Por mais que a ficção se esforce, a vida real é sempre mais estranha e surpreendente. Ao longo de 4 episódios, Bad Vegan (título original, já que o nacional não desce) retrata a decadência da proprietária de um restaurante badalado em Manhattan ao se relacionar com um homem manipulador. Bastaram alguns anos com Anthony Strangis - se algum roteirista batizasse a personagem assim, acusariam-no de falta de criatividade - para que tudo o que Sarma Melngailis havia construído estragasse como uma fruta esquecida no fundo da geladeira.
Chris Smith dirige com distância e ceticismo. Ao se fazer escutar na entrevista com Sarma, quando o frequente seria invisibilizar a figura do documentarista, Chris tenta se colocar no papel do espectador e realiza as perguntas difíceis, do tipo: como uma mulher, inteligente, bem-sucedida igual a você pôde acreditar em coisas do tipo: farei o seu cachorro viver para sempre. (Não precisa olhar longe, já que não faltam religiões que prometem vida eterna).
Ao diminuir a relação de empatia com Sarma, aumenta-se o escrutínio do espectador. É possível permanecer ao lado dela, mas com ressalva, até pela falta de empatia dela própria com os funcionários que deixou na mão. Chris ainda introduz entrevista com pessoas não simpáticas a Sarma ou irônicas, a fim de revelar que a forma com que é enxergada não é unânime. Sarma é um mistério, aparenta estar atordoada, como se tentasse entender o que aconteceu, anos após. Como personagem, é fascinante porque cria em nós o desejo de penetrar dentro de sua cabeça e enxergar o mundo por seus olhos.
Enquanto retrata a história como um acumulado de reviravoltas, para lá, para cá, Chris Smith também critica a postura dos jornalistas da época, que enrijeceram a régua moral apenas porque Sarma era uma mulher vegana, o que não aconteceria se fosse homem não vegano. E também termina com uma pulga atrás da orelha - que a própria Sarma prometeu vir a público desmentir - mas aí serão cenas de capítulos por vir.
O cinema de super-herói precisa de um James Gunn, autorreferente em destacar e criticar as convenções do subgênero enquanto as utiliza ou recicla para criar novas convenções. Parece redundante, mas o trabalho dele - que dirige a maioria dos episódios da temporada além de haver escrito ou colaborado em todos os episódios - é numa tentativa de tirar o subgênero da mesmice que é a Marvel e do excesso de iterações hiper-violentas e sérias (The Boys, Invencível, Kick-Ass).
Ele encontra o meio termo para que a violência não seja alienante, a sátira não fique repetitiva e a subversão do super-herói clássico seja feita com sucesso sem perder a característica sacrificial que o orienta. Como herança de Esquadrão Suicida, a série é violenta e reencontra um tema que James Gunn tem afeição: o que chamaríamos de monstro não necessariamente é mais monstruoso do que a ação humana. O humor é contrabalanceado com a ação. Não sufoca a série em torná-la uma forma de sitcom vestida de spandex, mas cria momentos memoráveis como as dúzias de nomes citados por John Cena em certo momento.
E por falar nele, John Cena tem um charme Schwarzenegger, sem o obstáculo do idioma (que sempre dificultou os primeiros papéis de Arnold) e com maior talento para atuação e sem medo nenhum de soar ridículo. Seu Pacificador já é, essencialmente, uma caricatura (um sujeito que mata quem quer que seja para ter paz), então a composição permite maior flexibilidade. Isto vale para o elenco inteiro que, sem exceções, está confortável com seus personagens desde o minuto 1 até o final.
Com todos os elementos bem encaixadinhos - roteiro absurdo mas verossímil dentro de suas regras e convenções, elenco sintonizado com os personagens, encenação satírica, bem humorada e violenta - não é surpresa nenhuma que O Pacificador seja um bálsamo para um gênero que vira e mexe é a mesma coisa.
Sinto falta de aventuras de super-heróis iguais as do Homem-Formiga ou esta minissérie do Gavião Arqueiro, em que o espetacular é deixado em segundo plano em favor do mundano. Mesmo porque, apesar de serem os feitos e sacrifícios que marcam a jornada do super-herói, ele não é nada sem seu alter-ego debaixo da máscara, um homem/uma mulher que tem atribuições familiares, domésticas, sociais, e que deve conciliar isto com o "emprego" heroico.
Assim, esta minissérie é gostosa por se colocar no devido lugar desde o início, como um compromisso natalino inconsequente e que serve a função de introduzir a Gaviã Arqueira. Só ajuda que seja a Hailee Steinfeld a intérprete, já que atriz mais carismática, de sua faixa etária, não há. Entre a relação de fã/ídolo e também mestre/aprendiz, os arqueiros Clint e Kate testam os limites desta parceria improvisada durante o natal nova iorquino. E a dinâmica é boa, até quando Jeremy Renner parece estar entediado ou rabugento (eu tenho a sensação de que é o ator que menos gosta de ter contrato com a Marvel, e vocês?).
Gavião Arqueiro decepciona mesmo por excesso. Não bastasse ter a trama que envolve o Ronin e uma organização criminosa comandada por um popular personagem das HQs, a narrativa ainda acha espaço para reintroduzir Yelena, em uma jornada de vingança que sabemos que não dará em nada já que, PELA MILÉSIMA VEZ MARVEL!, ninguém acredita quando heróis brigam entre si. Com exceção de um único personagem, você não acredita em nenhum dos vilões que a narrativa apresenta, como Eco, interpretada pela atriz surda e deficiente física Alaqua Cox, cuja mudança de lado só não é previsível para quem está vendo seu primeiro filme/sua primeira série.
A série é leve, divertida, inconsequente, até demais, com um episódio final inchado, em que muita coisa acontece e nada parece ter efeito e consequência. São muitos capangas, muitas flechas com "poderes" curiosos, muitos personagens, quando só bastaria a dinâmica entre Kate, Clint e Lucky. Mas vai lá dizer pro Sr. Boné diminuir a escala de suas produções e se concentrar no lado humano, capaz de ele surtar.
Gosto de pensar no processo terapêutico que é revisitar a juventude e reencontrar o racismo estrutural integrado dentro do comportamento dos pais, amigos, treinadores e praticamente todos aqueles com quem Colin Kaepernick conviveu, enquanto realiza o paralelo com a exclusão da NFL depois de um gesto que objetivava, justamente, combater este racismo. Apesar de ter momentos de coach que, frequentemente, soam deslocados dentro do contexto narrativo, a minissérie Colin em Preto e Branco é feliz em ilustrar o olhar de hoje do atleta reconhecendo toda a violência que sofreu ontem e como isto o moldou para ser quem é.
Com um recorte bem definido, iniciado a partir dos testes para integrar o time de futebol americano da escola até ser selecionado por uma faculdade, Colin em Preto e Branco é um documentário (não parece, eu sei) que adota o artifício de reconstituições e de insights com figuras históricas e contemporâneas para revelar, por exemplo, como o corte de cabelo pode ser desvirtuado pelo olhar branco que não percebe, nem quer, como encena uma busca pela identidade a muitos negada.
Existe uma simplicidade em contar a história, que toma emprestados elementos que já vimos em filmes parecidos, porém envoltos em uma dimensão racial e política que questiona o sistema, enquanto vivencia a juventude. Colin, o real, enxerga isto a partir de uma janela aberta à sua vida, com uma câmera que se movimenta em sua direção a fim de revelar a grandeza do homem e a sensibilidade no olhar. Já a Jaden Michael, o Colin fictício, é confiada a parte sensível somente, pois, jovem, ainda não enxerga as nuances que apenas a maturidade e o conhecimento expõem. Até pode perceber a violência, mas não sabe quantificá-la, qualificá-la, identificá-la.
Este jogo caracterizado pelas trocas entre o Colin real, que observa até agir, e o da ficção, que sobrevive até empoderar-se, é a alma de uma minissérie cativante, pela forma como é narrada, e indispensável, pelo tema apresentado.
É difícil não se emocionar com a trajetória universal de Alex, que parece com a de muitas mulheres que precisaram adiar ou interromper os seus sonhos por causa de uma gravidez não planejada e que sobrevivem, ou às vezes não sobrevivem!, ameaças e abusos físicos, sexuais, emocionais e psicológicos de seus companheiros. Mal sabem que estão vivendo em uma situação abusiva, o que esta minissérie torna visível em imagens a partir de uma metáfora envolvendo uma floresta bem densa e um buraco de onde é difícil sair.
Maid conversa até com quem não vive situações assim, mas já ouviu um "entra no carro!" gritado a plenos pulmões ou uma notícia feliz ser recebida com desdém ou até irritação por quem deveria comemorar junto. Indispensável do ponto de vista da relevância, Maid é também uma aventura de empoderamento bem planejada em torno de eventos - igual ao caderno de histórias de Alex - e ancorada na atuação definidora de carreira de Margaret Qualley. Ao rejeitar o rótulo de ser uma abusada - no início, claro -, a atriz consegue mascarar uma ilusão de que "isto não acontece comigo" revela apenas nas entrelinhas. Sua habilidade de marejar os olhos, como se brigasse com as lágrimas, ou de encarar, apática, a "prisão" onde está são artifícios que utiliza para contrastar com a determinação e dinamismo em lidar com o problema dos outros.
A profissão de diarista é a metáfora de uma mulher que arruma a casa (e até as vidas!) de algumas mulheres, embora se sinta impedida de fazer o mesmo consigo, ante a dificuldade de reconhecer o abuso que vive enquanto há tempo. O restante do elenco compõe o mosaico de uma sociedade que não mete a colher no problema dos vizinhos, mas que enxerga envergonhada sua própria covardia e falta de agência em interceder em defesa de Alex (ou de qualquer outra mulher abusada). Ao aproximar a narrativa do mundo real, Maid também expõe como a situação de abuso pode ser transmitida de mãe para filha, caso não se corte a questão pela raiz: nunca é a culpa da vítima; mas a ausência de conscientização de que há saída, rede apoio, justiça, vida e sonhos longe do abusador.
A divisão em episódios ajuda a contextualizar a história da Colônia (In)Dignidad ao longo da trajetória política do Chile, contando da queda do regime nazista, à eleição do governo popular de Salvador Allende, ao golpe militar até à redemocratização. Tal articulação evidencia o status de intocável deste experimento em maldade humana por parte de quem detinha o poderio militar e acobertava a faceta nazista e abusiva desta organização.
Paul Schäfer é um destes monstros que a história colocou diante da humanidade para evidenciar como esta abaixa a cabeça à maldade e alienação quando se deixa manipular. A minissérie oportuniza que membros da Colônia apresentem seus depoimentos e manifestações de culpa - algumas das quais eu não compro - e também que vítimas, à época crianças e adolescentes, submetidas ao abuso sexual de Paul comentem a respeito da lavagem cerebral e do processo necessário a fim de identificar o estado de violência com que conviviam.
Como Paul esquivava de fotografias e vídeos, a minissérie revela o homem mais a partir de suas ações do que de suas manipulações. E revela, sem margem para dúvidas, como o nazismo estava alinhado com os regimes militares truculentos e desumanos da América do Sul de décadas passadas.
Ninguém é incorruptível. Mesmo o mais ético e moral dos homens pode agir contra seus princípios com o devido estímulo. Pensada desta forma, esta série renovada para uma 2ª temporada é uma evidência de um arco dramático negativo que enxerga um homem bom e admirado pelos seus pares em uma espiral descendente para salvar o futuro da única pessoa que lhe importa: o filho.
Até que ponto a paternidade pode servir de excludente de culpa das ações de Michael Desiato? Ações estas que refletem, como um efeito borboleta, em todas as pessoas ao redor, contaminando-as como se fosse um câncer e revelando o racismo estrutural que existe na sociedade americana, disposta a sacrificar um jovem negro para salvar um da mesma idade, mas branco.
Caso o roteiro da série fosse melhor acabado ou a temporada fosse enxuta, as questões talvez se sobressaíssem em relação às conveniências, às coincidências ou à suspensão de descrença que a narrativa pede de nós. Enquanto Michael utiliza sua influência para ditar as regras jogo, a narrativa permanece autêntica porque o poder tem destas relações promíscuas. É que a partir do momento em que Michael começa, ele próprio, a mexer as peças no tabuleiro, o roteiro desanda.
As atuações excelentes de Bryan Cranston, Michael Stuhlbarg e Carmen Ejogo ajudam a complicar o desenho psicológico de cada um deles. Discordamos e inadmitimos as ações, mas as acompanhamos porque fazem parte de um contrato moral que a narrativa fez com nós e que deságua na questão retórica: se você fosse pai, faria o mesmo que Michael? A resposta pode ser um sonoro "não", até estar na mesma situação dele. Você pode torcer contra seus esforços - eu fiz isto - ou se manter neutro, mas não pode ignorar a ironia que o desfecho proporciona.
Your Honor merecia ser uma minissérie só por causa desse momento, pois prevejo que a 2ª temporada tentará consertar o estrago.
Mike Flanagan encontrou um lar na Netflix em que pôde desenvolver, com paciência, minisséries de terror caracterizadas por mosaicos de personagens, trabalhados com densidade e humanidade.
Aqui, o diretor propõe-se a debater a fé e espiritualidade a partir da trama fantástica de um pároco substituto que chega a uma pequena comunidade insular com uma proposta radical de evangelização, ao mesmo tempo em que retorna ao lar o filho pródigo.
O estudo narrativo apresenta como uma parte relevante da sociedade está disposta a virar o rosto a iniquidades, desde que referendem seus preconceitos tingidos de religiosidade. Junto disto, também apresenta monstros que realizam milagres ou que se doam à piedade. São temas difíceis que não servem de ataque à religião, mas apontam onde está o erro: nos falsos profetas, naqueles que discriminam a crença alheia e impõem a sua sobre os demais como se fosse a verdade.
Nesse sentido, a ideia trazida no centro da narrativa é uma maneira de forçar a evangelização através da comunhão do sangue. É uma releitura de um mito, tantas vezes tratado na cinematografia do terror, de forma original, com personagens por que nutrimos carinho, pena e ódio a partir do desenvolvimento paciente e respeitoso ao espectador.
É uma baita série que comunica o perdão de si mesmo, a gratidão e o estranhamento provocado pelas contradições que o roteiro se propõe não a resolver, mas a expor. Para Flanagan, não é a fé que é ruim, mas o que fazemos com ela em relação aos outros.
Parece haver uma dificuldade natural na conexão do espectador com a série, em virtude da distância, pois não existe nenhuma tentativa em tentar convidá-lo para aquele mundo em que raros são os que enxergam. Somos testemunhas oculares, mas não percebemos o mundo da forma que a maioria dos personagens.
Assim, na segunda temporada, See continua negando o prazer de estabelecer empatia por aqueles que enxergam através dos demais sentidos que não o da visão. Até admiro esta temporada mais do que a anterior, mas precisava começar com essa ressalva.
Dito isso, See está ainda mais violenta e aprendeu com Game of Thrones, com a qual divide este potencial épico embora em menor escala, a não poupar seus personagens, nem economizar emoções. O episódio derradeiro, por cerca de 35 minutos, apresenta uma batalha campal jamais encenada, pois as estratégias empregadas por Baba Voss contra o exército de seu irmão, Edo, ganham maior relevo no contexto da cegueira.
Pode-se questionar como aqueles personagens, no calor e caos da batalha, sabiam que não estavam lutando contra os seus, ou criticar a confusão provocada pela geografia da cena. Talvez o todo seja menor do que as partes, ainda que não se possa negar o poder individual da imagem em revelar a crueldade do campo de batalha, em que nem crianças são poupadas.
Além disso, a política da série se mostra mais clara, estabelecendo alianças e motivações críveis, oportunidades de amadurecimento da trama a partir dos conflitos apresentados e a certeza de que ainda haverá muito sangue derramado quando a série retornar para a já confirmada 3ª temporada.
Uma boa série é aquela que, apesar de percebermos seus clichês menos elogiosos ou elementos que inverossímeis, ainda mais para quem é do país do futebol, permanecemos envolvidos nas dores dos personagens, choramos suas lágrimas, torcemos por suas conquistas e comemoramos suas alegrias.
Com a primeira temporada, Ted Lasso conquistou todos aqueles ao seu lado e também nós, que passamos a enxergar aqueles personagens com as mesmas lentes bondosas, otimistas e generosas do personagem-título. Quando Jamie Tart tenta recomeçar, nossa desconfiança vai logo para o espaço porque Ted ensinou a gente a crer em mudanças.
Mas otimismo sozinho não conserta o mundo. E esta temporada, até mais do que a passada, proporciona mais momentos angustiantes e dolorosos. Se Ted começou a primeira temporada como comédia indecisa em se aventurar nos elementos dramático, agora os aceita como parte indissociável.
É que a série é um reflexo de Ted: na superfície, cômica, despojada. bonachona. Na essência, porém, reflexiva e introspectiva. Esta temporada proporciona episódios de leveza (como aquele inspirado em comédias românticas e o do natal), bem como há outros que acertam em cheio no drama, até na eleição de um antagonista improvável.
Claro, Ted ensinou que o antagonismo só existe porque ainda não se pôde acessar os caminhos certos da empatia. Então, desconfio que a cena final da temporada - que não precisaria ter aquela viradinha pra câmera com a quebra da quarta parede - é somente desculpa para uma correção de rumo ao estilo Ted Lasso. Com protagonistas cativantes igual ao personagem-título, esta série pode continuar por quantas temporadas quiser.
Sem depender, nem interferir com o universo cinematográfico e televisivo da Marvel, ao menos a primeira vista, What If...? tem a liberdade de jogar com as relações de causa e efeito. Com tal liberdade, a série animada devolve a empolgação, o maravilhamento até, que começou a estar carente nas produções do estúdio. Tudo isto dentro das regras do subgênero ou mesmo da lógica que rege os personagens. É uma subversão controlada, mas ainda assim uma subversão.
A subversão não está apenas na mudança do gênero do Capitão América, agora Capitã Carter, nem somente da identidade do Senhor das Estrelas, T'Challa, é maior do que isto. É como eventos aparentemente minúsculos podem desencadear alterações significativas na personalidade dos heróis. Tony Stark continua egocêntrico, mas ao não poder testar a própria vida, o narcisismo se torna maior do que o heroísmo. Sem desafiar a imaturidade, Thor permanece o garotão festeiro que encontramos no primeiro filme.
O prisma do multiverso, apresentado pelo Vigia, oferece possibilidades infinitas, e estas moldam personalidades como massas de modelar. Em alguns casos, apesar da duração curta dos episódios, existe o resgate de personagens mal aproveitados nos filmes. Como o caso de Ultron, cuja retratação termina por tornar ainda mais obsoleta aquela vista antes em Vingadores: Era de Ultron.
Não faltam emoção e tensão, nem mesmo oportunidades de rever personagens queridos em situações inusitadas, até mesmo como zumbis. Eu adorei, quase sem ressalvas, cada episódio.
São bastante comuns filmes ou séries protagonizados por homens, brancos, héteros e de classe média, mas infrequentes as produções que coloquem estes personagens em atrito com sua subjetividade, dentro de uma sociedade contemporânea em alteração profunda e em ritmo mais veloz do que acompanham. A ansiedade e a síndrome do pânico, meteoros em rota de colisão, sintomatizam a tentativa do Sr. Corman em se adequar e se adaptar a expectativas frustradas, a sonhos não concretizados, a relacionamentos frustrados porém não sem seu aprendizado.
Sr. Corman perdeu sua música e, nesta temporada não renovada pela Apple TV+, tem por objetivo reencontrá-la diante do cenário apocalíptico provocado pela pandemia do Covid-19 (que maximiza infinitamente a ansiedade do protagonista).
Criada, dirigida e protagonizada por Joseph Gordon-Levitt, a série é humana o bastante para sua simplicidade ser acolhedora. Sr. Corman deve perdoar-se, aprender a conviver com aqueles mais próximos - colega de quarto, mãe, pai - e tentar derrotar a ansiedade nesta cruzada. A partir de elementos associados ao cinema independente, o drama não advém de ações ou eventos, mas de emoções represadas, e a câmera na mão, instável, parece apropriada em se manter perto do protagonista e de seu estado psicológico.
Ficamos próximos dos sentimentos da mãe (Debra Winger), do pai (Hugo Weaving, que atuação imensa), de seu colega de quarto (Arturo Castro, que encabeça um dos melhores episódios), porque dentro da lógica de Joseph Gordon-Levitt, cada detalhe, cada indivíduo importa a ponto de merecer a ênfase da câmera. O drama de pessoas comuns é a matéria prima da série de que mais gostei, até agora, e de que me despeço com o sentimento de dever cumprido: algumas relações permanecem inconclusiva, mas sabemos que Corman conhecerá os meios para reencontrar sua música e enfrentar sua ansiedade.
Esta minissérie retrata com excelência como a presença de João de Deus incentivou o turismo religioso e o desenvolvimento socioeconômico em Abadiânia, e com menos excelência a trajetória da nefasta figura título e os crimes que cometeu contra centenas de mulheres e até adolescentes e crianças.
Gosto de como a minissérie submete os fragmentos filmados na época ao juízo contemporâneo. Ou seja, vemos João de Deus pelo sujeito que era de verdade, não a figura que fingia ser. Isto permite ressignificar as imagens de arquivo: no olhar distanciado, alheio até, enxergamos a figura do predador correndo em busca da presa. Não existe mais a imagem do homem santo, só do monstro.
A minissérie recapitula a ascensão de João, dentro do cenário nacional e internacional, e logo abre a porta aos crimes de abuso sexual, que serão objeto dos episódios seguintes, inclusive com a participação de sobreviventes que se dispuseram a mostrar, ou não, o rosto e ceder a voz para que readquirissem o controle tomado por um ato inominável.
É importante que assistamos e escutemos o relato destas mulheres corajosas e a narrativa demonstra astúcia em continuar revelando a quantidade de pessoas que continuam cegas às maldades de João, inclusive aquelas que devoram a infâmia para obter uma notoriedade almejada. Se você tiver estômago forte, é uma minissérie documental breve e envolvente.
Como alguns documentários fizeram, Ponto de Virada se aproveitou do aniversário de 20 anos do atentado terrorista contra os Estados Unidos para discutir o impacto social, geopolítico e cultural do evento definidor dos primeiros anos deste século. Sua proposta é menos de investigar o atentado e mais de análise conjectural. Ou seja, Brian Knappenberger, o diretor, debruça-se sobre as consequências internas e externas pós o ato desde a decisão de declarar guerra contra uma organização terrorista até os eventos subsequentes em que as tropas americanas invadem o Iraque, sob o falso de pretexto de o país albergar armas de destruição em massa.
Os cinco episódios da minissérie mesclam a abordagem humanizada, em que agentes contestam ou confirmam as decisões geopolíticas tomadas pelo governo George Bush e depois Barack Obama e Donald Trump, ou vítimas lamentam a morte de entes queridos e recordam da tragédia, com a abordagem jornalística, mais preocupada em analisar documentos e fatos e chegar à verdade que estes revelarão. Com base nisto, a minissérie obriga a reflexão de quem saiu vitorioso da guerra ao terror, se os Estados Unidos ou Osama Bin Laden? Ainda mais considerada a quantidade de organizações terroristas que se proliferaram depois de o país ocupar e destruir cidades sem qualquer plano de saída nem de reconstrução do país em uma democracia funcional.
A minissérie é evidência, pela sua existência, de como os Estados Unidos ainda não aprenderam a lidar com o luto proveniente do ato terrorista e, no decorrer do processo, terminaram por se transformarem nos mesmos monstros que tentaram combater. Seus soldados até cortaram a cabeça da hidra, mas, igual à mitologia, logo outras nasceram no lugar, onde permanecem até hoje.
Quem não apresentou sintomas de doenças psíquicas nos anos passados não está na sintonia do mundo: ansiedade, depressão, síndrome do pânico, síndrome do impostor, seja o que for, todos precisam de tratamento para se compatibilizarem com o ritmo da sociedade contemporânea e as exigências desta, e um resort bem heterodoxo é onde nove estranhos, assistidos por uma guru e sua equipe igualmente danificados, atravessam o purgatório das dores, frustrações e ressentimentos para emergirem pessoas melhores. Com todos estes sintomas no mesmo cozido interpretados por este elenco talentoso, não é difícil que Nove Desconhecido apresente-se como uma minissérie chamativa.
É também chamativo como, independente dos nomes no elenco ou na produção, a diferença entre remédio e veneno continua sendo a dose. E a desta minissérie é exagerada, especialmente nos episódios a partir dos quais o mistério em torno de Tranquillum é revelado, e importado na forma mais expressiva dos efeitos do tratamento na percepção dos personagens. Além disto, por mais que entremos em contato com os seus dramas, é curioso como a maioria dos personagens permanecem distantes de nós a ponto de o êxito, ou não, do tratamento deixar de ser relevante. Ou seja, não queremos que estes nove sejam curados, queremos apenas saber o mistério em torno das ameças de morte a Masha.
Ao invés de ser um mergulho na psiquê da pessoa contemporânea, a narrativa se torna um thriller de mistério. E não quero afirmar que não possa ser as duas coisas, somente que insiste mais neste último em detrimento daquele, sem que nenhum dos dois seja verdadeiramente satisfatório no fim. E, na tendência de gamificação da vida cotidiana, a narrativa é subdividida em fases, que são as etapas do tratamento, e, cada uma destas fases, com predileção a um ou dois personagens em detrimento do todo. Nem é que não tenha gostado da minissérie, mas simplesmente não decola além da zona de conforto, ainda mais com o pedigree do elenco, a temática contemporânea e as possibilidades de misturar tantos humores em uma panela de pressão.
O colégio de Moordale é uma espécie de utopia em que as pessoas conversam a respeito de seus problemas individuais (incluídos os de cunho identitário, sexual, existencial etc) e aprendem a ser melhores versões de si mesmos com o poder da honestidade. Não só a honestidade com os outros, mas sobretudo consigo mesmo. Em vez de resolver questões na base do acaso, da inspiração divina ou da declaração de amor eterno que remenda as dores só em um momento - como acontece na maioria das comédias adolescentes, sejam românticas ou não -, Sex Education investe no diálogo como a ponte para acessar o outro. É raro enxergar a defesa deste valor e melhor ver como isto rende uma temporada mais madura.
Faz sentido que seja assim, pois os tempos que vivemos são de guerra perpétua e terra arrasada, não de diplomacia e aproximação. É por isto que a vilã (“vilã” para ser sincero com a proposta da narrativa) é uma personagem cujo nome significa esperança (Hope) mas na realidade é a cara do retrocesso. Suas intenções podem soar nobres, em tentar tornar Moordale uma referência educacional, porém sua execução revela a forma míope com que tenta enfiar pessoas diferentes dentro de caixas. Uniformizá-los, impor-lhes uma conformidade a padrões estabelecidos e deseducar sexualmente é uma forma de retirar a subjetividade do indivíduo; não que os alunos não metam os pés pelas mãos, mas aí só estão agindo conforme suas idades.
Esta temporada é, talvez, a melhor, ao menos até os três episódios finais que sugerem estarmos assistindo à temporada final (a série já está renovada para a quarta), quando isto é provocado pela forma acelerada com que resolve a dúzia de conflitos introduzida. Não ajuda o fato de haver muitos personagens para conciliar, com alguns abandonados (Ruby), outros subdesenvolvidos (Isaac e até Hope, cujo humanização se resume a duas cenas). Faria até sentido se fosse a despedida da série, mas não é. Assim, o que me impediu de amar esta temporada foi a pressa adolescente que não me deixou curtir os momentos com a calma que deveriam ser apreciados. Ainda assim, melhor do que 99% da produção adolescente.
Durante os primeiros meses da pandemia, tentei reviver a minha infância quando assistia a programas infantis na manhã e passei a assistir a episódios de séries animadas. Isto foi meio ao acaso e começou com The Midnight Gospel. Aí emendei com BoJack Horseman e veio Ricky & Morty. Esta experiência fazia-me ansiar as manhãs, já que me policiava só para ver 1 episódio/dia, e dava algum sentido à insanidade que vivíamos/vivemos. Fui da filosofia à reflexão sobre depressão e autoajuda e parei numa anarquia niilista.
Como amo a lógica insana e libertina que rege as ações de Rick & Morty. São 20 minutos semanais que brincam com ciência e referências cinematográficas enquanto desprezam a vida e as relações familiares mais óbvias. A fundação da série está na anarquia, no caos e no acaso com que enxerga um personagem cujo conhecimento o torna divino, e por esta razão é capaz de enxergar a realidade a seu redor como algo sem muito sentido. Nem por isto deixa de expressar relações de afeto, como com o melhor amigo, Homem-Pássaro ou Morty.
A série continua a brincar com o próprio cânone de forma autorreferencial em episódios independentes ou inter-relacionados para empurrar a história adiante. Enquanto faz isto, sempre gargalho, reflito temas existenciais acerca de mortalidade, (in)finitude, propósito etc, e ainda levo na bagagem experiências em animação que não imaginaria possíveis quando era criança e assistia à TV Xuxa.
Às vezes eu pergunto a mim mesmo onde estava com a cabeça por jamais haver visto a esta premiadíssima minissérie em 4-episódios. A proposta é de retratar, de forma autêntica, 20 anos na vida de Olive a partir de interações em 4 momentos específicos de sua vida. Partimos das partes à compreensão do todo, ou parte dele, já que Olive ensina a importância de enxergar o subtexto disfarçado em cada ação, cada diálogo ou cada intenção para perceber o panorama que rege alguém neste mundo.
Por mais que pareça dificultoso acessar o coração de Olive, que se mantém ranzinza, amarga, afiada e disciplinadora, é fácil perceber que os caminhos para lá estão sob o que podemos perceber. Não é que Olive não sinta, nem ame, mas que, a partir da experiência do suicídio do pai, aprendeu a enxergar o mundo de modo pragmático, mesmo cínico. O jardim de flores a que tanto se dedica externaliza a ânsia pela beleza que não conseguiu cultivar dentro de si, enquanto no interior de casa cuidava dos afazeres domésticos que aleijavam seus sonhos (que não conhecemos, mas deduzimos).
Olive preza a vida, apesar de não aparentar amá-la. Preza o cuidado aos outros, mas não a si mesma. Parece até agir igual a uma rebelde romântica contra a atitude niilista do pai, enquanto Lisa Cholodenko revela níveis de sensibilidade e afeto criados ao longo dos anos e que conferem novo significado às atitudes da personagem. Embora Olive não sinta o amor-paixão por Henry, porém o amor-companheiro, para ela, este é tão ou mais importante que o primeiro. A incapacidade em expressar seus sentimentos não significa não os sentir, mas somente reprimir e convidar a quem desejar romper esta barreira.
Fiz isto de muito bom grado, porque a imensa Frances McDormmand torna fácil se afeiçoar da personagem e tentar buscar as brechas por onde penetrar em seu emocional. Richard Jenkins é mais leve, porém não menos tridimensional em como procura na aceitação daqueles ao redor a forma de conservar o amor próprio. Para concluir, ainda temos Bill Murray, com uma inabalável honestidade ilustrada com o humor caustico do ator. Uma minissérie que transporta o espectador aquele mundo para cativá-lo com simplicidade.
Eu já devo ter visto a maior parte dos dramas policiais, criminais e tribunais que vocês podem imaginar, então o que fez eu me apaixonar por esta minissérie não foi o assassinato brutal de que Naz foi acusado, nem a dúvida razoável em torno da culpabilidade, mas o procedimento como um todo. O desenvolvimento das etapas do sistema acusatório é feito com realismo pelos criadores Steve Zaillian e James Marsh. Não há mocinhos nem bandidos, há pessoas, há muita burocracia, há o desejo de encerrar sua jornada de trabalho a tempo de retornar para casa e descansar.
Ao humanizar todos os personagens da série além dos estereótipos que servem de ponto de partida, a narrativa atinge o ponto invejável que mescla dramaticidade e autenticidade. O detetive prestes a se aposentar de Bill Camp - ator que admiro imensamente - é um bom exemplo: ele não age como age porque é preconceituoso, corrupto, negligente, mas porque as provas são demasiadamente convergentes da culpa de Nas. Se há algo presente nele, além da misantropia, é um desejo intenso por justiça, de forma a justificar seu comportamento nos episódios seguintes.
Já a promotora, interpretada por Jeannie Berlin com uma cadência vocal e um olhar intrusivo sobrepostos à posição de autoridade que possui, caminha sob a linha que separa o interesse político - de que haja julgamento célere do caso - e o ímpeto por justiça, não limitado ao desejo cego de vingar a vítima e a sociedade, mas de realizar isto com o culpado certo. Esta lógica se aplica ao advogado de John Turturro, cuja eczema reforça o sentimento de pária dele, e a Naz, na atuação que trouxe destaque a Riz Ahmed, desumanizado episódio a episódio.
Não há nada de inédito nos temas tratados, o ineditismo está em como isto é feito, a partir de uma meia luz que parece entregar a cidade de Nova York à escuridão descolorida totalmente coerente com o crime brutal investigado. Um mundo de pessoas em tons de cinza, em que nenhuma razão é recriminável, mas justificável. Ora, como julgar John Stone de cobrar por seu trabalho? Ou os taxistas quando tentam reaver seu veículo mesmo que isto os ponha contra Salim, pai de Naz? Uma minissérie irrepreensível para quem ama dramas criminais e achava que a fonte havia secado.
A maior virtude de Atypical está na capacidade que tem de resolver seus conflitos com afeição. Eu sei que esta não é a forma mais realista - ou você acha que uma viagem à Antártida é fácil como faz parecer o roteiro?, mas nem todas as séries precisam disto. E Atypical não tem vergonha da aparenta limitação, porque as relações humanas são tão bem construídas: quem não gostaria de habitar neste mundo em que os personagens se mostram honestos com seus sentimentos ou em que pedir desculpas pudesse (é) o melhor antídoto para dissolver as mágoas?
Esta temporada final se propõe a pontuar desfechos. Não com os pontos finais, pois podemos imaginar os passos, tropeços e como, em família, os Gardner se ajudarão a reerguer, mas com conclusões satisfatórias que justificaram o envolvimento emocional durante quatro temporadas. Não só os Gardner, mas todos os personagens ao redor amadurecem, e mesmo que a forma da narrativa pareça desinteressante ao apelar ao formato sitcom, as relações evidenciam o poder da simplicidade para criar dramas com que podemos nos identificar.
A criadora e diretora de alguns episódios Robia Rashid aproveitou os Gardner, não tão desfuncionais como costumam ser as famílias neste tipo de sitcom, para apresentar um personagem no espectro autista, com as características inerentes e o apoio em ser um cidadão funcional dentro da mesma sociedade preconceituosa. A temporada final ainda pretendeu lidar com a ansiedade (de modo mais livre e não tão acertado, a meu ver) e o desprendimento em busca da independência pessoal e emocional.
O ponto de partida da série é uma comédia de erros, em que a atrapalhada comissária de bordo Cassi acorda, sem memória da noite anterior, ao lado do cadáver de um importante empresário. O álcool se torna uma alternativa que proporciona mais risos do que reflexão, e a série se apoia no carisma de Kaley Cuoco parar criar humor onde deveria haver só apreensão.
Até o jogo mudar.
O mais envolvente nesta série é sua habilidade em parecer uma noitada à espera de uma ressaca moral. O que começa divertido se dilui a cada shot de vodka de Cassie, para dar lugar à comédia de humor ácido misturada com thriller de gato e rato, em que o objetivo é identificar o assassino, enquanto a protagonista sobrevive a poucas e boas (não aqueles ao seu redor).
Se o álcool começou divertido, depois se transforma na válvula de escape niilista de uma mulher traumatizada pelo passado. A investigação aos trancos, barrancos, sorte e azar é sua terapia para revisitar o passado e encontrar a fonte de suas dores. E mesmo que Kaley não seja a melhor atriz para se aventurar no drama que cerca a personagem, ela tampouco nos desaponta, auxiliada por um elenco coadjuvante bastante competente.
Enquanto isto, a série utiliza uma linguagem moderna, que procura manter a atenção do espectador com planos divididos, ritmo acelerado, diálogos rápidos e o movimento como forma de expressar a jornada turbulenta de uma comissária de bordo para sobreviver física e emocionalmente.
Apesar de o charme trapaceiro de Tom Hiddleston abundar pelos poros de Loki, dada a experiência do ator em interpretar o Deus da Mentira, e de a primeira temporada da série reservar duas questões intrigantes (não são as que você está pensando), mais uma vez a Marvel opta pelo confortável e perde a oportunidade de explorar TANTA coisa que não deixa de ser decepcionante mais esta aventura.
É que o roteiro desta primeira temporada de Loki sofre com o problema de excesso de informações, tratadas no rasinho de uma piscina infantil. Em vez de se aprofundar nos temas de ficção-científica misto fantasia de super-heróis ou mesmo nos personagens coadjuvantes e subaproveitados (a exemplo de Mobius, Ravonna e a Caçadora B-15), a série opta por inchar-se de momentos do tipo: "um Loki jacaré!" e "Richard E. Grant de Loki, quem não havia pensado nisso", distraindo a narrativa do que lhe é essencial: o que acontece quando um Loki que não confia em ninguém encontra um Loki não confiável?
Esta questão intrigante parece, mas não é igual a de Batman - O Cavaleiro das Trevas (o objeto inamovível versus a força imparável), pois é óbvio que quem não confia em ninguém tampouco confiaria em alguém não confiável, e o fato de o episódio final dedicar-se a resolver este dilema (ou "dilema") expõe sua fraqueza narrativa.
Mais interessante é o romance narcisista existente entre os Lokis (é óbvio que alguém assim só poderia apaixonar-se por si mesmo), embora não conduza a nenhum propósito glorioso, senão aqueles que estudarão a psiquê do protagonista. Resta uma aventura simplérrima, com visual CGI arroxeado e desinteressante, expositiva a ponto de o vilão precisar explicar tintim por tintim quem é e o que quer. Tem um protagonista carismático? Sim. Uma trilha sonora chamativa (como há muito não se via na Marvel)? Sim. E até um personagem surpresa no episódio final que rouba tudo para si? Sim.
A premissa original de Manhãs de Setembro é o ponto de partida para a rediscussão da questão do conceito de família dentro da sociedade contemporânea e de como o afeto é instrumental para identificá-la. Esta narrativa retrata a experiência de uma mulher trans, sem que a transfobia seja o elemento central, apenas periférico, presente até quando invisível, mas logo desarmado por quem aprendeu a não ouvir desaforos de quem não a aceita por quem é.
Uma cantora talentosa, fã de Vanusa, e que, como qualquer pessoa, precisa encontrar meios de sobreviver dentro de uma metrópole que elimina sonhos e aspirações, ainda mais quando estes vêm de minorias. Cassandra combate o apagamento todos os dias, enquanto se cerca de uma rede de proteção indispensável. A atuação de Liniker aposta na ambivalência de quem precisou esperar demais para viver a vida que pensou para si, não que justifique a maneira como lida com o aparecimento de Gersinho, seu filho, anos depois.
É que Cassandra demonstra o afeto diferentemente do que faz Leide, a mãe de Gersinho, interpretada por Karine Teles com um misto de trambique e desespero por haver esgotado todas as alternativas de maternar adequadamente seu filho. A narrativa expande a ideia de família e alcança também os calorosos personagens interpretados por Gero Camilo e Paulo Miklos. Mesmo porque, enquanto há famílias que se dissolvem, outras se formam na base da certeza de que um membro pode contar com o outro quando precisar.
E a narrativa faz isto sem alardear seus méritos a partir de um sentimentalismo gratuito, mas a partir de uma narrativa urbana e bem montada, em como alterna a marginalidade com a graça de abraçar a própria identidade ou, nos termos do roteiro, o lar que Cassandra montou para si. Que sorte a nossa de sermos convidados a conhecer.
Na primeira vez que encontramos Mare, a detetive está um caco em todas as dimensões de sua vida (emocional, familiar, profissional) e a resposta para isto é a terapia. É através dela que Mare dá passos em direção ao sótão de sua vida - um ponto positivo - mas também é ela que enfraquece a arte de "contação de histórias", pois as emoções tão bem retratadas por Kate Winslet (irrepreensível) são entregues facilmente, a partir de diálogos expositivos, a cada reencontro com a terapeuta.
A intenção é nobre; a execução, não. Aliás, a HBO parece haver criado a fórmula da minissérie dramática: convocar um ator / atriz renomado e retratar uma comunidade fechada americana composta por pessoas que permaneceram em inércia emocional e geográfica, ao redor de segredos ocultos, sentimentos reprimidos e a sensação de que todo mundo conhece todo mundo o bastante para saber quem é o responsável por um crime (ou dois). Intrigou-me como as verdades não vazaram por entre as frestas das famílias, já que a resolução de ambos os casos (um desaparecimento e um assassinato) vieram de uma investigação costumeira, não de um imenso quebra-cabeças.
Pois aí que a série me perdeu: apesar de se tratar de um whodunit - ou seja, queremos saber quem cometeu o crime -, a narrativa não é sobre isto, mas sobre como Mare subjuga a vida à investigação. A inclusão do suspeito da semana ao final de cada episódio só enfraquece o que a narrativa tem de melhor, o desenvolvimento de sua protagonista complexa. A névoa de mistério sufocou o drama, pois Craig Zobel não me pareceu apto a conciliar ambos, mas sim em colocá-los um contra o outro: a narrativa acontece nos intervalos da investigação, apesar de a direção enfatizar o contrário.
Além disto, não enxerguei verdade na conclusão: Mare é uma mulher torturada entre a maternidade, que julga ser mal sucedida a ponto de precisar redimir-se criando o neto, e o trabalho, contrário às normas policiais. É uma carcaça amarga, caminhando pela apática Easttown, um cemitério apropriado a sonhos perdidos e povoado por famílias que não dialogam. É por isto que a relação de Mare em face à autoria do crime me pareceu contraditória e falsa, criando um desfecho ao caso que, a meu ver, é oposto ao que a Mare que havíamos visto até então faria.
De Rainha do Veganismo a Foragida (1ª Temporada)
2.9 42Por mais que a ficção se esforce, a vida real é sempre mais estranha e surpreendente. Ao longo de 4 episódios, Bad Vegan (título original, já que o nacional não desce) retrata a decadência da proprietária de um restaurante badalado em Manhattan ao se relacionar com um homem manipulador. Bastaram alguns anos com Anthony Strangis - se algum roteirista batizasse a personagem assim, acusariam-no de falta de criatividade - para que tudo o que Sarma Melngailis havia construído estragasse como uma fruta esquecida no fundo da geladeira.
Chris Smith dirige com distância e ceticismo. Ao se fazer escutar na entrevista com Sarma, quando o frequente seria invisibilizar a figura do documentarista, Chris tenta se colocar no papel do espectador e realiza as perguntas difíceis, do tipo: como uma mulher, inteligente, bem-sucedida igual a você pôde acreditar em coisas do tipo: farei o seu cachorro viver para sempre. (Não precisa olhar longe, já que não faltam religiões que prometem vida eterna).
Ao diminuir a relação de empatia com Sarma, aumenta-se o escrutínio do espectador. É possível permanecer ao lado dela, mas com ressalva, até pela falta de empatia dela própria com os funcionários que deixou na mão. Chris ainda introduz entrevista com pessoas não simpáticas a Sarma ou irônicas, a fim de revelar que a forma com que é enxergada não é unânime. Sarma é um mistério, aparenta estar atordoada, como se tentasse entender o que aconteceu, anos após. Como personagem, é fascinante porque cria em nós o desejo de penetrar dentro de sua cabeça e enxergar o mundo por seus olhos.
Enquanto retrata a história como um acumulado de reviravoltas, para lá, para cá, Chris Smith também critica a postura dos jornalistas da época, que enrijeceram a régua moral apenas porque Sarma era uma mulher vegana, o que não aconteceria se fosse homem não vegano. E também termina com uma pulga atrás da orelha - que a própria Sarma prometeu vir a público desmentir - mas aí serão cenas de capítulos por vir.
Pacificador (1ª Temporada)
4.2 339 Assista AgoraO cinema de super-herói precisa de um James Gunn, autorreferente em destacar e criticar as convenções do subgênero enquanto as utiliza ou recicla para criar novas convenções. Parece redundante, mas o trabalho dele - que dirige a maioria dos episódios da temporada além de haver escrito ou colaborado em todos os episódios - é numa tentativa de tirar o subgênero da mesmice que é a Marvel e do excesso de iterações hiper-violentas e sérias (The Boys, Invencível, Kick-Ass).
Ele encontra o meio termo para que a violência não seja alienante, a sátira não fique repetitiva e a subversão do super-herói clássico seja feita com sucesso sem perder a característica sacrificial que o orienta. Como herança de Esquadrão Suicida, a série é violenta e reencontra um tema que James Gunn tem afeição: o que chamaríamos de monstro não necessariamente é mais monstruoso do que a ação humana. O humor é contrabalanceado com a ação. Não sufoca a série em torná-la uma forma de sitcom vestida de spandex, mas cria momentos memoráveis como as dúzias de nomes citados por John Cena em certo momento.
E por falar nele, John Cena tem um charme Schwarzenegger, sem o obstáculo do idioma (que sempre dificultou os primeiros papéis de Arnold) e com maior talento para atuação e sem medo nenhum de soar ridículo. Seu Pacificador já é, essencialmente, uma caricatura (um sujeito que mata quem quer que seja para ter paz), então a composição permite maior flexibilidade. Isto vale para o elenco inteiro que, sem exceções, está confortável com seus personagens desde o minuto 1 até o final.
Com todos os elementos bem encaixadinhos - roteiro absurdo mas verossímil dentro de suas regras e convenções, elenco sintonizado com os personagens, encenação satírica, bem humorada e violenta - não é surpresa nenhuma que O Pacificador seja um bálsamo para um gênero que vira e mexe é a mesma coisa.
Gavião Arqueiro
3.5 327 Assista AgoraSinto falta de aventuras de super-heróis iguais as do Homem-Formiga ou esta minissérie do Gavião Arqueiro, em que o espetacular é deixado em segundo plano em favor do mundano. Mesmo porque, apesar de serem os feitos e sacrifícios que marcam a jornada do super-herói, ele não é nada sem seu alter-ego debaixo da máscara, um homem/uma mulher que tem atribuições familiares, domésticas, sociais, e que deve conciliar isto com o "emprego" heroico.
Assim, esta minissérie é gostosa por se colocar no devido lugar desde o início, como um compromisso natalino inconsequente e que serve a função de introduzir a Gaviã Arqueira. Só ajuda que seja a Hailee Steinfeld a intérprete, já que atriz mais carismática, de sua faixa etária, não há. Entre a relação de fã/ídolo e também mestre/aprendiz, os arqueiros Clint e Kate testam os limites desta parceria improvisada durante o natal nova iorquino. E a dinâmica é boa, até quando Jeremy Renner parece estar entediado ou rabugento (eu tenho a sensação de que é o ator que menos gosta de ter contrato com a Marvel, e vocês?).
Gavião Arqueiro decepciona mesmo por excesso. Não bastasse ter a trama que envolve o Ronin e uma organização criminosa comandada por um popular personagem das HQs, a narrativa ainda acha espaço para reintroduzir Yelena, em uma jornada de vingança que sabemos que não dará em nada já que, PELA MILÉSIMA VEZ MARVEL!, ninguém acredita quando heróis brigam entre si. Com exceção de um único personagem, você não acredita em nenhum dos vilões que a narrativa apresenta, como Eco, interpretada pela atriz surda e deficiente física Alaqua Cox, cuja mudança de lado só não é previsível para quem está vendo seu primeiro filme/sua primeira série.
A série é leve, divertida, inconsequente, até demais, com um episódio final inchado, em que muita coisa acontece e nada parece ter efeito e consequência. São muitos capangas, muitas flechas com "poderes" curiosos, muitos personagens, quando só bastaria a dinâmica entre Kate, Clint e Lucky. Mas vai lá dizer pro Sr. Boné diminuir a escala de suas produções e se concentrar no lado humano, capaz de ele surtar.
Colin em Preto e Branco
4.5 35 Assista AgoraGosto de pensar no processo terapêutico que é revisitar a juventude e reencontrar o racismo estrutural integrado dentro do comportamento dos pais, amigos, treinadores e praticamente todos aqueles com quem Colin Kaepernick conviveu, enquanto realiza o paralelo com a exclusão da NFL depois de um gesto que objetivava, justamente, combater este racismo. Apesar de ter momentos de coach que, frequentemente, soam deslocados dentro do contexto narrativo, a minissérie Colin em Preto e Branco é feliz em ilustrar o olhar de hoje do atleta reconhecendo toda a violência que sofreu ontem e como isto o moldou para ser quem é.
Com um recorte bem definido, iniciado a partir dos testes para integrar o time de futebol americano da escola até ser selecionado por uma faculdade, Colin em Preto e Branco é um documentário (não parece, eu sei) que adota o artifício de reconstituições e de insights com figuras históricas e contemporâneas para revelar, por exemplo, como o corte de cabelo pode ser desvirtuado pelo olhar branco que não percebe, nem quer, como encena uma busca pela identidade a muitos negada.
Existe uma simplicidade em contar a história, que toma emprestados elementos que já vimos em filmes parecidos, porém envoltos em uma dimensão racial e política que questiona o sistema, enquanto vivencia a juventude. Colin, o real, enxerga isto a partir de uma janela aberta à sua vida, com uma câmera que se movimenta em sua direção a fim de revelar a grandeza do homem e a sensibilidade no olhar. Já a Jaden Michael, o Colin fictício, é confiada a parte sensível somente, pois, jovem, ainda não enxerga as nuances que apenas a maturidade e o conhecimento expõem. Até pode perceber a violência, mas não sabe quantificá-la, qualificá-la, identificá-la.
Este jogo caracterizado pelas trocas entre o Colin real, que observa até agir, e o da ficção, que sobrevive até empoderar-se, é a alma de uma minissérie cativante, pela forma como é narrada, e indispensável, pelo tema apresentado.
Maid
4.5 366 Assista AgoraÉ difícil não se emocionar com a trajetória universal de Alex, que parece com a de muitas mulheres que precisaram adiar ou interromper os seus sonhos por causa de uma gravidez não planejada e que sobrevivem, ou às vezes não sobrevivem!, ameaças e abusos físicos, sexuais, emocionais e psicológicos de seus companheiros. Mal sabem que estão vivendo em uma situação abusiva, o que esta minissérie torna visível em imagens a partir de uma metáfora envolvendo uma floresta bem densa e um buraco de onde é difícil sair.
Maid conversa até com quem não vive situações assim, mas já ouviu um "entra no carro!" gritado a plenos pulmões ou uma notícia feliz ser recebida com desdém ou até irritação por quem deveria comemorar junto. Indispensável do ponto de vista da relevância, Maid é também uma aventura de empoderamento bem planejada em torno de eventos - igual ao caderno de histórias de Alex - e ancorada na atuação definidora de carreira de Margaret Qualley. Ao rejeitar o rótulo de ser uma abusada - no início, claro -, a atriz consegue mascarar uma ilusão de que "isto não acontece comigo" revela apenas nas entrelinhas. Sua habilidade de marejar os olhos, como se brigasse com as lágrimas, ou de encarar, apática, a "prisão" onde está são artifícios que utiliza para contrastar com a determinação e dinamismo em lidar com o problema dos outros.
A profissão de diarista é a metáfora de uma mulher que arruma a casa (e até as vidas!) de algumas mulheres, embora se sinta impedida de fazer o mesmo consigo, ante a dificuldade de reconhecer o abuso que vive enquanto há tempo. O restante do elenco compõe o mosaico de uma sociedade que não mete a colher no problema dos vizinhos, mas que enxerga envergonhada sua própria covardia e falta de agência em interceder em defesa de Alex (ou de qualquer outra mulher abusada). Ao aproximar a narrativa do mundo real, Maid também expõe como a situação de abuso pode ser transmitida de mãe para filha, caso não se corte a questão pela raiz: nunca é a culpa da vítima; mas a ausência de conscientização de que há saída, rede apoio, justiça, vida e sonhos longe do abusador.
Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista no Chile
3.9 12 Assista AgoraA divisão em episódios ajuda a contextualizar a história da Colônia (In)Dignidad ao longo da trajetória política do Chile, contando da queda do regime nazista, à eleição do governo popular de Salvador Allende, ao golpe militar até à redemocratização. Tal articulação evidencia o status de intocável deste experimento em maldade humana por parte de quem detinha o poderio militar e acobertava a faceta nazista e abusiva desta organização.
Paul Schäfer é um destes monstros que a história colocou diante da humanidade para evidenciar como esta abaixa a cabeça à maldade e alienação quando se deixa manipular. A minissérie oportuniza que membros da Colônia apresentem seus depoimentos e manifestações de culpa - algumas das quais eu não compro - e também que vítimas, à época crianças e adolescentes, submetidas ao abuso sexual de Paul comentem a respeito da lavagem cerebral e do processo necessário a fim de identificar o estado de violência com que conviviam.
Como Paul esquivava de fotografias e vídeos, a minissérie revela o homem mais a partir de suas ações do que de suas manipulações. E revela, sem margem para dúvidas, como o nazismo estava alinhado com os regimes militares truculentos e desumanos da América do Sul de décadas passadas.
Your Honor (1ª Temporada)
3.8 72 Assista AgoraNinguém é incorruptível. Mesmo o mais ético e moral dos homens pode agir contra seus princípios com o devido estímulo. Pensada desta forma, esta série renovada para uma 2ª temporada é uma evidência de um arco dramático negativo que enxerga um homem bom e admirado pelos seus pares em uma espiral descendente para salvar o futuro da única pessoa que lhe importa: o filho.
Até que ponto a paternidade pode servir de excludente de culpa das ações de Michael Desiato? Ações estas que refletem, como um efeito borboleta, em todas as pessoas ao redor, contaminando-as como se fosse um câncer e revelando o racismo estrutural que existe na sociedade americana, disposta a sacrificar um jovem negro para salvar um da mesma idade, mas branco.
Caso o roteiro da série fosse melhor acabado ou a temporada fosse enxuta, as questões talvez se sobressaíssem em relação às conveniências, às coincidências ou à suspensão de descrença que a narrativa pede de nós. Enquanto Michael utiliza sua influência para ditar as regras jogo, a narrativa permanece autêntica porque o poder tem destas relações promíscuas. É que a partir do momento em que Michael começa, ele próprio, a mexer as peças no tabuleiro, o roteiro desanda.
As atuações excelentes de Bryan Cranston, Michael Stuhlbarg e Carmen Ejogo ajudam a complicar o desenho psicológico de cada um deles. Discordamos e inadmitimos as ações, mas as acompanhamos porque fazem parte de um contrato moral que a narrativa fez com nós e que deságua na questão retórica: se você fosse pai, faria o mesmo que Michael? A resposta pode ser um sonoro "não", até estar na mesma situação dele. Você pode torcer contra seus esforços - eu fiz isto - ou se manter neutro, mas não pode ignorar a ironia que o desfecho proporciona.
Your Honor merecia ser uma minissérie só por causa desse momento, pois prevejo que a 2ª temporada tentará consertar o estrago.
Missa da Meia-Noite
3.9 730Mike Flanagan encontrou um lar na Netflix em que pôde desenvolver, com paciência, minisséries de terror caracterizadas por mosaicos de personagens, trabalhados com densidade e humanidade.
Aqui, o diretor propõe-se a debater a fé e espiritualidade a partir da trama fantástica de um pároco substituto que chega a uma pequena comunidade insular com uma proposta radical de evangelização, ao mesmo tempo em que retorna ao lar o filho pródigo.
O estudo narrativo apresenta como uma parte relevante da sociedade está disposta a virar o rosto a iniquidades, desde que referendem seus preconceitos tingidos de religiosidade. Junto disto, também apresenta monstros que realizam milagres ou que se doam à piedade. São temas difíceis que não servem de ataque à religião, mas apontam onde está o erro: nos falsos profetas, naqueles que discriminam a crença alheia e impõem a sua sobre os demais como se fosse a verdade.
Nesse sentido, a ideia trazida no centro da narrativa é uma maneira de forçar a evangelização através da comunhão do sangue. É uma releitura de um mito, tantas vezes tratado na cinematografia do terror, de forma original, com personagens por que nutrimos carinho, pena e ódio a partir do desenvolvimento paciente e respeitoso ao espectador.
É uma baita série que comunica o perdão de si mesmo, a gratidão e o estranhamento provocado pelas contradições que o roteiro se propõe não a resolver, mas a expor. Para Flanagan, não é a fé que é ruim, mas o que fazemos com ela em relação aos outros.
See (2ª Temporada)
3.8 26 Assista AgoraParece haver uma dificuldade natural na conexão do espectador com a série, em virtude da distância, pois não existe nenhuma tentativa em tentar convidá-lo para aquele mundo em que raros são os que enxergam. Somos testemunhas oculares, mas não percebemos o mundo da forma que a maioria dos personagens.
Assim, na segunda temporada, See continua negando o prazer de estabelecer empatia por aqueles que enxergam através dos demais sentidos que não o da visão. Até admiro esta temporada mais do que a anterior, mas precisava começar com essa ressalva.
Dito isso, See está ainda mais violenta e aprendeu com Game of Thrones, com a qual divide este potencial épico embora em menor escala, a não poupar seus personagens, nem economizar emoções. O episódio derradeiro, por cerca de 35 minutos, apresenta uma batalha campal jamais encenada, pois as estratégias empregadas por Baba Voss contra o exército de seu irmão, Edo, ganham maior relevo no contexto da cegueira.
Pode-se questionar como aqueles personagens, no calor e caos da batalha, sabiam que não estavam lutando contra os seus, ou criticar a confusão provocada pela geografia da cena. Talvez o todo seja menor do que as partes, ainda que não se possa negar o poder individual da imagem em revelar a crueldade do campo de batalha, em que nem crianças são poupadas.
Além disso, a política da série se mostra mais clara, estabelecendo alianças e motivações críveis, oportunidades de amadurecimento da trama a partir dos conflitos apresentados e a certeza de que ainda haverá muito sangue derramado quando a série retornar para a já confirmada 3ª temporada.
Ted Lasso (2ª Temporada)
4.4 157Uma boa série é aquela que, apesar de percebermos seus clichês menos elogiosos ou elementos que inverossímeis, ainda mais para quem é do país do futebol, permanecemos envolvidos nas dores dos personagens, choramos suas lágrimas, torcemos por suas conquistas e comemoramos suas alegrias.
Com a primeira temporada, Ted Lasso conquistou todos aqueles ao seu lado e também nós, que passamos a enxergar aqueles personagens com as mesmas lentes bondosas, otimistas e generosas do personagem-título. Quando Jamie Tart tenta recomeçar, nossa desconfiança vai logo para o espaço porque Ted ensinou a gente a crer em mudanças.
Mas otimismo sozinho não conserta o mundo. E esta temporada, até mais do que a passada, proporciona mais momentos angustiantes e dolorosos. Se Ted começou a primeira temporada como comédia indecisa em se aventurar nos elementos dramático, agora os aceita como parte indissociável.
É que a série é um reflexo de Ted: na superfície, cômica, despojada. bonachona. Na essência, porém, reflexiva e introspectiva. Esta temporada proporciona episódios de leveza (como aquele inspirado em comédias românticas e o do natal), bem como há outros que acertam em cheio no drama, até na eleição de um antagonista improvável.
Claro, Ted ensinou que o antagonismo só existe porque ainda não se pôde acessar os caminhos certos da empatia. Então, desconfio que a cena final da temporada - que não precisaria ter aquela viradinha pra câmera com a quebra da quarta parede - é somente desculpa para uma correção de rumo ao estilo Ted Lasso. Com protagonistas cativantes igual ao personagem-título, esta série pode continuar por quantas temporadas quiser.
What If...? (1ª Temporada)
3.8 279 Assista AgoraSem depender, nem interferir com o universo cinematográfico e televisivo da Marvel, ao menos a primeira vista, What If...? tem a liberdade de jogar com as relações de causa e efeito. Com tal liberdade, a série animada devolve a empolgação, o maravilhamento até, que começou a estar carente nas produções do estúdio. Tudo isto dentro das regras do subgênero ou mesmo da lógica que rege os personagens. É uma subversão controlada, mas ainda assim uma subversão.
A subversão não está apenas na mudança do gênero do Capitão América, agora Capitã Carter, nem somente da identidade do Senhor das Estrelas, T'Challa, é maior do que isto. É como eventos aparentemente minúsculos podem desencadear alterações significativas na personalidade dos heróis. Tony Stark continua egocêntrico, mas ao não poder testar a própria vida, o narcisismo se torna maior do que o heroísmo. Sem desafiar a imaturidade, Thor permanece o garotão festeiro que encontramos no primeiro filme.
O prisma do multiverso, apresentado pelo Vigia, oferece possibilidades infinitas, e estas moldam personalidades como massas de modelar. Em alguns casos, apesar da duração curta dos episódios, existe o resgate de personagens mal aproveitados nos filmes. Como o caso de Ultron, cuja retratação termina por tornar ainda mais obsoleta aquela vista antes em Vingadores: Era de Ultron.
Não faltam emoção e tensão, nem mesmo oportunidades de rever personagens queridos em situações inusitadas, até mesmo como zumbis. Eu adorei, quase sem ressalvas, cada episódio.
Mr. Corman (1ª Temporada)
3.6 22São bastante comuns filmes ou séries protagonizados por homens, brancos, héteros e de classe média, mas infrequentes as produções que coloquem estes personagens em atrito com sua subjetividade, dentro de uma sociedade contemporânea em alteração profunda e em ritmo mais veloz do que acompanham. A ansiedade e a síndrome do pânico, meteoros em rota de colisão, sintomatizam a tentativa do Sr. Corman em se adequar e se adaptar a expectativas frustradas, a sonhos não concretizados, a relacionamentos frustrados porém não sem seu aprendizado.
Sr. Corman perdeu sua música e, nesta temporada não renovada pela Apple TV+, tem por objetivo reencontrá-la diante do cenário apocalíptico provocado pela pandemia do Covid-19 (que maximiza infinitamente a ansiedade do protagonista).
Criada, dirigida e protagonizada por Joseph Gordon-Levitt, a série é humana o bastante para sua simplicidade ser acolhedora. Sr. Corman deve perdoar-se, aprender a conviver com aqueles mais próximos - colega de quarto, mãe, pai - e tentar derrotar a ansiedade nesta cruzada. A partir de elementos associados ao cinema independente, o drama não advém de ações ou eventos, mas de emoções represadas, e a câmera na mão, instável, parece apropriada em se manter perto do protagonista e de seu estado psicológico.
Ficamos próximos dos sentimentos da mãe (Debra Winger), do pai (Hugo Weaving, que atuação imensa), de seu colega de quarto (Arturo Castro, que encabeça um dos melhores episódios), porque dentro da lógica de Joseph Gordon-Levitt, cada detalhe, cada indivíduo importa a ponto de merecer a ênfase da câmera. O drama de pessoas comuns é a matéria prima da série de que mais gostei, até agora, e de que me despeço com o sentimento de dever cumprido: algumas relações permanecem inconclusiva, mas sabemos que Corman conhecerá os meios para reencontrar sua música e enfrentar sua ansiedade.
João de Deus: Cura e Crime
3.6 95Esta minissérie retrata com excelência como a presença de João de Deus incentivou o turismo religioso e o desenvolvimento socioeconômico em Abadiânia, e com menos excelência a trajetória da nefasta figura título e os crimes que cometeu contra centenas de mulheres e até adolescentes e crianças.
Gosto de como a minissérie submete os fragmentos filmados na época ao juízo contemporâneo. Ou seja, vemos João de Deus pelo sujeito que era de verdade, não a figura que fingia ser. Isto permite ressignificar as imagens de arquivo: no olhar distanciado, alheio até, enxergamos a figura do predador correndo em busca da presa. Não existe mais a imagem do homem santo, só do monstro.
A minissérie recapitula a ascensão de João, dentro do cenário nacional e internacional, e logo abre a porta aos crimes de abuso sexual, que serão objeto dos episódios seguintes, inclusive com a participação de sobreviventes que se dispuseram a mostrar, ou não, o rosto e ceder a voz para que readquirissem o controle tomado por um ato inominável.
É importante que assistamos e escutemos o relato destas mulheres corajosas e a narrativa demonstra astúcia em continuar revelando a quantidade de pessoas que continuam cegas às maldades de João, inclusive aquelas que devoram a infâmia para obter uma notoriedade almejada. Se você tiver estômago forte, é uma minissérie documental breve e envolvente.
Ponto de Virada: 11/9 e a Guerra contra o Terror
4.3 38 Assista AgoraComo alguns documentários fizeram, Ponto de Virada se aproveitou do aniversário de 20 anos do atentado terrorista contra os Estados Unidos para discutir o impacto social, geopolítico e cultural do evento definidor dos primeiros anos deste século. Sua proposta é menos de investigar o atentado e mais de análise conjectural. Ou seja, Brian Knappenberger, o diretor, debruça-se sobre as consequências internas e externas pós o ato desde a decisão de declarar guerra contra uma organização terrorista até os eventos subsequentes em que as tropas americanas invadem o Iraque, sob o falso de pretexto de o país albergar armas de destruição em massa.
Os cinco episódios da minissérie mesclam a abordagem humanizada, em que agentes contestam ou confirmam as decisões geopolíticas tomadas pelo governo George Bush e depois Barack Obama e Donald Trump, ou vítimas lamentam a morte de entes queridos e recordam da tragédia, com a abordagem jornalística, mais preocupada em analisar documentos e fatos e chegar à verdade que estes revelarão. Com base nisto, a minissérie obriga a reflexão de quem saiu vitorioso da guerra ao terror, se os Estados Unidos ou Osama Bin Laden? Ainda mais considerada a quantidade de organizações terroristas que se proliferaram depois de o país ocupar e destruir cidades sem qualquer plano de saída nem de reconstrução do país em uma democracia funcional.
A minissérie é evidência, pela sua existência, de como os Estados Unidos ainda não aprenderam a lidar com o luto proveniente do ato terrorista e, no decorrer do processo, terminaram por se transformarem nos mesmos monstros que tentaram combater. Seus soldados até cortaram a cabeça da hidra, mas, igual à mitologia, logo outras nasceram no lugar, onde permanecem até hoje.
Nove Desconhecidos (1ª Temporada)
3.4 229 Assista AgoraQuem não apresentou sintomas de doenças psíquicas nos anos passados não está na sintonia do mundo: ansiedade, depressão, síndrome do pânico, síndrome do impostor, seja o que for, todos precisam de tratamento para se compatibilizarem com o ritmo da sociedade contemporânea e as exigências desta, e um resort bem heterodoxo é onde nove estranhos, assistidos por uma guru e sua equipe igualmente danificados, atravessam o purgatório das dores, frustrações e ressentimentos para emergirem pessoas melhores. Com todos estes sintomas no mesmo cozido interpretados por este elenco talentoso, não é difícil que Nove Desconhecido apresente-se como uma minissérie chamativa.
É também chamativo como, independente dos nomes no elenco ou na produção, a diferença entre remédio e veneno continua sendo a dose. E a desta minissérie é exagerada, especialmente nos episódios a partir dos quais o mistério em torno de Tranquillum é revelado, e importado na forma mais expressiva dos efeitos do tratamento na percepção dos personagens. Além disto, por mais que entremos em contato com os seus dramas, é curioso como a maioria dos personagens permanecem distantes de nós a ponto de o êxito, ou não, do tratamento deixar de ser relevante. Ou seja, não queremos que estes nove sejam curados, queremos apenas saber o mistério em torno das ameças de morte a Masha.
Ao invés de ser um mergulho na psiquê da pessoa contemporânea, a narrativa se torna um thriller de mistério. E não quero afirmar que não possa ser as duas coisas, somente que insiste mais neste último em detrimento daquele, sem que nenhum dos dois seja verdadeiramente satisfatório no fim. E, na tendência de gamificação da vida cotidiana, a narrativa é subdividida em fases, que são as etapas do tratamento, e, cada uma destas fases, com predileção a um ou dois personagens em detrimento do todo. Nem é que não tenha gostado da minissérie, mas simplesmente não decola além da zona de conforto, ainda mais com o pedigree do elenco, a temática contemporânea e as possibilidades de misturar tantos humores em uma panela de pressão.
Sex Education (3ª Temporada)
4.3 431 Assista AgoraO colégio de Moordale é uma espécie de utopia em que as pessoas conversam a respeito de seus problemas individuais (incluídos os de cunho identitário, sexual, existencial etc) e aprendem a ser melhores versões de si mesmos com o poder da honestidade. Não só a honestidade com os outros, mas sobretudo consigo mesmo. Em vez de resolver questões na base do acaso, da inspiração divina ou da declaração de amor eterno que remenda as dores só em um momento - como acontece na maioria das comédias adolescentes, sejam românticas ou não -, Sex Education investe no diálogo como a ponte para acessar o outro. É raro enxergar a defesa deste valor e melhor ver como isto rende uma temporada mais madura.
Faz sentido que seja assim, pois os tempos que vivemos são de guerra perpétua e terra arrasada, não de diplomacia e aproximação. É por isto que a vilã (“vilã” para ser sincero com a proposta da narrativa) é uma personagem cujo nome significa esperança (Hope) mas na realidade é a cara do retrocesso. Suas intenções podem soar nobres, em tentar tornar Moordale uma referência educacional, porém sua execução revela a forma míope com que tenta enfiar pessoas diferentes dentro de caixas. Uniformizá-los, impor-lhes uma conformidade a padrões estabelecidos e deseducar sexualmente é uma forma de retirar a subjetividade do indivíduo; não que os alunos não metam os pés pelas mãos, mas aí só estão agindo conforme suas idades.
Esta temporada é, talvez, a melhor, ao menos até os três episódios finais que sugerem estarmos assistindo à temporada final (a série já está renovada para a quarta), quando isto é provocado pela forma acelerada com que resolve a dúzia de conflitos introduzida. Não ajuda o fato de haver muitos personagens para conciliar, com alguns abandonados (Ruby), outros subdesenvolvidos (Isaac e até Hope, cujo humanização se resume a duas cenas). Faria até sentido se fosse a despedida da série, mas não é. Assim, o que me impediu de amar esta temporada foi a pressa adolescente que não me deixou curtir os momentos com a calma que deveriam ser apreciados. Ainda assim, melhor do que 99% da produção adolescente.
Rick and Morty (5ª Temporada)
4.2 101Durante os primeiros meses da pandemia, tentei reviver a minha infância quando assistia a programas infantis na manhã e passei a assistir a episódios de séries animadas. Isto foi meio ao acaso e começou com The Midnight Gospel. Aí emendei com BoJack Horseman e veio Ricky & Morty. Esta experiência fazia-me ansiar as manhãs, já que me policiava só para ver 1 episódio/dia, e dava algum sentido à insanidade que vivíamos/vivemos. Fui da filosofia à reflexão sobre depressão e autoajuda e parei numa anarquia niilista.
Como amo a lógica insana e libertina que rege as ações de Rick & Morty. São 20 minutos semanais que brincam com ciência e referências cinematográficas enquanto desprezam a vida e as relações familiares mais óbvias. A fundação da série está na anarquia, no caos e no acaso com que enxerga um personagem cujo conhecimento o torna divino, e por esta razão é capaz de enxergar a realidade a seu redor como algo sem muito sentido. Nem por isto deixa de expressar relações de afeto, como com o melhor amigo, Homem-Pássaro ou Morty.
A série continua a brincar com o próprio cânone de forma autorreferencial em episódios independentes ou inter-relacionados para empurrar a história adiante. Enquanto faz isto, sempre gargalho, reflito temas existenciais acerca de mortalidade, (in)finitude, propósito etc, e ainda levo na bagagem experiências em animação que não imaginaria possíveis quando era criança e assistia à TV Xuxa.
Olive Kitteridge
4.5 103 Assista AgoraÀs vezes eu pergunto a mim mesmo onde estava com a cabeça por jamais haver visto a esta premiadíssima minissérie em 4-episódios. A proposta é de retratar, de forma autêntica, 20 anos na vida de Olive a partir de interações em 4 momentos específicos de sua vida. Partimos das partes à compreensão do todo, ou parte dele, já que Olive ensina a importância de enxergar o subtexto disfarçado em cada ação, cada diálogo ou cada intenção para perceber o panorama que rege alguém neste mundo.
Por mais que pareça dificultoso acessar o coração de Olive, que se mantém ranzinza, amarga, afiada e disciplinadora, é fácil perceber que os caminhos para lá estão sob o que podemos perceber. Não é que Olive não sinta, nem ame, mas que, a partir da experiência do suicídio do pai, aprendeu a enxergar o mundo de modo pragmático, mesmo cínico. O jardim de flores a que tanto se dedica externaliza a ânsia pela beleza que não conseguiu cultivar dentro de si, enquanto no interior de casa cuidava dos afazeres domésticos que aleijavam seus sonhos (que não conhecemos, mas deduzimos).
Olive preza a vida, apesar de não aparentar amá-la. Preza o cuidado aos outros, mas não a si mesma. Parece até agir igual a uma rebelde romântica contra a atitude niilista do pai, enquanto Lisa Cholodenko revela níveis de sensibilidade e afeto criados ao longo dos anos e que conferem novo significado às atitudes da personagem. Embora Olive não sinta o amor-paixão por Henry, porém o amor-companheiro, para ela, este é tão ou mais importante que o primeiro. A incapacidade em expressar seus sentimentos não significa não os sentir, mas somente reprimir e convidar a quem desejar romper esta barreira.
Fiz isto de muito bom grado, porque a imensa Frances McDormmand torna fácil se afeiçoar da personagem e tentar buscar as brechas por onde penetrar em seu emocional. Richard Jenkins é mais leve, porém não menos tridimensional em como procura na aceitação daqueles ao redor a forma de conservar o amor próprio. Para concluir, ainda temos Bill Murray, com uma inabalável honestidade ilustrada com o humor caustico do ator. Uma minissérie que transporta o espectador aquele mundo para cativá-lo com simplicidade.
The Night Of
4.3 314 Assista AgoraEu já devo ter visto a maior parte dos dramas policiais, criminais e tribunais que vocês podem imaginar, então o que fez eu me apaixonar por esta minissérie não foi o assassinato brutal de que Naz foi acusado, nem a dúvida razoável em torno da culpabilidade, mas o procedimento como um todo. O desenvolvimento das etapas do sistema acusatório é feito com realismo pelos criadores Steve Zaillian e James Marsh. Não há mocinhos nem bandidos, há pessoas, há muita burocracia, há o desejo de encerrar sua jornada de trabalho a tempo de retornar para casa e descansar.
Ao humanizar todos os personagens da série além dos estereótipos que servem de ponto de partida, a narrativa atinge o ponto invejável que mescla dramaticidade e autenticidade. O detetive prestes a se aposentar de Bill Camp - ator que admiro imensamente - é um bom exemplo: ele não age como age porque é preconceituoso, corrupto, negligente, mas porque as provas são demasiadamente convergentes da culpa de Nas. Se há algo presente nele, além da misantropia, é um desejo intenso por justiça, de forma a justificar seu comportamento nos episódios seguintes.
Já a promotora, interpretada por Jeannie Berlin com uma cadência vocal e um olhar intrusivo sobrepostos à posição de autoridade que possui, caminha sob a linha que separa o interesse político - de que haja julgamento célere do caso - e o ímpeto por justiça, não limitado ao desejo cego de vingar a vítima e a sociedade, mas de realizar isto com o culpado certo. Esta lógica se aplica ao advogado de John Turturro, cuja eczema reforça o sentimento de pária dele, e a Naz, na atuação que trouxe destaque a Riz Ahmed, desumanizado episódio a episódio.
Não há nada de inédito nos temas tratados, o ineditismo está em como isto é feito, a partir de uma meia luz que parece entregar a cidade de Nova York à escuridão descolorida totalmente coerente com o crime brutal investigado. Um mundo de pessoas em tons de cinza, em que nenhuma razão é recriminável, mas justificável. Ora, como julgar John Stone de cobrar por seu trabalho? Ou os taxistas quando tentam reaver seu veículo mesmo que isto os ponha contra Salim, pai de Naz? Uma minissérie irrepreensível para quem ama dramas criminais e achava que a fonte havia secado.
Atypical (4ª Temporada)
4.1 208 Assista AgoraA maior virtude de Atypical está na capacidade que tem de resolver seus conflitos com afeição. Eu sei que esta não é a forma mais realista - ou você acha que uma viagem à Antártida é fácil como faz parecer o roteiro?, mas nem todas as séries precisam disto. E Atypical não tem vergonha da aparenta limitação, porque as relações humanas são tão bem construídas: quem não gostaria de habitar neste mundo em que os personagens se mostram honestos com seus sentimentos ou em que pedir desculpas pudesse (é) o melhor antídoto para dissolver as mágoas?
Esta temporada final se propõe a pontuar desfechos. Não com os pontos finais, pois podemos imaginar os passos, tropeços e como, em família, os Gardner se ajudarão a reerguer, mas com conclusões satisfatórias que justificaram o envolvimento emocional durante quatro temporadas. Não só os Gardner, mas todos os personagens ao redor amadurecem, e mesmo que a forma da narrativa pareça desinteressante ao apelar ao formato sitcom, as relações evidenciam o poder da simplicidade para criar dramas com que podemos nos identificar.
A criadora e diretora de alguns episódios Robia Rashid aproveitou os Gardner, não tão
desfuncionais como costumam ser as famílias neste tipo de sitcom, para apresentar um personagem no espectro autista, com as características inerentes e o apoio em ser um cidadão funcional dentro da mesma sociedade preconceituosa. A temporada final ainda pretendeu lidar com a ansiedade (de modo mais livre e não tão acertado, a meu ver) e o desprendimento em busca da independência pessoal e emocional.
A Comissária de Bordo (1ª Temporada)
3.5 97 Assista AgoraO ponto de partida da série é uma comédia de erros, em que a atrapalhada comissária de bordo Cassi acorda, sem memória da noite anterior, ao lado do cadáver de um importante empresário. O álcool se torna uma alternativa que proporciona mais risos do que reflexão, e a série se apoia no carisma de Kaley Cuoco parar criar humor onde deveria haver só apreensão.
Até o jogo mudar.
O mais envolvente nesta série é sua habilidade em parecer uma noitada à espera de uma ressaca moral. O que começa divertido se dilui a cada shot de vodka de Cassie, para dar lugar à comédia de humor ácido misturada com thriller de gato e rato, em que o objetivo é identificar o assassino, enquanto a protagonista sobrevive a poucas e boas (não aqueles ao seu redor).
Se o álcool começou divertido, depois se transforma na válvula de escape niilista de uma mulher traumatizada pelo passado. A investigação aos trancos, barrancos, sorte e azar é sua terapia para revisitar o passado e encontrar a fonte de suas dores. E mesmo que Kaley não seja a melhor atriz para se aventurar no drama que cerca a personagem, ela tampouco nos desaponta, auxiliada por um elenco coadjuvante bastante competente.
Enquanto isto, a série utiliza uma linguagem moderna, que procura manter a atenção do espectador com planos divididos, ritmo acelerado, diálogos rápidos e o movimento como forma de expressar a jornada turbulenta de uma comissária de bordo para sobreviver física e emocionalmente.
Loki (1ª Temporada)
4.0 489 Assista AgoraApesar de o charme trapaceiro de Tom Hiddleston abundar pelos poros de Loki, dada a experiência do ator em interpretar o Deus da Mentira, e de a primeira temporada da série reservar duas questões intrigantes (não são as que você está pensando), mais uma vez a Marvel opta pelo confortável e perde a oportunidade de explorar TANTA coisa que não deixa de ser decepcionante mais esta aventura.
É que o roteiro desta primeira temporada de Loki sofre com o problema de excesso de informações, tratadas no rasinho de uma piscina infantil. Em vez de se aprofundar nos temas de ficção-científica misto fantasia de super-heróis ou mesmo nos personagens coadjuvantes e subaproveitados (a exemplo de Mobius, Ravonna e a Caçadora B-15), a série opta por inchar-se de momentos do tipo: "um Loki jacaré!" e "Richard E. Grant de Loki, quem não havia pensado nisso", distraindo a narrativa do que lhe é essencial: o que acontece quando um Loki que não confia em ninguém encontra um Loki não confiável?
Esta questão intrigante parece, mas não é igual a de Batman - O Cavaleiro das Trevas (o objeto inamovível versus a força imparável), pois é óbvio que quem não confia em ninguém tampouco confiaria em alguém não confiável, e o fato de o episódio final dedicar-se a resolver este dilema (ou "dilema") expõe sua fraqueza narrativa.
Mais interessante é o romance narcisista existente entre os Lokis (é óbvio que alguém assim só poderia apaixonar-se por si mesmo), embora não conduza a nenhum propósito glorioso, senão aqueles que estudarão a psiquê do protagonista. Resta uma aventura simplérrima, com visual CGI arroxeado e desinteressante, expositiva a ponto de o vilão precisar explicar tintim por tintim quem é e o que quer. Tem um protagonista carismático? Sim. Uma trilha sonora chamativa (como há muito não se via na Marvel)? Sim. E até um personagem surpresa no episódio final que rouba tudo para si? Sim.
Mas isto não faz verão.
Manhãs de Setembro (1ª Temporada)
4.3 163A premissa original de Manhãs de Setembro é o ponto de partida para a rediscussão da questão do conceito de família dentro da sociedade contemporânea e de como o afeto é instrumental para identificá-la. Esta narrativa retrata a experiência de uma mulher trans, sem que a transfobia seja o elemento central, apenas periférico, presente até quando invisível, mas logo desarmado por quem aprendeu a não ouvir desaforos de quem não a aceita por quem é.
Uma cantora talentosa, fã de Vanusa, e que, como qualquer pessoa, precisa encontrar meios de sobreviver dentro de uma metrópole que elimina sonhos e aspirações, ainda mais quando estes vêm de minorias. Cassandra combate o apagamento todos os dias, enquanto se cerca de uma rede de proteção indispensável. A atuação de Liniker aposta na ambivalência de quem precisou esperar demais para viver a vida que pensou para si, não que justifique a maneira como lida com o aparecimento de Gersinho, seu filho, anos depois.
É que Cassandra demonstra o afeto diferentemente do que faz Leide, a mãe de Gersinho, interpretada por Karine Teles com um misto de trambique e desespero por haver esgotado todas as alternativas de maternar adequadamente seu filho. A narrativa expande a ideia de família e alcança também os calorosos personagens interpretados por Gero Camilo e Paulo Miklos. Mesmo porque, enquanto há famílias que se dissolvem, outras se formam na base da certeza de que um membro pode contar com o outro quando precisar.
E a narrativa faz isto sem alardear seus méritos a partir de um sentimentalismo gratuito, mas a partir de uma narrativa urbana e bem montada, em como alterna a marginalidade com a graça de abraçar a própria identidade ou, nos termos do roteiro, o lar que Cassandra montou para si. Que sorte a nossa de sermos convidados a conhecer.
Mare of Easttown
4.4 654 Assista AgoraNa primeira vez que encontramos Mare, a detetive está um caco em todas as dimensões de sua vida (emocional, familiar, profissional) e a resposta para isto é a terapia. É através dela que Mare dá passos em direção ao sótão de sua vida - um ponto positivo - mas também é ela que enfraquece a arte de "contação de histórias", pois as emoções tão bem retratadas por Kate Winslet (irrepreensível) são entregues facilmente, a partir de diálogos expositivos, a cada reencontro com a terapeuta.
A intenção é nobre; a execução, não. Aliás, a HBO parece haver criado a fórmula da minissérie dramática: convocar um ator / atriz renomado e retratar uma comunidade fechada americana composta por pessoas que permaneceram em inércia emocional e geográfica, ao redor de segredos ocultos, sentimentos reprimidos e a sensação de que todo mundo conhece todo mundo o bastante para saber quem é o responsável por um crime (ou dois). Intrigou-me como as verdades não vazaram por entre as frestas das famílias, já que a resolução de ambos os casos (um desaparecimento e um assassinato) vieram de uma investigação costumeira, não de um imenso quebra-cabeças.
Pois aí que a série me perdeu: apesar de se tratar de um whodunit - ou seja, queremos saber quem cometeu o crime -, a narrativa não é sobre isto, mas sobre como Mare subjuga a vida à investigação. A inclusão do suspeito da semana ao final de cada episódio só enfraquece o que a narrativa tem de melhor, o desenvolvimento de sua protagonista complexa. A névoa de mistério sufocou o drama, pois Craig Zobel não me pareceu apto a conciliar ambos, mas sim em colocá-los um contra o outro: a narrativa acontece nos intervalos da investigação, apesar de a direção enfatizar o contrário.
Além disto, não enxerguei verdade na conclusão: Mare é uma mulher torturada entre a maternidade, que julga ser mal sucedida a ponto de precisar redimir-se criando o neto, e o trabalho, contrário às normas policiais. É uma carcaça amarga, caminhando pela apática Easttown, um cemitério apropriado a sonhos perdidos e povoado por famílias que não dialogam. É por isto que a relação de Mare em face à autoria do crime me pareceu contraditória e falsa, criando um desfecho ao caso que, a meu ver, é oposto ao que a Mare que havíamos visto até então faria.