nos termos da narrativa) criada pela dama do lago da mansão Bly simboliza aquela maldição que assola todos na propriedade.
Apesar de adotar um ritmo deliberadamente paciente (ou lento, se preferir) e de esconder seus fantasmas quase como se fossem easter eggs para serem revelados em vídeos do YouTube, A Maldição da Mansão Bly mantém a qualidade do predecessor por privilegiar os personagens aos terrores. É fácil de entender: é mais recompensador sentir o medo de Dani a partir de um contrato de empatia firmado com ela, do que apenas saltar da poltrona à vista do sobrenatural. Se esta reação é baseada no instinto e logo se dissipa, a primeira é permanente, pois baseada na humanidade.
Assim, não faltam dramas convincentes construídos em torno de romances impossíveis relacionados a personagens que ainda não estão prontos a aceitar o inevitável. Se Dani, Hannah ou Viola retardam a chegada do que há de vir, a partir de subterfúgios que serão revelados por um roteiro cuidadoso, é porque existe uma dificuldade do ser humano em aceitar o que desejaria ser diferente, quando na realidade são só bonecos dentro da casa dentro do quarto de Flora.
A atriz-mirim Amelia Bea Smith é um dos achados da narrativa em como combina esta inocência infantil ao desejo de reencontrar os pais, e ciente também do que assombra a ala proibida da Mansão Bly. Sem uma atuação decepcionante e dois episódios finais que são apaixonantes do início ao fim, Mansão Bly é um terror certeiro que toca no coração, não como a montanha russa de emoções, mas de forma singela, delicada e melancólica.
O Gambito da Rainha
4.4 931 Assista AgoraVocê não precisa ser gênio detrás das câmeras para gerar tensão, apreensão e emoção em esportes como futebol americano, basquete, boxe. Entretanto, deve existir um talento acima da média a fim de tornar o xadrez, um esporte mais intelectual do que físico, nesta empolgante e atraente minissérie O Gambito da Rainha.
Desde O Sétimo Selo de Ingmar Bergman (tá bom, Márcio, menos!), um jogo de xadrez não servia como metáfora para retratar tão bem o espírito humano. No caso, o tabuleiro é, para Beth, um espaço seguro onde pode exercer domínio contra os adversários, sem estar ameaçada por acasos e traumas da vida ao redor. Se, no mundo real, Beth não tem controle em relação à morte prematura da mãe, à ida ao orfanato, à adoção pela gentil e trágica Alma ou à dependência em medicamentos e álcool, quando disputa uma partida deste esporte dominado por homens, a prodigiosa enxadrista revela ser um espírito em chamas.
O cabelo ruivo sugere este furor, que existe além da compostura e recato dos figurinos elegantes dos anos 60, enquanto a atuação de Anya Taylor-Joy é uma das melhores do ano em como comunica sua dor através do olhar sinuoso e penetrante. Apesar de saber como retratar a faísca de doçura ingênua, Anya está mesmo interessada na componente psicológica de Beth e em como é patologicamente dependente do xadrez. Não é apenas um mecanismo de fuga da realidade ao redor, mas um instrumento de sobrevivência em uma sociedade que já traçou o destino das mulheres em sua idade. É isto que machuca no retrato de Alma, que tentou a todo custo ser esta mulher, até isto lhe ser tirado de si.
Não de Beth! E a série equilibra-se em como ilustra a dependência química e as relações da enxadrista com oponentes, alguns dos quais viram amigos e/ou amantes. É um estudo de personagem completo, muitíssimo bem construído com exceção dos efeitos digitais do avião no ar, em como revela o esporte como meio de lidar com as carências sentimentais e entrar em paz com o passado e consigo mesma.
GDLK
4.3 59 Assista AgoraQuando eu tinha 8 anos de idade, ganhei de presente dos meus irmão um Sega Gênesis. Ali começou uma relação de amor com o videogame, que me levou a ganhar competição, e um Super Nintendo de prêmio, a adquirir jogos de computador durante a faculdade e a adquirir mais aparelhos na idade adulta. Acompanhar esta história neste documentário é como reviver a infância e enxergar que nunca estamos velhos demais para desligar deste mundo e jogar.
A cada episódio, a história do videogame é contada através de uma faceta específica de sua jovem evolução, a partir de personagens que enxergaram o contexto e promoveram uma mudança completa em como nos relacionamos no mundo do entretenimento. E isto com uma linguagem ágil, inteligente e que jamais deixa de ser convidativa para quem só está se familiarizando com este mundo agora.
Para quem, como eu, teve a infância e adolescência contemporânea ao surgimento da expressão artística caçula do mundo, aí o resultado ainda é melhor, pois a nostalgia está de carona com muita informação para adoçar a memória de todas as aventuras que Mário, Sonic e tantos mais puderam nos proporcionar.
The Boys (2ª Temporada)
4.3 647 Assista AgoraNão consigo pensar nesta temporada sem refletir a respeito do aparecimento de Tempesta e por que esta não tentou executar seu plano na temporada inaugural. Esta é uma das lacunas deixadas na linha do tempo do roteiro, além daquelas provocadas por histórias paralelas subaproveitadas e deixadas em banho maria, até serem convenientemente reintroduzidas nos episódios finais para dar a ilusão de que tudo está amarrado.
A sátira à cientologia na forma da igreja da coletividade é um exemplo de peça do roteiro que lá está, e lá permanece, sem que esteja clara qual sua função narrativa, senão a de dar o que fazer a Chace Crawford, criticar o hábito do perdão pelo dinheiro, ou de abrigar temporariamente outro super-herói. O excesso de personagens, e com estes subtramas, é o problema com que a sala de roteiristas da série deve lidar, às vezes sem sucesso.
A tentativa de atribuir histórias de fundo a cada personagem é louvável, e desenvolvê-los permite que mais atores tenham chances de demonstrar seu alcance dramático. Contudo, cobra o preço em matéria de ritmo -- repare em como a introdução de flashbacks no 6º episódio atrapalha a trama no presente, mesmo que as informações exibidas sejam relevantes. E se o tema ainda é roteiro, os Deus ex machinas (igual a Maeve surgindo do nada para salvar todo mundo) e a tentativa de explicar cada piada (a menção de Leitinho da reunião das 3 heroínas) enfraquecem a narrativa, cujo objetivo era ironizar Marvel/DC, embora tome para si alguns de seus vícios.
Mas não o idealismo. Com um pessimismo exibido na fotografia de contraste e sombras mesmo na luz do dia, The Boys compreende como os superpoderes seriam negativos em uma sociedade individualista e desigual. A violência estilizadamente gráfica é a forma de verbalizar a importância em distribuir poderes, não concentrá-los nas mãos de uns poucos, e o fato de a crítica ser contra os Estados Unidos contemporâneo deságua enfim na conjugação de política, dinheiro, imprensa submissa e poder como os mecanismos de opressão do homem comum.
Apesar do roteiro enroscado e da reviravolta problemática diante da mudança biológica de certa personagem ao usar seu poder, a série continua mordaz, irreverente e direta quando precisa ser, sem amenizar os golpes dados na cara, para que paremos de apoiar aquelas mesmas forças que nos oprimem.
Emily em Paris (1ª Temporada)
3.6 392 Assista AgoraExigir que comédias românticas não tenham clichês é o mesmo que criticar cachorros por abanarem o rabo quando estão felizes. É parte do subgênero a existência de elementos comuns, bem ou mal trabalhados nestes 10 episódios curtos, apoiados muito no carisma de gata borralheira de Lily Collins, com quem as coisas parecem funcionar a base da sorte e bastante otimismo e perseverança.
Ao que a narrativa indica, Emily está mais impressionada com os arredores parisienses, em flertar com o vizinho de baixo (comprometido, evidente) ou em conhecer restaurantes e bistrôs da moda, não a culpo, do que em injetar americanidade a empresa de marketing Savoir. Mesmo assim, após dedicar o mínimo a perceber composições fotográficas, tirar a foto e adicionar alguma hashtag engraçada, Emily alcança o status de nano influenciadora e ainda ajuda a empresa a sair do marasmo, embora não tenha o reconhecimento de sua chefe, a versão mais acessível de Miranda Priestly (de O Diabo Veste Prada).
Se não podemos reclamar da comédia romântica por ser como é, devemos torcer o nariz (bem francês, eu) em assistir a americanos agir como americanos: em vez de enxergar o francês por saber trabalhar e apreciar a vida, resta deboche pelo aparente descaso dentro do mundo trabalhista e maniqueísmo no quê significa saber viver (o savoir-vivre): ser bom de cama, beber e comer bem. Se eu incomodo-me com este olhar estereotipado, não tiro a razão do francês em repreender a série.
Ah, os figurinos... sim, são muito bonitos, mas a beleza está a serviço da beleza, e não de contar a história. Não me parece haver propósito narrativo nos figurinos dos personagens, senão reforçar a ideia (estereotipada, repito) desta chiqueza francesa. Resta Lily Collins, a mais Audrey Hepburn de hoje em dia, conferir vitalidade a esta série que é igual a vermos Paris de porta-retratos. E não vivê-la.
Bom Dia, Verônica (1ª Temporada)
4.2 760 Assista AgoraCinema e literatura são experiências diferentes, e repito pela enésima vez: não é possível julgar os méritos de uma arte em comparação com a outra. Depois de tirar isto do peito, a série criada por Raphael Montes, que é também co-autor do livro adaptado, trata de temas oportunos (violência contra a mulher, corporativismo e corrupção) nesta São Paulo ingrata e cancerígena em que cores vibrantes aparecem com muita raridade no fundo cinza.
É o ambiente certo para desenvolver uma trama macabra de um gênero tipicamente norte-americano, o thriller policial de assassino em série que encontra em Eduardo Moscovis um avatar assustador por ser mais real do que gostaríamos de pensar. As atitudes do Tenente Brandão são calculadas pelo ator em como expressa a manifestação da violência, fruto de traumas infantis, e também a aparência de afeto com que se aproxima de Janete, no papel comovente de Camila Morgado.
A atriz evidencia que não existe idade nem contexto para ser manipulada emocionalmente por quem finge amá-la, e por detrás dos olhos melancólicos somente enxergamos os altos e baixos na tentativa de desvencilhar-se desta rotina aterrorizante. O casamento abusivo e a trajetória de Janete conferem o elemento emocional à importante investigação solitária da escrivã Verônica, em uma performance de Tainá Müller que namora e até se aproxima do retrato estrelado por Noomi Rapace como Lisbeth Salander, de Os Homens que Não Amavam as Mulheres.
Como Alice entrando na toca do coelho, Verônica é conduzida a este mundo em que não há maravilhas, só tristeza e sofrimento, neste série urbana e contemporânea tomada com um ritmo exaustivo por ser intenso e um final real demais.
Ratched (1ª Temporada)
3.8 393 Assista AgoraNão existe justificativa para explorar as raízes do psicológico de vilões que mais amamos, pois aquilo que os torna ameaçadores, perigosos e imprevisíveis é exatamente o fato de não conhecermos quem são, apesar de enxergar as consequências de seus atos. A mais nova vítima deste falta de criatividade é a Enfermeira Mildred Ratched, a antagonista do clássico Um Estranho no Ninho.
Sarah Paulson é competente em encontrar uma motivação racional na personagem cujo distúrbio psicológico parece evidente ao simpatizar com Charlotte Wells, acometida por um transtorno dissociativo de personalidade. É como se houvesse duas Ratched em uma: a ingênua antes de ser contaminada pela violência sofrida na infância e outra que está disposta a sacrificar quem quer que seja para alcançar o que almejada. E Sarah é feliz em encontrar o meio-termo satisfatório que não provoque repulsa mas ainda conserve aflição.
É a narrativa que falha à personagem: Ryan Murphy investe na estilização expressiva dos cenários e figurinos, mesmo que esta qualidade visual não esteja na mesma página com a temática encenada. É como se Ryan tentasse ofuscar a doença psíquica com uma beleza indiscutível, mas que terminasse por encher a produção de personagens maniqueístas ou unidimensionais a serviço não da substância, mas do estilo.
O detetive noir interpretado por Corey Stoll, a femme fatale vingativa de Sharon Stone e seu filho psicótico de Bradon Flynn, o político inescrupuloso de Vincent D'Onofrio e até a paciente interpretada por Sophie Okonedo, nenhum destes acrescenta algo determinante à narrativa ou à personagem principal, mas apenas capitaneiam subtramas descartáveis em que fica evidente o óbvio: Ratched está disposta a tudo por seu irmão.
Enquanto isto, a narrativa coleciona buracos significativos, sobretudo na suspensão de descrença em achar que Ratched em hábil em manipular alma viva a fazer o que deseja, sem recompensar o espectador. O bom e velho estilo que não salva a falta de conteúdo.
A Duquesa (1ª Temporada)
3.3 26 Assista AgoraDurante muito tempo, o cinema tentou martelar como única representação possível feminina a mulher virtuosa que deveria restaurar, contra as forças do retrocesso, a igualdade, o respeito e o direito de ser feliz. O oposto era exceção, estabelecida em contornos negativos. Vieram, para citar as mais recentes, Maravilhosa Sra. Maisel e Fleabag e expuseram que não existe um monopólio de traços de personalidade aos homens. E Katherine Ryan leva isto adiante, desafiando o espectador a seguir esta jornada com uma protagonista imatura ou mesmo desagradável.
Não que Katherine deseje que concordemos com as decisões desastradas tomadas por sua personagem, mas que aceitemos que ela também tem direito de agir errado e quem sabe aprender pílulas de amadurecimento tardio. E a narrativa, por mais curta que seja, abranda a personalidade auto-sabotadora de Katherine com reflexões e pílulas de doçura, em um mero ato de cortar o cabelo.
Ah, Katherine pode incomodar por não ser o melhor modelo comportamental para sua filha. Será mesmo? Muitos dos erros da protagonista decorrem, justo, por compreender onde começa e termina seu corpo. Ela pode não ser sincera com os outros - Evan, por exemplo -, mas é consigo ou tenta ser, já que seus erros são frutos não de uma cabeça maldosa, apenas de uma que ainda não aprendeu a acertar mais do que errar.
Assim como Fleabag, embora não dê pra comprar a forma de humor de Katherine e Phoebe Waller-Bridge, a série apóia-se em 6 episódios curtos e que privilegiam não verossimilhança extrema, tão somente o bom humor com um verniz reflexivo a fim de iluminar o caminho para infinitas representações femininas do cinema. E não somos obrigados a gostar de todas, mas temos o dever de reconhecer seu direito de existir.
Perry Mason (1ª Temporada)
3.8 34 Assista AgoraÉ reconfortante saber que existem filmes ou séries de gênero que, enquanto resgatam convenções de antigamente, articulam a linguagem a fim de salientar e contextualizar temas contemporâneos dentro da narrativa histórica. Perry Mason poderia ser, muito bem, só mais um tipo soturno de detetive, com sequelas da 1ª guerra mundial dentro do cenário econômico da grande depressão de 1929. Se fosse isto, já estaria ótimo, inclusive.
Entretanto, a série e o personagem-título são mais. Não apenas a reconstituição de época e do gênero policial estão em sintonia com o que esperamos deles, mas a temática é bem pertinente e ilustrativa de como a sociedade evolui a passos de tartaruga. Basta perceber como funciona a dinâmica do poder para enxergar o hoje no ontem: o policial negro vítima do racismo da organização, a mulher homossexual que deve esconder o relacionamento, a relação promíscua entre dinheiro e igreja e como isto serve de pano de fundo a eventos.
Matthew Rhys, Juliet Rylance e John Lithgow estão em estado de graça em papéis que foram feitos para cada um deles, com contornos e oportunidades para exercitarem seus músculos de atuação enquanto rebatem o tema da narrativa: a busca da verdade para efetivar a justiça e a redenção do mal pelo bem, na amarelada década de 30 de muitas incertezas para cada personagem.
Não existe economia gráfica, e duas ou três cenas podem parecer perturbadoras demais, e o roteiro não despreza a capacidade do espectador de entender mesmo se algo não for exposto e explicitado. Parece haver pontas, mas estas, na realidade, foram costuradas fora de campo, sem que as víssemos, deixando o espectador como detetive na busca do que a narrativa, raramente irregular, lhe proporciona como consequência.
Até saberemos qual a verdade e teremos senso de conclusão, apesar de a justiça, como no mundo real, não ser exercida como esperávamos. É um dos méritos de ter um policial cínico e pragmático igual a Perry Mason como guia pelo ontem, mas que parece um tico com o hoje.
Eu Terei Sumido na Escuridão
4.1 28A ideia de ‘filme legado’ veio-me à cabeça várias vezes, enquanto assistia a esta minissérie documental revisionista do subgênero de crimes reais. Legado de Michelle McNamara, que, assim como muitos de nós (eu, inclusive), era fascinada por mistérios não solucionados e dedicou a vida a descobrir a identidade de um assassino e estuprador em série. Legado do criminoso, em particular em como o toque de violência machucou as sobreviventes. Legado da literatura, da palavra escrita, presa ao aconchego e segurança da cabeça antes de nascer, não sem dor, em direção à luz do dia.
A obra é melancólica, por ser bastante pessoal na exploração do histórico familiar de Michelle e de onde surgiu o fascínio pelo tipo de conteúdo. Seu relacionamento com o ator cômico Patton Oswalt é tema de incentivos carinhosos e da responsabilidade que deveria nortear as tarefas comuns de todo casal. Ele próprio, humildemente, dá um passo além do holofote ciente de que a obra não é sobre si, mas Michelle, bem construída como personagem e também autora.
Este enfoque não reduz a qualidade da minissérie que, habilmente, satisfaz os fãs do subgênero e proporciona uma investigação minuciosa, articulada em múltiplas linhas temporais que não chegam a serem confusas embora exijam a atenção do espectador. Além disto, há repercussões a respeito da investigação negligente ou, no mínimo, desleixada, e de como o sistema policial americano pena com a incomunicabilidade entre delegacias.
Quem sabe, se a polícia houvesse agido com zelo, Michelle não precisaria mergulhar de cabeça até encontrar, nas sombras dos crimes, muitos fantasmas, já existentes na família, e que a perseguiriam. O “se” é uma incógnita que não paramos de deixar de pensar, mas que deságua no legado. Um de determinação e entrega de uma mulher que pôs tudo a risca para lançar luz na escuridão. A verdade é a virtude de Michelle McNamara e desta minissérie imperdível.
I May Destroy You
4.5 277 Assista AgoraMeu primeiro contato com Michaela Coel ocorreu em Black Earth Rising. Era uma atuação competente, mas protocolar. Diferentemente, nesta série, a atriz está mais intensa por ser pessoal o tema: Michaela, que rima com Anabella, também fora vítima de violência sexual e emprega a série como tratamento terapêutico, igual faz sua personagem na série.
A metalinguagem é o sangue que corre nas veias da autoanálise feita por Michaela: Sou culpada do meu estupro? Minhas ações resultaram em crime contra mim? Devo perdoar, confrontar ou esquecer o agressor? Michaela deixa o espírito guiar as decisões tomadas dentro do roteiro, e pretende responder estas questões com mais perguntas, tornando os conflitos de Arabella os mais tridimensionais e as consequências do abuso, idem.
A cada episódio, mais peças do quebra-peças são apresentadas, e não digo somente qual a identidade do agressor (é o menos relevante no contexto da série), mas como Arabella é capaz de encarar passado e presente para chegar no catártico e poético episódio final, em que a escritora não encontra as respostas fáceis buscadas. Somente um ponto de partida, muito além dos segredos escondidos debaixo da cama.
O quebra-cabeças formado não tem uma imagem clara, não por incompetência da trama, mas porque os melhores personagens não são estáticos, mas dinâmicos, e tanto mudam quanto mais encaram a própria imagem no espelho. Arabella, e também Terry e Kwame, agem desta maneira na Londres multifacetada e acinzentada, cujas cores foram trazidas por um trio que entende a complexa dimensão social do que enfrentam dia a dia.
É um convite ao mundo real, que subverte a comédia de situação, substituindo a comédia por quilos de empatia e representatividade, de autoconhecimento e um banho de água fria do mundo real.
3% (4ª Temporada)
4.0 128Finais são arriscados. Finais de séries, mais ainda. Desde que comecei a escrever sobre séries, analisar temporadas finais exigem responder a pergunta básica: o fim significou o investimento emocional naquele núcleo de personagens e na trama apresentada? E, bem, a resposta da primeira série nacional da Netflix é felizmente sim.
Mais otimista do que imaginaríamos, 3% abriu espaço para Joana assumir o protagonismo no lugar de Michele: a decisão é corajosa, mas compreensível. O drama de Michele contra o irmão, André, por mais que funcione como espinha dorsal de sustentação da temporada é menos relevante, tematicamente, do que a jornada niilista de Joana, até a redescoberta de um amanhã, e sendo mulher, negra e homossexual, a personagem ainda representa os grupos minoritários hoje e sempre relegados ao segundo planos pela elite que o Maralto simboliza.
É verdade que o roteiro é, e sempre foi, o calcanhar de Aquiles, aqui chegando ao cúmulo de rebatizar os grupos como superiores e inferiores, como se a metáfora não fosse óbvia o bastante e precisasse ser expressa literalmente. E não tem como não se incomodar com a sequência, zero spoilers, em que o envolvimento emocional do público é posto à prova em uma pseudo-reviravolta que faz muito mal à narrativa, pois não estava ancorada em algo concreto.
Por outro lado, não há dúvidas de que a série criada por Pedro Aguilera tenha atingido a jugular na crítica contra a desigualdade social e o fato de poucos serem felizes enquanto pisam na cabeças de muitos. A isto, a conivência religiosa que elege seus falsos ídolos e aliena o povo, mais propenso a defender seus opressores do que unir-se contra estes. É, no final das contas, sobre isto a série: união.
Se quisermos mudanças, precisamos unir os diferentes em torno de um objetivo comum, e Joana, construída e desenvolvida com dedicação por Vaneza, é o símbolo do Continente - e deste Brasil. Juntos, somos mais fortes. Separados, bem, não somos nada.
The Umbrella Academy (2ª Temporada)
4.1 322Pode ser o jejum forçado de produções de super-heróis, mas esta 2ª temporada despertou um interesse em mim, cada vez mais raro, em começar a assisti-la o quanto antes. Porém, medida que os episódios passavam, estava cada vez mais difícil manter o ritmo, não por baixos valores de produção (aliás, que série bem feita, uou!), nem de interesse em saber como os paradoxos temporais iam ser desfeitos. Apenas porque não houve construção de nada entre os dois primeiros e últimos episódios que justificassem o tempo investido.
Com o roteiro sem razão aparente para introduzir personagens adicionais, senão abrir um parênteses e explicar que seus super-heróis podem ser normais caso não estejam um em contato com o outro e depois descartá-los, a 2ª temporada perde o frescor de originalidade da família desfuncional. Tenta compensar com a construção da década de 60, perdendo (e feio) em comparação com a recente Watchmen.
Na realidade, não apenas problemático em mal desenvolver trama e personagens, o texto também arranha uma subtrama estilo Fênix Negra para resolver-se no deus ex machina (e que aqui poderia ser öga för öga ex machina - entendidos entenderão), tentando resgatar algo novo com o gancho deixado no final.
Sim, estamos tão fascinados com paradoxos temporais que basta balançar um diante de nós que iremos mordê-lo com força! Enquanto isto, o elenco, mais consistente do que na temporada passada, até esforça-se, mas não tem como escapar das conveniências de um roteiro tão conveniente quanto 1.000 pessoas disparando metralhadoras e não acertando ninguém.
É divertido? Com certeza, embora de modo não produtivo, como se estivesse dando volta em torno de si mesma. As canções introduzidas na trilha sonora aceleram o ritmo, bem ao tipo Guardiões da Galáxia, mas ao fim, estamos diante de uma narrativa inconsequente e inofensiva e menos do que a soma de suas partes.
Immigration Nation
4.5 3 Assista AgoraSejam imigrantes ou refugiados, o êxodo dos povos é uma das grandes questões destas décadas iniciadas do século. Mais do que somente aspecto relacionado à soberania das nações, é também questão de dignidade e humanidade que olhemos para quem foge de seus lares e entendamos por que fazem isto, arriscando muitas vezes a própria vida e o futuro em busca do que parece ser melhor para si e os seus.
Que os Estados Unidos, sob o governo de Donald Trump, tenham hostilizado homens e mulheres que já sofrem diuturnamente com preconceito dentro da sociedade, é de uma maldade sem igual, especialmente considerada a raiz do povo americano nos imigrantes ingleses e irlandeses.
Com um equilíbrio irrepreensível entre objetividade e subjetividade, os diretores Christina Clusiau e Shaul Schwarz apresentam a questão imigratória norte-americana a partir de múltiplas dimensões: da atuação da ICE em, literalmente, caçar aqueles ilegais em solo norte-americano, aos tribunais administrativos que somente carimbam as deportações. A dupla também aborda o procedimento "legal", mas dificultoso de conseguir asilo no país e penetrar em questões paralelas, como a exploração do trabalho do imigrante, incapaz até de defender-se num tribunal para reaver o salário de seu esforço, ou o ato de o governo virar as costas àqueles imigrantes que combateram nas guerras em nome do país.
Podemos enxergar muito, enquanto próximos da dimensão humana, pois os diretores conseguem não apenas estar ao lado daqueles injustiçados, ou não, mas também de quem trabalha na ICE e nos demais departamento de imigração do governo americano. Não tive como conter-me ao término do 3º e 5º episódios, pois o drama retratado era doído demais e retratado com delicadeza pela câmera, que permanece perto, embora não aparente ser intrometida.
Uma das grandes minisséries documentais do ano!
Drogas - Oferta e Demanda
3.5 10 Assista AgoraPara entender o impacto de qualquer transação, lícita ou não, a regra número um é: siga o dinheiro. É isto que a ex-agente da CIA Amaryllis Fox realiza nesta minissérie documental cuja qualidade é ser racional e objetiva quando o assunto é tráfico de drogas. Sem termos a percepção de mocinhos ou bandidos, entendemos o sistema econômico que possibilita o mercado e, mais importante, como os governos poderiam combatê-lo, caso desejassem.
A apresentadora é eficiente em trazer ao primeiro plano os pontos-chave do tráfico, quem são as pessoas, físicas ou jurídicas, que desempenham papel naquele jogo, onde estão e ainda é empática o bastante para colecionar depoimentos reveladores de quem opera no tráfico, não por ter sonhado em ser gângster, mas porque não há outro meio para vencer a pobreza nem incentivo governamental para tanto.
Com exceção da Big Pharma, apelido das corporações farmacêuticas norte-americanas que dominam o mercado mundial de drogas legalizadas, quem atua no tráfico de drogas, na ponta, são pessoas que apenas querem por comida na mesa da família: os coletores das folhas de coca ou os revendedores de heroína no Quênia. Incapazes de enxergar o problema na dimensão pandêmica e desestruturante, estes sujeitos são engrenagens e, pior, facilmente substituíveis caso apresentem "defeitos".
Assim, a minissérie é tanto objetiva em evidenciar a dinâmica econômica do mercado das drogas, quanto também humana em evitar responsabilizar quem quer que seja, inclusive o dependente, retirando o estigma onde teimamos colocar. Além disto, ainda é uma aula de qualidade sobre os efeitos fisiológicos da cocaína, maconha, oxicodona, heroína, MDMA e meta-anfetamina, posando a pergunta essencial: será se está na hora de discutirmos com fatos e argumentos a descriminalização e regulamentação das drogas para desestruturar o mercado clandestino?
Normal People
4.4 438Se você for assistir a Normal People esperando O Diário de uma Paixão, é melhor ir se acostumando com Namorados Para Sempre. Usando a melancolia como a engrenagem que movimenta o romance entre Marianne e Connell, é compreensível entender por que estes dois, mesmo apaixonados e vivendo este amor longe dos olhares, permaneceram tentando viver uma ilusão que apenas os corrói.
Do ensino médio à faculdade e mesmo após, Marianne e Connell nascem inesquecíveis, pois, tão machucados, sequer conseguem transformar o amor numa espécie de band-aid que ajudaria a cicatrizar os cortes da vida. Ela, abusada fisicamente pelo pai (embora eu também desconfie que sexualmente, já que o "Não" que diz a Connell soa como desculpa para si mesma), passou a enxergar-se como um utensílio para a felicidade alheia. Alguém que não se importa em fazer o que os outros queiram para fazê-los felizes, ignorando sua própria felicidade. Assim, a dor passa a ser a forma que encontra para sentir algo em sua vida vazia. E Daisy Edgar Jones ilustra isto numa atuação minimalista tal como o mosaico indecifrável que é.
Já Connell, o protagonista da narrativa, atravessa as muitas etapas da vida como se fosse um passageiro, mesmo acumulando amigos e pessoas que o amam. A tristeza, a princípio é inexplicada, embora possamos enxergar as sutis raízes da depressão entranhadas. A inércia e inação de Connell até irritam quando sua consequência transborda em Marianne, mas logo percebemos que existe muito mais além do personagem tão bem construído por Paul Mescal, numa daquelas atuações que criam estrelas.
Daisy e Paul brilham em conjunto e separadamente, em cenas que ressaltam os esforços de jovens adultos em tentarem ser aceitos e aceitarem-se como são no mundo que rejeita aqueles que não se enquadram perfeitamente em seu gabarito. O amor deles emociona pois é autêntico: na paixão retratada quando estão juntos - as cenas de sexo ajudam em reforçar esta união até a carne - e no vazio deixado no peito quando a paixão é frustrada. É pra assistir com lenço do lado, sentindo o calor da lágrima enquanto deixa o coração.